Telesur e as mentiras da imprensa privada
Fundada há cinco anos pelos governos de Venezuela, Argentina, Cuba e Uruguai, a rede de televisão Telesur nasceu com objetivo de se colocar na contracorrente da mídia comercial. Convidado a participar o Brasil continua resistente, ainda que canais locais do Rio de Janeiro e do Paraná já retransmitam o sinal da emissora
A primeira libertação de reféns pelas Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), no início de 2008, já havia introduzido a Telesur, então com pouco mais de dois anos de atividades, no sistema informativo mundial. As imagens da emissora multiestatal, cujo lema é “Nosso Norte é o Sul”, cruzaram o mundo com tom próprio e postura diversa da que se costumava ver até então em um grande veículo de comunicação. A Telesur, proposta pelo presidente venezuelano Hugo Chávez e surgida da parceria entre Venezuela, Argentina, Cuba e Uruguai, postou-se de cara na outra margem do fluxo de informações, colocando-se na contracorrente da grande mídia comercial.
Um ano e meio após sua criação, a cobertura que a Telesur fez do golpe de estado em Honduras – ¬antes, durante e depois –, deflagrado em 28 de junho deste ano, não deixou dúvidas de que a emissora já galgou seu lugar na história da informação na América Latina. “O profissionalismo, o patriotismo, o sentido do dever e a responsabilidade com nossos telespectadores desabrocharam em Tegucigalpa pelo trabalho das equipes da Telesur”, confidenciou-me o cubano Ovídio Cabrera, diretor-geral da emissora. De fato, se a Telesur não estivesse em Honduras naquele momento, o mundo poderia não se inteirar do latrocínio ocorrido ali.
Foi uma cobertura singular, de uma TV que assume a postura de não se esconder no hipócrita e lúgubre escudo da imparcialidade. Havia uma equipe da Telesur no avião do presidente deposto, Manuel Zelaya, que não pôde pousar devido à violência dos golpistas, afirma Beto Almeida, diretor da Telesur no Brasil. “E essa é uma das páginas da história da América Latina que a Telesur está ajudando a escrever, com o risco que seus profissionais correm. Onde estava a CNN? Na casa de Roberto Micheletti? Onde estavam a Globo e até mesmo a TV Brasil? Dizendo que Zelaya não foi vítima de golpe, que ele é que queria eternizar-se no poder”, ressalta o jornalista brasileiro.
Destacados de outras tantas coberturas, fundamentalmente nos países que sofrem com a postura inconfessa, porém tendenciosa, da mídia comercial, esses dois fatos – a cobertura das Farc e de Honduras – possibilitaram à Telesur entrar na sua maioridade, antes mesmo de completar seu quarto aniversário. Nada mais coerente com sua proposta inicial. Fundada em 24 de julho de 2005 – não por acaso aniversário de nascimento de Simón Bolívar –, a emissora veio para fazer o papel contra-hegemônico, em oposição à mídia comercial. “Nosso objetivo é romper o bloqueio midiático que as redes de televisão privadas, a serviço das oligarquias nacionais e do imperialismo americano, exerceram e exercem sobre nossos povos”, afirmou seu diretor-geral no Fórum Social Mundial realizado em Belém (PA), em janeiro deste ano. Esse domínio informativo, disse ele, faz com que informações sejam ocultadas e que problemas fundamentais que nossa sociedade enfrenta hoje sejam manipulados. Esse é o modelo seguido à risca pela grande mídia comercial no continente.
É com o propósito de se contrapor a esse modelo que a Telesur define sua programação e prioriza as transmissões especiais. “As coberturas sobre o conflito colombiano e o caso de Honduras têm sido especialmente marcantes porque são uma oportunidade de mostrar distinção em relação à mídia comercial”, afirma Efendy Maldonado, jornalista equatoriano radicado no Brasil e professor de pós-graduação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), no Rio Grande do Sul. Para ele, são decisivas também as reportagens sobre os processos políticos de mobilização e o apoio popular às mudanças estruturais, tanto em termos constitucionais quanto na implementação de projetos concretos, como o método “Yo si puedo”, que levou a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) a decretar Venezuela e Bolívia territórios livres do analfabetismo. Trata-se de “desmontar as coberturas distorcidas das mídias comerciais”, destaca Maldonado.
O Brasil resiste
Com sede em Caracas, Venezuela, a Telesur se consolida como uma rede latino-americana de comunicação que conta hoje também com a participação de Bolívia, Nicarágua e Equador. Novos países devem se integrar em breve, como é o caso do Paraguai.
O Brasil, contudo, resiste a entrar na articulação. Segundo o cientista político, professor e pesquisador Rafael Duarte Villa, da Universidade de São Paulo (USP), isso está relacionado, “primeiro, com a falta de visão estratégica do governo brasileiro sobre a importância de um canal de TV estatal para firmar a ideia da integração, como a Europa Ocidental entendeu há muito tempo. Sem comunicação não há processo possível de integração política, econômica e social”. Um segundo aspecto que pode explicar a posição do Brasil é que a Telesur tem uma imagem muito vinculada ao governo da Venezuela, e, a partir daí, “outros fatores, como a suposta disputa pela liderança sul-americana, entram em cena”, diz Villa.
