Um crime silenciado, o tráfico humano é o produto que mais dá lucro
“É preciso denunciar essa mentalidade cada vez mais mercantilista que prevê que o corpo humano vire mercadoria”
O tráfico humano é um fenômeno complexo e multifacetado, alimentado por uma variedade de fatores, incluindo pobreza, desigualdade, conflito armado, falta de oportunidades econômicas, discriminação e falta de educação. Homens, mulheres e crianças são submetidos a diversas violações, como exploração sexual, trabalho forçado, servidão por dívidas, tráfico de órgãos e até mesmo adoção ilegal.

Mulheres são aliciadas com promessas de trabalho em lugares distantes e, ao chegarem ao destino, são obrigadas a se prostituir. Trabalhadores, em busca de uma vida melhor, acabam escravizados em fazendas do agronegócio. Meninas são vendidas para atuarem como empregadas domésticas ou esposas – e há, até mesmo, tráfico de órgãos humanos e venda de crianças para adoção ilegal. “O tráfico de seres humanos é uma ferida no corpo da humanidade contemporânea, uma chaga na carne de Cristo”, diz o Papa Francisco, que tem levantado sua voz contra o problema.
Para o bispo de Roraima e presidente da REPAM-Brasil, Dom Evaristo Spengler, o tráfico humano vem da ganância humana, que não se percebe na outra pessoa como um irmão, mas como um produto que vai dar lucro. “Como romper com essa mentalidade, muito fortemente imposta pelo mundo, de que tudo deve dar lucro? Cortar a madeira na Amazônia e vender para dar lucro – não importa se o meio ambiente vai ser degradado, não importa se Yanomamis estão morrendo de fome, com doenças, invasão dos garimpeiros. Não importa se eu vou traficar uma jovem e levar para uma outra região do Brasil para ser usada, explorada sexualmente para se ter mais lucro. Então, é preciso denunciar essa mentalidade cada vez mais mercantilista que prevê que o corpo humano vire mercadoria”.
O documento que define o que é tráfico de pessoas no âmbito mundial é conhecido como Protocolo de Palermo, um acordo internacional promovido pela Convenção das Nações Unidas e firmado no ano 2000. O Brasil o reconheceu e ratificou quatro anos depois, pelo decreto federal 5.015/2004, seguindo importantes parâmetros estabelecidos pelo Protocolo de Palermo. Isso pautou, em 2006, a concepção da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e, em anos posteriores, dos Planos Nacionais de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas.
Na sociedade patriarcal em que vivemos, o Tráfico de Pessoas atinge em maior número mulheres e meninas. Travestis e transexuais também são mais vulneráveis, em função do preconceito e do estigma social que enfrentam e da não aceitação dentro da própria família ou grupo social. Mesmo que em número menor, também há homens que são vítimas da exploração sexual.
De acordo com o último Relatório Global sobre Tráfico de Pessoas do UNODC (Global Report on Trafficking in Persons 2020), mulheres e meninas seguem sendo as principais vítimas do tráfico de pessoas (65%). A finalidade de exploração sexual, que envolve fundamentalmente vítimas femininas (92%) representa 50% dos casos de tráfico de pessoas no mundo. Ainda segundo o relatório, entre as mulheres vítimas, 77% foram traficadas para a exploração sexual, 14% para a exploração laboral e 9% para outras formas de exploração. Entre os setores onde foram identificadas situações de exploração, o trabalho doméstico abarca fundamentalmente vítimas femininas.
Dom Evaristo comenta a realidade que vem acompanhando nas comunidades da Amazônia: “em Roraima, tenho acompanhado grupos que estão criando perfis falsos na internet com fotos e nome falsos, convidando meninas jovens para irem aos EUA para serem modelos. Uma jovem dessas já tinha feito passaporte para viajar, contou aos seus pais, que foram a Polícia Federal e descobriram essa quadrilha. Eu fico assustado. Há alguns anos, o tráfico humano era o segundo negócio mais rentável do mundo – gerava 32 bilhões de dólares por ano. No ano passado, esses números estariam em torno de 200 bilhões de dólares, a ideia de que se pode tirar lucro de qualquer coisa. E essas quadrilhas estão se fortalecendo”.
Irmã Rose Bertoldo, é membra do grupo de Mulheres da Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM-Brasil), atua há mais de 10 anos na Amazônia e é integrante da Rede Um Grito Pela Vida. A Rede um Grito pela Vida, – junto com outras instituições, como a REPAM-BRASIL, Comissão Especial de Enfrentamento ao Tráfico Humano (CEETH) da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) –, vem operando incansavelmente no enfrentamento e na prevenção ao tráfico de pessoas, que, infelizmente, é uma realidade ainda muito invisibilizada. A partir do início do pontificado do Papa Francisco, ele também deu muita ênfase a essa realidade do tráfico de pessoas. Segundo o relatório da ONU, no ano 2023 foi um boom no Brasil, com mais de 3.000 casos registrados.
“Dentre os casos de aliciamento que temos constatado no trabalho de prevenção da Rede, o maior índice ainda é para exploração sexual, entre meninas e meninos, principalmente pelas redes sociais. Essa realidade é invisibilizada, naturalizando todo esse processo de exploração e escravidão. O enfrentamento a esse crime nessas situações é nossa missão como igreja e sociedade”, destaca Irmã Rose.
Todos nós temos um papel a desempenhar na luta contra o tráfico humano. Devemos estar atentos aos sinais de exploração e denunciar atividades suspeitas às autoridades competentes. Devemos também trabalhar juntos para criar uma sociedade onde a dignidade e os direitos de todos sejam respeitados e protegidos, e onde o tráfico humano seja erradicado de uma vez por todas.
Camila Del Nero é jornalista especialista em Causas e Justiça Socioambiental. Carol Lira é jornalista na área Socioambiental e Direitos Humanos e Analista de Comunicação na Rede Eclesial Pan-Amazônica.