Terremoto geopolítico no Oriente Médio
A continuidade das manifestações no Egito, Síria, Iêmen, Bahrein e em outros países árabes confirma que os levantes que abalaram a região há um ano estão longe de terminar. Mas não se pode esquecer que, além da democratização, está em jogo o lugar da região, assolada por vários conflitos, na geopolítica mundialAlain Gresh
(Soldados de Israel patrulham rua de Nablus, na Palestina)
“O leão não gosta de intrusos em sua casa. O leão não gosta que seus filhos sejam sequestrados durante a noite. O leão não deixará barato. Eles não devem entrar na casa do leão.” Quem são os “intrusos”? Sem dúvida, os soldados da Força Internacional de Assistência e Segurança (Fias), que invadem residências e capturam suspeitos. O homem que pronuncia essas palavras, sob aplausos do público, não parece exatamente uma fera: o presidente afegão Hamid Karzai, instalado no poder pelos Estados Unidos em 2001 e cuja manutenção se deve à tutela norte-americana e à fraude na eleição presidencial de agosto de 2009 com o aval da “comunidade internacional”.1 Com esse discurso nacionalista, ele prepara a chegada do pós-2014, ano em que o grosso das tropas dos Estados Unidos e seus suplentes devem deixar o país. Contudo, é pouco provável que tais mentiras o salvem da sorte reservada aos colaboradores da intervenção ocidental.
No mesmo momento, os Estados Unidos se engajaram em uma das operações de repatriamento de material (e tropas) mais complexas da história. No fim do ano, não restariam mais que algumas centenas de conselheiros no Iraque. Até o último minuto, Washington tentou arrancar o aval de Bagdá para a manutenção de algumas dezenas de milhares de soldados, mas a rejeição popular foi tão maciça que até mesmo as forças políticas aliadas à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) recusaram a demanda.
Os Estados Unidos deixaram para trás um Iraque livre do ditador, mas que dificilmente servirá de modelo a um Oriente Médio democrático: um país em cólera e dividido; um Estado fora do lugar; dezenas de milhares de viúvas e órfãos, desaparecidos e amputados; um confessionalismo reforçado; uma guerrilha da Al-Qaeda ainda ativa – que não existia em 2003 quando o país foi invadido. Nenhum responsável norte-americano responderá por todos esses crimes perante a Corte Penal Internacional.
Ademais, o governo localizado em Bagdá, certamente ligado aos Estados Unidos, paradoxalmente mantém relações mais que cordiais com o poderoso vizinho iraniano. Tanto no Afeganistão como no Iraque, os povos se recusam a ser dirigidos por estrangeiros: não está em questão voltar ao período colonial. Esses dois fracassos ilustram o enfraquecimento relativo dos Estados Unidos na região, confirmado pelas revoluções árabes e pela queda do regime de Zine al-Abidine ben Ali na Tunísia, mas, principalmente, pelo fim do governo egípcio de Hosni Mubarak, protegido e pilar da estratégia regional norte-americana.
Esse enfraquecimento, somado ao cenário incerto e em transformação, estimula os atores locais a desempenhar um papel mais ativo. O Oriente Médio estava, até agora, dividido em dois: uma região dita de “resistência”, composta de Irã, Síria e seus aliados do Hamas palestino e do Hezbollah libanês, e outra pró-ocidental, dominada pelo Egito e pela Arábia Saudita. A primeira saiu em vantagem: as manifestações venceram dois regimes pró-ocidentais, o tunisiano e o egípcio, e abalaram outros, notadamente o emirado do Bahrein e o Iêmen. Jordânia e Marrocos também entraram em processo de mudança, enquanto em Beirute se instalava, dentro da legalidade, um governo dirigido pelo Hezbollah e seus aliados cristãos da Corrente Patriótica Livre do general Michel Aun.