Mas, decidida a irradiar seu projeto para todo o continente, a Telesur assinou convênios no Brasil com a emissora público-estatal do governo do Paraná, a TV Paraná Educativa, e com a TV Cidade Livre, do canal comunitário de Brasília. Esta transmite com frequência o sinal direto de Caracas, como foi o caso da cobertura do golpe em Honduras. Já a Paraná Educativa – presente nacionalmente pelo canal 115 da Sky e captada por antena parabólica em toda a América Latina – retransmite de segunda a sexta-feira, das 19h45 às 20h15, o Telesur Notícias, um telejornal dublado em português. Trata-se de um olhar diferenciado, com notícias pouco vistas nas emissoras comerciais. “Só agora eu comecei a me dar conta de como a gente é ignorante sobre o que acontece na América Latina”, diz Deoclécio de Lima, de Betim, Minas Gerais. “Primeiro eu assisto a Telesur, e em seguida (às 20h15 começam os telejornais de duas grandes emissoras nacionais) vejo o que os outros canais dizem de mentira ou escondem de nós”, ironiza. Sem saber, ele confirma o que disse o jornalista argentino Carlos Aznárez, ao referir-se à Telesur durante o Encuentro Latinoamericano vs Terrorismo Mediático: “Os que têm a sorte de acessar esse canal podem inteirar-se, por simples dedução e comparação de textos e imagens, sobre quanto e como nos mente diariamente a cadeia do terrorismo midiático”1. Para ele, a Telesur veio para trazer ares novos dentro de tanta atmosfera contaminada, e “nesse curto tempo de existência [na época com apenas dois anos e oito meses] já deu boas mostras de que ouvir as outras vozes e difundir a informação que os meios convencionais ocultam serve para erodir, aos poucos, o muro do discurso único”.
Talvez aqui se encontre o maior serviço que a Telesur presta ao jornalismo latino-americano. A programação comprometida com certas linhas de pensamento e políticas de Estado e práticas econômicas e socioculturais voltadas aos mais necessitados vem exatamente expor as mentiras transvertidas de verdade com que o jornalismo de mercado se consolidou nas últimas décadas. Ao assistir a Telesur e compará-la à televisão privada, é impossível não se lembrar de A roupa nova do imperador, de Hans Christian Andersen, e gritar, em vez do rei, que “a rainha está nua”. São explícitas as três grandes mentiras que revestem a entronada mídia privada: imparcialidade, isenção ideológica e sinonímia de mídia privada e mídia livre.
Aliás, nada mais ideológico do que a negação peremptória da ideologia. “Todo discurso tem ideologia, inclusive o científico”, reitera o pesquisador Efendy Maldonado. Toda comunicação, não importa qual, expressa um conjunto de ideias, resta saber a que cosmovisão ela atende.
A malha da Telesur
Apesar da tenra idade, a Telesur é hoje uma rede que tem correspondentes em quase todos os países da América Latina, além dos Estados Unidos. Firmou parceria com dezenas de emissoras de várias partes do mundo, entre elas a TV Al-Jazeera, do Qatar. Seu sinal está na Venezuela e em diversos canais na Argentina, Bolívia, Cuba, Uruguai e Madri, na Espanha, e começa a chegar ao Equador e Nicarágua, além do Brasil. Pode ainda ser acessada na internet, pelo endereço http://www.telesurtv.net. Contudo, a dificuldade de atingir seu público preferencial ainda é um desafio que tira o sono da direção da emissora.
Na realidade, esse não é um problema exclusivo da Telesur, mas, há muito tempo, de todas as TVs público-estatais. No Brasil, por exemplo, a ironia é enorme. Foi com recursos públicos que a principal TV privada pôde montar uma malha de distribuição de sinal que a possibilita estar há tempos nos mais longínquos grotões do país. Esta sempre foi a lógica brasileira: expandir as redes privadas com dinheiro público. Não à toa, passa de R$ 1,5 bilhão o investimento anual do governo federal, envolvendo a administração direta e indireta, na mídia comercial. Os argumentos objetivos são muitos, entre eles anunciar seus feitos e produtos. Já os subjetivos…
Fato é que o governo federal titubeia até hoje em estabelecer uma malha de transmissão de sinal que permita a sua televisão público-estatal atingir os quatro cantos do país. Aliás, nem sequer compromete as TVs a cabo a veicular a TV Brasil.
Contudo, na Telesur a percepção clara é a de que uma integração latino-americana não se dará unicamente pelos acordos oficiais que se firmam a cada nova reunião.
