“Então, […] quando a gente está lá dentro [da universidade], a gente sente um baque muito grande do que são essas diferenças sociais. E é muito diferente você saber que isso existe, é muito diferente você estar diante dessas diferenças sociais na sua frente: de ver uma pessoa gastar cinquenta reais num almoço. Isso, a hora que você vê diante de você, a coisa pega bastante e eu acho que a periferia ela tem que ir ocupando a universidade para que ela não seja um espaço só da elite, para que ela seja um espaço de todos mesmo.” (Amanda, professora do Cursinho Livre da Norte CLN)
Este trecho de uma entrevista com uma professora de um cursinho popular narra a entrada e o conflito dos periféricos e periféricas no espaço universitário. Esta é uma das dimensões do campo educacional nas periferias de São Paulo. Por meio de uma pesquisa etnográfica percorremos os três principais elementos que compõe a educação nesse território. A educação formal, representada pelas escolas públicas; a educação não formal, construída pelos espaços de cultura, como saraus, jongos, slams entre outros. E um novo espaço de articulação para formação e enfrentamento das estruturas consolidadas do ensino superior brasileiro, os cursinhos populares,
Para escrever este artigo, recorri à obra de Franz Fanon (2008), Pele negra, máscaras brancas. Como escrever deste lugar ao qual nunca pertencemos (a universidade)? Escrever sobre mim, sobre meus amigos, meus parentes, enquanto o método exigido pela antropologia é o do distanciamento do objeto. Como eu me distancio do que sou? Pode uma antropóloga ser periférica e preta? O problema aqui é de ordem maior, o racismo estrutural. Segundo Silvio de Almeida (2018), o racismo faz parte da institucionalidade, está na estrutura do nosso país. A questão de classe é também uma pauta fundante na sociedade brasileira e o negro é arranjo central nessa discussão. O Brasil foi um país colonizado e construído com suor e sangue preto. Para Florestan Fernandes (1964), raça e classe andam atreladas no contexto brasileiro. Após 132 anos da abolição da escravatura, ocorrida em 1888, ainda temos marcas de grilhões nas universidades ocupadas majoritariamente por brancos.
Educação formal: a escola pública
O primeiro eixo do campo educacional é o institucional, representado pela escola. Núcleo duro do Estado, esta possui legitimidade, em termos weberianos, para educar a população e é obrigatória, o que faz com que dentro da escola você lide com diversos públicos e compreenda a complexidade das violações de direitos das crianças e adolescentes presentes nas quebradas[1].
Há ainda toda a questão material, que é bem conhecida: a falta de espaço físico nas salas de aula, a falta de professores, a má remuneração dos profissionais, a terceirização do pessoal da limpeza e da cozinha. Há também os episódios frequentes de violência, tanto física, entre os próprios alunos e entre alunos e corpo docente, como nas relações interpessoais, fruto de uma série de micro[2] violações de direitos diárias que ocorrem nas periferias.
Nosso trabalho de campo revelou que a maioria dos jovens da Brasilândia cursou até o 9º ano do ensino fundamental, enquanto outros apenas até o 5º ano. Eles alegaram que tiveram que abandonar os estudos porque precisavam trabalhar. Há vários problemas que afetam a escola formal e impedem que ela cumpra sua função de garantir uma educação democrática e libertadora.
Na contra-produção da educação como mercadoria, os sonhadores produzem poesias, trocam ideias e transformam realidades. Agimos no esperançar, como diria Paulo Freire. E foi assim em 2016, quando estudantes secundaristas resistiram à ofensiva do Estado de São Paulo de fechar várias escolas.
Durante a pandemia, integrantes da Escola Estadual Ubaldo Costa Leite, situada no Jardim Guarani, distrito da Brasilândia, estão travando estratégias e lutas cotidianas contra a difusão do novo coronavírus. A intelectualidade está presente aí, nesses intelectuais orgânicos [3] que usam seu saber como forma de engajamento com a comunidade local. A escola pública do ciclo básico, tem uma importante atuação que se revela fundamental numa crise como a pandemia. Neste sentido, a experiência de proximidade é muito diferente do que ocorre em uma a universidade que, mesmo pública, não tem conexão com a comunidade, como discuto mais a frente. Atualmente, as escolas continuam sendo um espaço de potência, onde as famílias buscam ajuda, produtos básicos para sobrevivência na pandemia e informação.

