Tijolo no bolso em Paris
Os anos se passaram e nada mudou, nada melhorou, a cidadania não se estabeleceu. O governo democrático, eleito em 2022, trouxe alento, olhou para a fome, para a injustiça social e trocou o discurso do ódio pelo do afeto, do amor. Ainda assim, diante do sistema prisional, os olhos ainda não foram deitados
Saí para caminhar e também correr um pouco, gosto de me exercitar, é o momento em que descanso a mente. Estou em Paris, a cidade luz, que inclusive respira os jogos paralímpicos. Sigo pela beira do Sena. É final de verão e a manhã está ensolarada e fresca. Vejo alguns pescadores, que mais parecem atuar para alguma propaganda do governo, pois, como se sabe, o rio não está para peixe. Paro em frente a uma obra de arte em homenagem a Rimbaud e lembro de um poema do L’Enfant Terrible, lido ainda na adolescência, que dizia algo como “Dos anseios vãos! Tu voas então…”
Tão logo retomo meu caminho e o tijolo que carrego volta a pesar. Fazia algum tempo que ele não me chamava a atenção, que não me fazia lembrar de sua carga existencial. Mas ele novamente se mostra, mais presente do que nunca.
Certa vez, assisti a um filme sobre um casal que perdera o filho pequeno em um acidente de carro, por culpa de terceiro. Os pais não superam a perda, até que a avó materna lhes chama a atenção, eles precisam seguir adiante, afinal ela também já tinha perdido um filho décadas antes. Questionada em como conseguira seguir adiante, se a dor algum dia desaparecia, a velha senhora responde: “nunca desaparece, ela, a dor, com sua intensidade, sua presença, sempre lá está, como um tijolo no bolso, sempre pesando, sempre nos lembrando, mas em algum momento ela deixa de ser o centro de sua vida, o tijolo fica no bolso e não mais no peito”.
Guardadas as devidas proporções, é a sensação que tenho sentido desde que deixei a Vara de Execuções Penais. Passei onze anos de minha vida dentro da prisão. Dia sim e dia sim, durante todos esse tempo, tive contato e testemunhei a vida dos aprisionados, em pavilhões, galerias, corredores e celas. A cada vez, novas historias se apresentavam, novas dores se mostravam, novas violências se constituíam. É duro constatar o quanto o estado pode ser cruel e o quanto um ser humano pode ser reduzido a um objeto de controle, neutralizado e sacrificado em suas mais básicas necessidades, tudo em nome de uma suposta segurança pública, a mando porém de uma terrível necropolítica. O preso sofre de uma objetificação, sente-se um lixo a ser reciclado, e seu grito não é ouvido.
Ao longo dos anos, tentei fazer algo para melhorar a vida de quem lá vivia, ou sobrevivia, tentei até a exaustão e o limite da sanidade, trabalhei para sensibilizar o governo e as pessoas que possuem a responsabilidade direta sobre os seres humanos presos, chamei a atenção sobre o padrão de civilidade a que estamos comprometidos, ao mínimo existencial que a pessoa humana precisa para manter a dignidade. Apresentei a Constituição e as convenções e tratados internacionais, para convencer o estado de que os direitos fundamentais não distinguem presos de livres.
Sei que alguns passos foram dados, algo evoluiu, nem tudo foi ladeira abaixo. Entretanto, o sistema é macro e a opressão é estrutural. Não importam as micro mudanças que conseguimos fazer, tão logo nos vamos e tudo retorna a ser como antes, ou pior.
Por um par de meses, já imaginando a data provável de minha mudança e ida para o Tribunal de Justiça, conversei com os presos, não só de Joinville/SC, onde especificamente atuava, mas de todo o país, das cadeias que visitava e/ou inspecionava. Nessas ocasiões eu informava que estava deixando a jurisdição sobre o sistema, que seguiria para outras plagas, agora no segundo grau. Ao ver em suas faces o desapontamento, misturado com um suspiro e encerrado em um lamento, eu acrescentava que meu compromisso para com eles permaneceria e que mais cedo ou mais tarde eu retornaria a atuar no sistema como um todo, em sentido mais amplo e que, jamais, eu os esqueceria. Minhas palavras eram acolhidas, os presos acreditavam em mim.
E eis que já se passou mais de um ano e meio. Tenho me dedicado à nova área, e até mesmo gostado, porque para mim o direito é apaixonante. Não importa o tema, sempre há humanidades a se tratar, a se garantir, em todos os ramos da Justiça. Entretanto, o tijolo lá está, em meu bolso, pesando. Por vezes eu esqueço de sua existência, mas, quando menos espero ele ressurge e pesa, e pesa muito!
Hoje ele ressurge, no meio de uma maravilhosa manhã. E eu me pergunto: como passar uma semana de férias em uma das cidades mais lindas do mundo, caminhar por seus bulevares, degustar vinhos e provar aromas trufados, sabendo que naquele exato momento em meu país pessoas sobrevivem em masmorras, escravizadas, estigmatizadas pela sua condição econômica miserável e principalmente pela cor de sua pele, a pele preta?
Os anos se passaram e nada mudou, nada melhorou, a cidadania não se estabeleceu. O governo democrático, eleito em 2022 e que iniciou suas atividades em janeiro de 2023, trouxe alento, olhou para a fome, para a injustiça social e trocou o discurso do ódio pelo do afeto, do amor. Ainda assim, diante do sistema prisional, os olhos ainda não foram deitados.
As coisa não vão bem, os governos estaduais não têm traçado planos de estado sólidos, concretos, que visem superar o estado de coisas inconstitucional que impera no cárcere.
E enquanto isso, eu, um ex-juiz da execução penal, flano por Paris…
Sei que não sou responsável por toda essa falência, que não tenho superpoderes, que seria arrogância achar que faria alguma diferença estrutural, que essa culpa não me pertence, mas há uma escuridão em meu ser, um pesado tijolo que me puxa para o abismo e me mostra que não há como ser feliz diante de tanta infelicidade. Há como ser alegre, talvez, mas não feliz.
No filme One Life, Nicholas Winton, interpretado por Anthony Hopkins, é um homem que durante a Segunda Guerra Mundial lidera a salvação de centenas de crianças judias da então Checoslováquia. Décadas mais tarde, “Nicky”, já idoso, não consegue superar a dor de não ter salvado mais crianças, até que uma idosa e influente senhora lhe diz algo assim: “Em toda a guerra, foram milhares de crianças mortas na Checoslováquia, os governos aliados conseguiram salvar no máximo 200 crianças, você sozinho salvou mais de 600! Você precisa se perdoar.”
O céu de Paris se fecha, uma tempestade de verão aponta no horizonte. Chego no hotel em tempo de não me molhar. Winton sabia, eu também sei, é preciso se perdoar, mas e o tijolo?
João Marcos Buch é autor e desembargador substituto.