The Mandalorian: de guerreiro a novo proletariado de serviços
O consumidor encontra na tela, assim como nos romances de ficção científica, o que ele já espera, o que ele foi treinado a pensar sobre o futuro
Para Adorno e Hockenheim os produtos da indústria cultural são feitos “de modo a vetar, de fato, a atividade mental do espectador, se ele não quiser perder os fatos que, rapidamente, se desenrolam à sua frente”. Isso porque essa indústria trabalha com o esperado. Ela busca atender a ânsia dos olhos compulsivos de um consumidor que deseja se ver representado, quando, então, este desejo é realizado, a atividade mental cessa, dando lugar ao deleite. “Os outros filmes e produtos culturais que necessariamente deve conhecer, tornam-lhe tão familiares as provas de atenção requeridas que estas se automatizam. A violência da sociedade industrial opera nos homens de uma vez por todas”.
Esse aspecto da indústria cultural é chave para o sucesso da ficção científica. Bourdieu já havia nos alertado que tentar estabelecer o que o texto diz procurando decifrá-lo em termos de mera ideologia pode nos levar a erros frequentes, mas a questão é que na ficção científica ela é “diretamente declarada, seus embustes mais imediatamente perceptíveis”.
Observando o aspecto literário, Moniz Sodré mostra que a ficção científica não consegue criar sua própria significação ideológica, como os outros ramos da literatura, porque ela obedece ao sistema definido pela indústria cultural, “manobrando conscientemente significados ideológicos (o cientificismo, a especulação futurológica, os temores apocalípticos, etc.)”. Ou seja, a ficção científica não consegue criar uma materialidade discursiva própria, mecanismos retóricos particulares, apenas reproduz o que já está determinado pela indústria cultural.
Desse modo, encontramos, nesse gênero, o progresso tecnológico que serve para limitar a nossa concepção de futuro, enquadrando, por seu turno, o presente – oprimido pelo tempo vindouro – num padrão que força todos os seus habitantes a agirem em direção a esse futuro determinado. O presente se torna escravo desse futuro imaginário, extremamente tecnológico, que serve para legitimar a produção, a inovação tecnológica, enquanto outros aspectos da vida, mais humanos, mais sustentáveis, ficam em segundo plano, ou são simplesmente descartados.
Os filmes críticos de ficção científica falam de um futuro extremamente avançado, ou de uma sociedade que se colapsou por conta do consumo exagerado. Contestam esse processo, mas não mostram alternativas humanitárias, muito menos defendem um ponto de vista no qual concebem as tecnologias como desnecessárias. Apenas defendem que é preciso usá-las com responsabilidade. No fim das contas, o futuro tecnológico continua sendo imaginado. E o presente continua trancafiado nessa expectativa que realiza muito pouco em termos humanitários, mas que rende um lucro altíssimo para as corporações.
O consumidor, portanto, encontra na tela, assim como nos romances de ficção científica, o que ele já espera, o que ele foi treinado a pensar sobre o futuro. A tecnologia demonstrada na imagem o encanta, obliterando, assim, a sua atividade mental.
Cabe ressaltar que nós não somos contrários ao desenvolvimento tecnológico, apenas ao uso ideológico deste para alimentar corporações que estão interessadas apenas no lucro. A indústria cultural torna-se instrumento desse projeto de poder, criando fantasias que alimentam um suposto futuro encantado.

No entanto, é se sobrepondo a esse encanto que poderemos compreender a mensagem ideológica da indústria cultural. E, nesta oportunidade, observaremos a série The Mandalorian, da plataforma de streaming Disney+.
A série de fato é interessante por retratar a periferia do universo de Star Wars, mas representa uma relação de trabalho muito conveniente para os interesses atuais do capitalismo.
É como disse o escritor Ray Bradbury, a “ficção científica é uma ótima maneira de fingir que você está falando do futuro quando, na realidade, está atacando o passado recente e o presente”. Mas, no nosso caso, não há um ataque ao presente, mas uma dissimulação para valorizar as formas mais recentes das relações sociais de produção.
O mandaloriano, um caçador de recompensas galáctico, faz parte de uma guilda que fornece serviços para quem está disposto a realizá-los.
Não há nenhum vínculo empregatício, de modo que o mandaloriano é apenas um prestador de serviço. Clientes pedem a realização de um trabalho, e ele simplesmente vai lá e executa por um preço.
O guerreiro espacial é quem paga pelas despesas do trabalho. Investe muito bem em seus equipamentos, gastando tudo que recebe para fortalecer a sua armadura, melhorar sua nave, ou para pagar por informações que possam ajudá-lo na execução das tarefas.