Os Coletivos Culturais: a educação não formal
O segundo eixo que norteia os trânsitos educacionais nas periferias é constituído pelos espaços coletivos de cultura como saraus e coletivos, que promovem e incentivam a juventude periférica a ocupar os bancos das universidades públicas ou particulares.
Os espaços de coletivos culturais têm muita importância na formação dos jovens periféricos. Nessa pesquisa foram observados o Sarau da Brasa e o Samba do Bowl. O Sarau da Brasa nasceu em 2008, dentro de um bar, com a proposta de exercer a cultura dentro do espaço da periferia. O sarau hoje encontra-se na sede do Samba do Congo, no bairro do Morro Grande, próximo à Brasilândia. Eles abrem o sarau tocando tambores, para relembrar seus ancestrais negros e suas raízes africanas. Durante o sarau, jovens recitam poesias, lançam livros e o microfone aberto é usado para anunciar conquistas, como a entrada de um jovem na universidade ou a conclusão de um TCC. Os frequentadores relatam que se sentem inspirados a estudar e buscar mais conhecimento.

O Samba do Bowl surgiu em 2013, com uma roda de samba entre jovens amigos, dentro do bowl de uma pista de skate. A Praça chama-se 7 Jovens, em homenagem a 7 jovens que foram mortos pela Polícia Militar, em uma chacina em 2007, na Rua Olga Benário, no Jd. Elisa Maria, Zona Norte de São Paulo. Em 2014, houve outra chacina que vitimou três jovens na Praça 7 Jovens. As e os moradores protestaram na Av. Cantídio Sampaio e enfrentaram muita repressão por parte da Polícia Militar.
Apesar de toda pulsão de morte disseminada pelo Estado de terror, com sua necropolítica, tornando a morte banal, criando inimigos (pretos, periféricos, LGBTQIAS, imigrantes, dentre outros), nos objetificando como não-humanos (Achille Mbembe, 2018), Existe o Eros, que toma sua forma na caneta, no papel, no grafite, na rima no slam, no sarau, no jongo, na capoeira. Ideias são lançadas para ressignificar realidades tão duras e transformá-las.
Os cursinhos populares
O terceiro eixo dos trânsitos educacionais é o espaço dos cursinhos populares que surgem em um movimento de regresso. Os estudantes saem de suas casas nas periferias e vão estudar em outros lugares – eu não conhecia o centro de São Paulo até cursar a faculdade na Vila Buarque – e depois voltam, carregando com eles seu sonho. Seu interesse é propagar nas periferias o conhecimento absorvido nesses espaços de poder (universidades) e que se tornou acessível por meio de uma série de políticas públicas. O cursinho serve como motivação (desejo) para esse jovem que volta desmotivado, ao finalizar seu curso universitário, mas sem espaço no mercado de trabalho, seja pela sua origem social ou por sua cor.
O cursinho popular é um movimento social que estabelece vínculos entre educadores, alunos e comunidade escolar. Ele prepara jovens das periferias tanto para o vestibulinho de entrada em escolas técnicas quanto para o vestibular das faculdades. O Cursinho Preparando para o Futuro na Brasilândia funciona aos finais de semana em um espaço que é usado por uma creche durante a semana. Já o Cursinho Livre da Norte iniciou-se no Centro Cultural da Juventude (CCJ) e hoje funciona em uma escola municipal. Ele pretende ser diário, inclusive aos sábados.