Inquieta pela “fraqueza” de Washington, que havia abandonado seus antigos amigos, e temerosa pela possível extensão das revoluções, a Arábia Saudita decidiu renunciar a certa passividade e lançou suas forças na batalha. A primeira medida foi verter, em algumas semanas, no início de 2011, US$ 214 bilhões – o equivalente à dívida de Portugal – sobre os próprios cidadãos, de forma a desarmar a contestação, que bramia não apenas no seio da minoria xiita, mas também na juventude, cuja insatisfação aparece em blogs e redes sociais (18% dos desempregados receberam o diploma universitário em 2000, e 44%, em 2009).2 A criaçãode 60 mil postos de trabalho pelo Ministério do Interior soava como propaganda aos afetados pela crise. Em seguida, apesar da geografia, o governo saudita propôs a integração da Jordânia e do Marrocos ao Conselho de Cooperação do Golfo (CCG),3 e financiou essas monarquias e o novo poder no Egito para mantê-los “na linha”. Finalmente, Riyad passou ao comando das tropas do CCG, que invadiram o Bahrein em meados de março para reprimir a revolta democrática e suas demandas heréticas à monarquia constitucional, o que atiçou as tensões entre xiitas e sunitas por toda a região. Passando por cima dos soldados norte-americanos, essa invasão se deu sob o pretexto da “ameaça iraniana”, que inquieta mais os dirigentes do Golfo que os de Israel.
Suspeitas sobre o Irã
O Irã e a Arábia Saudita já eram rivais antes mesmo da Revolução Iraniana de 1979, quando os dois países eram aliados dos Estados Unidos. O apelo do aiatolá Ruhollah Khomeini para expulsar os sauditas e o apoio destes à agressão iraquiana contra o Irã durante a guerra de 1980-1988 deterioraram seriamente as relações entre os dois países, antes de se apaziguarem na década de 1990. A invasão do Iraque pelos Estados Unidos em 2003; a instalação de um governo considerado xiita em Bagdá, e por isso próximo de Teerã; o crescimento do poder regional do Irã; e o protesto no Bahrein reavivaram a concorrência entre as duas potências do Golfo – o que se cristalizou no dossiê sírio.
A decisão da Liga Árabe de suspender Damasco, em novembro último, suscitou um concerto de aplausos em Washington e em várias capitais europeias. Vilipendiada por sua passividade, a organização finalmente passou à ação e decidiu defender os direitos humanos não somente por proclamações vãs, mas por atitudes concretas. O fato de a monarquia saudita – da qual o novo herdeiro é o príncipe Nayef, poderoso ministro do Interior desde 1975 e responsável por relançar as atividades da polícia religiosa em seu país – ter votado o texto contra Damasco não preocupa os observadores eufóricos tanto quanto o voto da dinastia do Bahrein, que prende e tortura seus opositores, ou o do presidente sudanês, condenado pela Corte Internacional por crimes contra a humanidade e genocídio. A Liga aderiria, assim, à “Primavera Árabe”.
A não ser que, como interpreta o intelectual libanês As’ad AbuKhalil,4 “os motivos da Liga Árabe não estejam ligados à difícil situação dos levantes árabes. Estes se inscrevem nas instruções dadas pelos Estados Unidos. Também se explicam pelas ambições megalomaníacas do emirado do Catar, que deseja provar a Washington que também pode ser tão submisso e leal aos interesses imperialistas norte-americanos quanto a Arábia Saudita e a Jordânia, e confirmar assim sua utilidade aos Estados Unidos (e a Israel). A Liga Árabe demonstrou que não permite que se desempenhe qualquer papel sem que este siga à risca as decisões norte-americanas. Nessas condições, é melhor que a Liga se abstenha de qualquer atuação”.
No Oriente Médio, não é apenas o futuro da democracia que está em jogo, mas também a independência da região. É possível, sem compartilhar os pontos de vista, observar as declarações do influente comentador egípcio Mohammed Hassanein Heykal, antigo conselheiro de Gamal Abdel Nasser, que evocam os novos acordos Sykes-Picot5 de dividir a região entre as potências ocidentais,6 sem mencionar a perseguição de Israel aos palestinos – o que jamais suscitou qualquer reação séria por parte da Liga Árabe. Essa dimensão oculta explica, sem justificá-lo, o apoio que o Hezbollah confere ao regime sírio – cuja permanência, de acordo com as palavras do secretário-geral da organização, Hassan Nasrallah, constitui “uma condição necessária para a sobrevivência da causa palestina”.7
Na Síria, o poder decidiu que a força era a única resposta possível ao “complô estrangeiro”. O país lançou-se no combate com seu Exército e suas milícias, sem economizar formas violentas de luta, desde tortura a assassinatos, passando por prisões maciças. A Síria dispõe de alguma base entre os alauitas, mas também entre outras minorias – cristã, drusa etc. –, e até mesmo na comunidade sunita, como provam as manifestações de apoio ao presidente Bashar al-Assad, jamais veiculadas pelas televisões ocidentais ou pela Al Jazeera. Os riscos de guerra civil religiosa são reais, mesmo se o regime se esforça para consolidar sua legitimidade – e inquietam os vizinhos, principalmente Ancara.