Depende também do desejo de integração desses povos, que só é possível a partir da construção de outra cultura que vislumbre esse horizonte. Numa sociedade cada vez mais midiatizada, a ação dos veículos de comunicação é crucial na construção de uma nova autoimagem no próprio continente. E a cobertura da mídia comercial, na opinião de Efendy Maldonado, é muito prejudicial à América Latina: “As pesquisas sistemáticas que temos feito durante duas décadas mostram o caráter destruidor, preconceituoso, racista, redutor e xenófobo de boa parte da produção comercial latino-americana. A negação da alteridade e de um projeto comum para nossa América, promovendo a subserviência ao poder dos Estados Unidos, tem sido o modelo da produção midiática sobre a região”. Para ele, os discursos dessa mídia apresentam as nações vizinhas como inimigas. “Para os brasileiros, os bolivianos, paraguaios e argentinos são vistos como contrabandistas, traficantes, aproveitadores econômicos; para os colombianos, os equatorianos e venezuelanos são representados como cúmplices do ‘terrorismo’. Em toda a América Latina o modelo é similar e segue a lógica da separação, da negação, da destruição simbólica do outro. Isso é gravíssimo e a Telesur é imprescindível para mudar essa realidade midiática”, conclui.
Rafael Duarte Villa destaca que essa cobertura é perpassada pela visão político-editorial das emissoras, e que “carece de qualidade na medida em que é feita – na maior parte dos casos – na base de um jornalismo que pesquisa pouco e de achismos absurdos”, o que leva à combinação nociva de comunicação enviesada e formação de opinião pública espúria e imprecisa.
Nosotros, si, podemos!
Essa negação do continente por meio da sonegação de informações importantes e deturpações de fatos sobre a América Latina é a tônica da mídia comercial. O povo latino-americano não só desconhece o programa de alfabetização “Yo, sí, puedo”, como também ignora que a Bolívia já recuperou grande parte da soberania sobre sua própria riqueza; que o Equador fez o mesmo e ainda realizou uma auditoria de sua dívida externa – economizando mais de US$ 2 bilhões cobrados irregularmente –, além de ter determinado a retirada da base americana de Manta, reassumindo sua condição de país soberano. De fato, se dependermos da mídia privada, não saberemos nada sobre essas e outras infinitas conquistas e verdades sobre nossa América. Antes, ficaremos achando que Chávez, eleito democraticamente, é um ditador, e que Felipe Calderón, cuja eleição foi fruto de fraude eleitoral 2, é presidente inconteste do México.
É para dar respostas a essas demandas por uma comunicação com cara e sotaque latino-americanos que a Telesur se muniu de equipamentos de última geração e montou uma grade de programação variada, tendo como ponto forte noticiários e documentários de todo o continente. De hora em hora há boletins atualizados com informações internacionais e foco principal na América Latina. O lúdico também está presente, numa programação diária salpicada de esportes e manifestações culturais, ao que se somam filmes e documentários de produtores independentes.
O fato é que uma TV público-estatal, ou multiestatal, como é a Telesur, é condição para se construir uma democracia real. Para Efendy Maldonado, a Telesur é uma garantia de informação mais democrática. “A exclusividade da informação e o controle hegemônico têm um contraponto, um espaço e uma produção que oferece alternativas de verdade, de humanidade, em face de uma cultura da violência exorbitante nos meios comerciais”, diz. Ovídio lembra, no entanto, que “tudo o que fazemos não é a partir de um olhar alternativo. É uma visão própria, de justiça social, que interpreta não os grandes interesses, mas sim os interesses dos povos”.
Nessa empreitada latino-americana a Telesur tem apoiado novas experiências de televisões. Bolívia, Equador, Nicarágua e Paraguai são alguns exemplos. São iniciativas que estão se consolidando num sistema público de televisão estatal. “Quais experiências podem ser feitas sem o apoio, a participação direta, a sustentação e a relação com o Estado, e que sejam de natureza democratizadora? Onde é que o mercado está possibilitando democratização da cultura e da informação?”, questiona Beto Almeida.
A Telesur vai bem, mas os desafios ainda são muitos: aprimorar a qualidade dos conteúdos e imagens; expressar, na programação, as culturas, valores, interesses e sonhos de emancipação dos povos latino-americanos, visando à construção de um futuro promissor e livre de toda forma de império. Rafael Villa acredita também que a Telesur precisa se firmar para além de conjunturas de governo, e Efendy Maldonado destaca a necessidade de a emissora apreender os processos históricos e os conhecimentos de comunicação para tornar-se componente vital do cotidiano latino-americano, “penetrando nas mentes e corações de modo respeitoso e solidário”.
Mas para uma emissora com apenas quatro anos de existência, pode-se dizer que a Telesur já foi bem longe, dando mostras de que veio para ficar, e incomodar.
*Elson Faxina é jornalista, editor da TV Paraná Educativa, professor de comunicação da UFPR (Universidade Federal do Paraná), mestre em Televisão, Rádio e Cinema pela ECA/USP e doutorando em Comunicação pela Unisinos (RS).