Em suma, os cursinhos populares fecham essa trinca educacional periférica, constituída hoje pela educação formal – a escola -; a educação não formal – os coletivos culturais -; e os cursinhos populares. Nesses três espaços encontramos o desejo[4]; a vontade de disputar novas formas de pensar, combatendo principalmente a deslegitimação do saber popular, da sabedoria ancestral. O pressuposto é que a vida nos forma todos os dias, como disse Freire (1996). O saber está na disputa pela verdade e esse novo movimento popular que emerge da margem e das bases se propõe ao diálogo com todos os territórios periféricos. Mesmo ainda tendo pouco alcance, comparado à rede de ensino público, os cursinhos e espaços de construção cultural coletiva têm se mostrado espaços abertos para o debate, a favor da liberdade, da igualdade e da promoção dos direitos sociais. Os trânsitos educacionais formam espaços de educação cidadã, que objetivam identificar os problemas locais, analisá-los, discuti-los e pensar formas de resolução para o bem viver.
Jovens da quebrada ocupando espaços acadêmicos
Os jovens das periferias que saem da universidade relatam cenas de perseguição e abuso por sua classe social, raça, gênero e/ou, sexualidade. Preconceitos existem em qualquer espaço, mas são escancarados quando uma sala de sessenta alunos brancos começa a se deparar com alunos pretos. Nós encaramos o silenciamento, a falta de crédito naquilo que é dito durante os debates. A situação é ainda mais grave para mulheres pretas dado o machismo e o sexismo presentes na academia.
A periferia chega na universidade para estremecer as velhas estruturas burguesas que sempre sustentaram uma elite branca, que escreveu sobre o povo pobre, preto e favelado. Esse acesso foi viabilizado por luta social, sobretudos dos movimentos negros e pela implementação de cotas e de uma série de políticas públicas efetivadas no governo do Partido dos Trabalhadores (PT), como o Fundo de Financiamento Estudantil ( FIES), Programa Universidade para Todos (ProUni), Sistema de Seleção Unificada (SISU).
Com a entrada de estudantes pretos e periféricos nas universidades, surgem coletivos que enfrentam as desigualdades presentes na estrutura acadêmica. Coletivos de mulheres, negros, LGBTQIAS questionam a bibliografia, composta majoritariamente por autores brancos; exigem mudanças nas ementas dos cursos; e implementam movimentos a favor das cotas raciais, sempre com enfrentamento e resistência. Mais importante, os coletivos tentam ler a história a partir do olhar dos vencidos, dos colonizados, seguindo as ideias de Boaventura de Souza Santos sobre as epistemologias do Sul global. Essa perspectiva confronta o discurso de que somos todos iguais ou partirmos dos mesmos lugares. Queremos nós mesmos protagonizar e narrar nossas histórias, e para isso precisamos estar vivos e ser ouvidos.
Esse movimento de jovens pretos, pobres e favelados adentrando à universidade está gerando incômodo aos brancos e ricos. A dificuldade de reconhecimento da produção intelectual preta, a exemplo temos Abdias do Nascimento, Clóvis Moura, Beatriz Nascimento, Sueli Carneiro entre outras. Muitas vezes alunos saem do ensino superior sem saber quem são esses autores. Esse apagamento faz parte do racismo estrutural, que está presente no sistema de uma sociedade, favorecendo uma raça em detrimento de outra, em diversas instituições econômicas e políticas, no decorrer da história. Ler um autor negro, causa um nó na garganta, de quem nunca teve que questionar seus privilégios. Há uma dívida histórica com a população preta, que tem sido aniquilada não só física, o que ocorre no Brasil é o que chamamos de epistemicídio[5].
Chegamos a um ponto de ruptura em que não aceitamos mais o olhar colonizador nos analisando. Estamos na quebrada nos desdobrando para nos manter vivos, enquanto a classe média alta desfruta do luxo. Não dá pra escrever com fome, vendo pessoas morrendo de Covid-19 ou por causa da violência policial. Ser um intelectual periférico pressupõe que você não terá tanto tempo para estudar e escrever porque a vida (e/ou a morte) bate à porta. Recentemente, vários editais têm sido dirigidos às periferias. Meus caros, esse dinheiro é nosso, deveria ser doado, pois é uma situação de calamidade pública e nós periféricos ainda temos que escrever editais? Fazer campanhas para arrecadação de fundos (crowdfunding)? Muitos olham para nós, querem escrever sobre nós só que no final nós continuamos aqui, no nós por nós, como sempre foi desde a colônia.