Vive exclusivamente para executar o seu trabalho e nada mais. Contudo, revoltou-se quando foi contratado para capturar uma criança Jedi. Este é o conflito gerador de uma intriga que vai levar o mandaloriano a viajar para vários planetas da galáxia.
Nota-se que o herói se revolta não por conta das suas condições de trabalho, mas por causa do objeto. Tanto que após esse processo, o mandaloriano continua a trabalhar sob o mesmo sistema, contudo não mais, exclusivamente, para aprimorar seus instrumentos de trabalho, mas para proteger a criança.
É curioso que, ao longo de sua jornada, ele se tornará amigo de seu antigo “patrão” que se revela uma pessoa de bom coração após o poder da criança Jedi o ter curado. Mais uma vez o objeto do trabalho transforma o indivíduo, não as circunstâncias laboriais. As condições de trabalho não importam, o importante é ser honesto e íntegro.
Eles (o mandaloriano e o chefe da guilda) têm um inimigo em comum, o Império, ou melhor, o Estado que domina o planeta do chefe da guilda.
Os dois se juntam, com o auxílio de uma ex-soldado rebelde e conseguem expulsar o Império do planeta, estabelecendo assim uma relação de amizade longe de qualquer interferência estatal que pudesse prejudicar o sistema de trabalho adotado pelas guildas.
Falar mais sobre a série seria dar spoilers demais, portanto, vamos direto à análise do conteúdo.
Tudo não passa de uma representação do modelo de trabalho imposto pela Indústria 4.0 que vem sendo desenvolvido nas mais diversas partes do mundo. Esse modelo é marcado pela precarização do trabalho.
Embora Star Wars seja um universo que não demonstra a sua posição no tempo, para nós trata-se de um mundo futurista, já que viagens espaciais são um elemento-chave nesse futuro tecnológico imaginado.
Os defensores da indústria 4.0 usam a tecnologia para promover as novas relações de trabalho. As tecnologias de informação e comunicação (TIC) são a marca do futuro. Alegam que as “restrições de serviços especializados por questões geográficas” são reduzidas. Dizem que sem vínculos com o trabalhador promove-se uma autonomia, facilitando a possibilidade de possuir mais de um emprego, obter uma renda extra ou um modo de divertimento no tempo livre.
A retórica é da “democratização dos meios de produção (bastaria ter um computador/celular, carro ou mesmo bicicleta para a produção autônoma de renda…)”. É um discurso que transforma o trabalhador em cliente, “alegando liberdade para trabalhar quando, onde e como quiser”. Mas a realidade é bem diferente. Assim como vemos a mutação do trabalho, assistimos o mandaloriano de guerreiro se transformar no “novo proletariado de serviços”.
A informalidade integra-se às relações de produção oficiais. Mas se encontra principalmente nas periferias. Como explica Ludmila Costhek Abílio, “a periferia se apresenta e se perpetua nos meios bem-sucedido e invisibilizados de transferir custos e riscos para os trabalhadores e rebaixar o valor de sua força de trabalho, mantendo as altas taxas de exploração”. Será coincidência que a série da Disney retrate a periferia desse universo tão conhecido?
O mandaloriano se apresenta como um autônomo, que vive em um trabalho intermitente, mas subordinado. O personagem não possui vida privada. A inovação trazida pela indústria 4.0 trabalha no mesmo sentido. Há uma privatização do trabalho a ponto deste se misturar com a vida cotidiana, ou até mesmo sucumbi-la. O indivíduo pode ser acionado a qualquer momento do dia para realizar uma tarefa. Ou seja, por trás de um discurso de autonomia do trabalho, possível apenas mediante essa tecnologia, o que ocorre é um maior controle pelo capital sobre as atividades exercidas pelo operário. Sua vida privada se confunde com o trabalho. Nesta relação de trabalho também se rejeita qualquer interferência do Estado. Como podemos ver, há muitas similaridades com o mundo do nosso mandaloriano.
Enfim, o discurso da indústria cultural nunca é vazio e tem como finalidade a reprodução das relações de produção vigentes, as que mantêm ou ampliam a lucratividade do mercado que a sustenta. Atribuindo cargas emocionais aos personagens, e representando elementos futuristas que o consumidor espera ver, já que foi treinado a pensar assim pela própria indústria cultural, esta promove um mundo que a alimenta, paralisando a atividade mental do receptor da mensagem que se afoga no deleite das belas imagens sonoras.
Raphael Silva Fagundes é doutor em História Política da Uerj e professor da rede municipal do Rio de Janeiro e de Itaguaí.