A Turquia, cuja fronteira com a Síria se estende por 900 quilômetros, tentou, em um primeiro momento, impulsionar Assad à reforma. A recusa obstinada do dirigente, porém, levou o primeiro-ministro Teyep Erdogan a juntar-se ao setor hostil a Damasco. Membro da Otan, a Turquia procura manter-se em uma linha intermediária entre a condenação veemente da política israelense, sua popularidade reforçada no Oriente Médio (que eclipsou a do Irã) e o temor de ver a Síria reagir com outra manipulação da Carta curda, como na década de 1990, apoiando o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK).8 Ancara aceitou a instalação de unidades do Exército Sírio Livre em seu território e aceitaria até mesmo, em caso de extensão do conflito, a instalação de zonas de proteção da população em território sírio. A Turquia teme, como vários atores regionais, uma guerra civil religiosa que poderia, por uma reação em cadeia, se estender aos vizinhos – do Líbano ao Iraque – e abarcar toda a região. Trata-se de um risco muito mais sério que a “ameaça nuclear” iraniana.
Apesar do grande impacto midiático, o relatório da Agência Internacional de Energia Atômica (Aiea), publicado em novembro, não confirma de nenhuma forma que o Irã estivesse construindo uma bomba atômica – acusação proferida pela primeira vez em 24 de abril de 19849 e repetida há mais de dez anos! O documento, contudo, levanta questionamentos alimentados pelas agências de segurança ocidentais e israelenses – que, por sua vez, continuam se recusando a fornecer as “fontes” de suas informações à agência internacional. E Teerã não reagiu.
Aliança entre árabes e Israel?
Como sublinha Hamid Serri, da Universidade da Flórida, essa lógica relembra o caso iraquiano no início da década de 2000.10 “No dia 17 de março de 2003, três dias antes da guerra, um relatório [da Comissão de Controle, Verificação e Inspeção das Nações Unidas, dirigida por Hans Blix] afirmava que o Iraque não estava livre das acusações de dissimulação” de armas de destruição em massa. E por que esse “erro” grosseiro? “O problema não era a informação, mas as premissas dos inspetores, prisioneiros de uma teoria que não podia ser ‘desmentida’ […], pois eles partem do princípio de que não se pode confiar no Iraque. A ausência de provas não provava nada, porque não é possível demonstrar que não há nada escondido”. Como o Iraque no fim da década de 1990, foi a vez de o Irã sofrer de “má-fé”, em um processo de acusações intermináveis cujo objetivo não é, como seria legítimo, verificar o programa nuclear iraniano, mas manter o regime em permanente acusação e observação. E continuar a fingir que seu objetivo é a destruição atômica de Israel, já que o próprio ministro da Defesa israelense, Ehud Barak, explica que Teerã tem numerosas razões para querer construir uma bomba em uma região tão instável.11
Então a guerra começará amanhã? Difícil precisar, mas sem dúvida a repercussão de um ataque contra o Irã seria um desastre para a região. Washington e Tel-Aviv, porém, já ganharam uma batalha: fabricar um inimigo que desvia as atenções da questão palestina e que, ademais, permite forjar uma aliança concreta entre os países árabes moderados e Israel. Esse cenário geopolítico era um antigo sonho do presidente norte-americano Ronald Reagan na década de 1980: unir árabes e israelenses contra a “ameaça soviética”.
As revoluções árabes puderam, até agora, ocultar as dimensões geopolíticas dos combates na região. O processo de levante do Oriente Médio e do Magreb já se anunciava antes de 2011: a guerra civil no Iraque, a instabilidade do Curdistão, a guerra civil silenciosa no Líbano, a fragmentação da Palestina, a independência do Sudão do Sul e movimentos separatistas no Sudão, instabilidade no Saara, conflito no Saara Ocidental. Uma nova guerra regional não só desmobilizaria os movimentos de democratização em curso, como também levaria o caos a algumas regiões da Europa.
Alain Gresh é jornalista, do coletivo de redação de Le Monde Diplomatique (edição francesa).