Um outro efeito do acesso de jovens periféricos ao ensino superior detectado por esta pesquisa foi a depressão. Ela é causada pela frustração das expectativas de um futuro melhor que seria gerado pela educação superior. Muitos saem das universidades e continuam trabalhando em cargos que não exigem qualificação e sem perspectivas de melhora. Segundo os professores dos cursinhos ouvidos nessa pesquisa, a pior experiência de suas vidas foi a passagem pela universidade, muitos relataram que em algum momento tiveram depressão. O que nos adoece nesses espaços é o confronto diário com o outro que exacerba nossas diferenças de raça, classe, sexualidade, gênero, geração, território etc., causando atritos que refletem na constituição de sujeitos. Esses espaços de confronto, de conhecimento e reconhecimento, como disse a professora Amanda do CLN, enfatizam as desigualdades presentes em nossa sociedade.
Uma iniciativa interessante, que poderia ser ampliada em escolas e demais espaços educacionais, é a do Coletivo Nise da Silveira, da USP, que busca criar entre os alunos uma rede de apoio para aqueles que estão passando por sofrimento emocional. O ideal é uma parceria entre familiares, rede educacional e rede de saúde pública para prevenir e tratar casos de transtorno mentais causados pela academia e também dentro das escolas públicas.
Espaços de conhecimento e reconhecimento: a elaboração dos seres periféricos e periféricas
Para concluir, compreendemos que adentrar as universidades inseriu os jovens das quebradas num processo de conhecimento e reconhecimento de quem somos. Isso é doloroso e alguns relatos trazem à tona faces duras do racismo. Não é que não sabíamos que éramos pretos e pretas, mas dentro da universidade com brancos ricos fica escancarado o processo de desigualdade e discriminação em um país racista, que não suporta ver a filha da faxineira e do camelô conquistando um diploma universitário, e mais ainda: vislumbrando caminhos para tornar-se professora nessas mesmas universidades.
Os espaços de coletividade periférica como saraus, coletivos culturais e cursinhos populares servem não só como espaços de conhecimento, mas também como brigadas armadas de poder ideológico antifascista e antirracista, que preparam esses jovens para o enfrentamento e a resistência frente à burguesia tão incomodada com a nossa presença em um espaço que é nosso por direito. São espaços de reconhecimento: nós nos olhamos e vemos que somos capazes. Seria para Freire (1997) o exercício da práxis, não apenas da prática, mas a execução de uma atividade pensada e organizada; reflexão e ação sobre o mundo para transformá-lo. Sem ela, é impossível a superação da contradição opressor-oprimido.
Mayara Amaral é socióloga, mestranda em Ciências Humanas e Sociais pela UFABC, pesquisadora do Projeto Observatório de Direitos Humanos em Escolas/ NEV/ USP e articuladora local na Brasilândia, Jd. Elisa Maria.
Este artigo surge a partir da Pesquisa “Periferias de São Paulo: Heterogeneidade e Novas Formações de Vida Coletiva”, coordenada pela Dra. Teresa Pires do Rio Caldeira, no ano de 2018, em parceria com a FGV e a Fundação Tide Setúbal.
[1] Termo usual do campo, quebrada, favela, periferia
[2] Me refiro aqui ao conceito de micropoder de Michel Foucault
[3] Intelectual orgânico é um tipo de intelectual que se mantém ligado a sua classe social originária, atuando como seu porta-voz. É um conceito criado pelo italiano Antonio Gramsci (1891-1937). Durante a pandemia, meu ativismo com a comunidade local aconteceu através do coletivo Produção de Máscaras na Brasilândia.
[4](Lacan, Jacques.1992)
[5] Epistemicídio é assassinato do saber de um povo, a negação dos negros como sujeitos de conhecimento. (CARNEIRO, Sueli, 2005)