Tributação e desigualdade
Se a política tributária brasileira é e foi condicionada à transferência de renda do conjunto da população para saciar o capital financeiro e a banca nacional e internacional, para o futuro precisa ser entendida como um instrumento imprescindível de combate à pobreza e de redução das desigualdades sociaisFátima Gondim|Marcelo Lettieri
De onde viemos?
Até meados da década de 1960, o sistema tributário brasileiro não era eficiente, nem progressivo. Constituía-se de um amontoado de impostos seletivos sobre consumo e selos, ao lado de um conjunto complexo de tarifas e restrições ao comércio internacional. O imposto sobre a renda era pouco progressivo na prática e recaía quase que inteiramente sobre os trabalhadores do setor formal, sujeitos à retenção na fonte, enquanto os cidadãos mais ricos não encontravam dificuldades para escapar às suas obrigações tributárias.
A partir da segunda metade da década de 1960 e até o final da de 1980, promovemos a instituição e expansão da tributação sobre o valor agregado (principalmente via ICMS), reduzimos os tributos sobre comércio exterior, fortalecemos a administração tributária, mas deixamos a redução das desigualdades sociais em plano secundário.
No início da década de 1990, a onda neoliberal “quebrou” em praias brasileiras, recomendando que a carga tributária fosse distribuída sobre base mais ampla, o que, segundo seus defensores, exigia um imposto de renda menos progressivo e a elevação da contribuição dos impostos sobre o consumo. Nesse contexto, defendiam que a política tributária não devia ser utilizada como instrumento de política social, sob pena de reduzir a eficiência da tributação.
A partir de 1995, a política tributária foi redesenhada para beneficiar o processo de mundialização do capital financeiro, de forma a atraí-lo e mimá-lo do ponto de vista fiscal (as reformas do pacote neoliberal propuseram reformas administrativas, visando reduzir os custos das administrações tributárias e do cumprimento das obrigações pelas empresas, principalmente com o objetivo de incentivar o investimento estrangeiro).
Para reduzir a tributação do grande capital e, ao mesmo tempo, garantir a arrecadação necessária ao ajuste fiscal em uma economia debilitada, o Brasil fez a opção preferencial por tributar de “forma fácil” e “invisível”, via tributos sobre o consumo, atingindo, sobretudo, o “Brasil de baixo”, como dizia o poeta Patativa do Assaré. E, assim, foram construídos os tão aclamados “recordes de arrecadação”: aumentando a tributação dos mais pobres e reduzindo a dos mais ricos.
Vejamos as benesses para o “andar de cima”, já no início do primeiro governo FHC: redução da alíquota do Imposto de Renda de Pessoas Jurídicas – IRPJ, das instituições financeiras, de 25% para 15%; redução do adicional do IRPJ de 12% e 18% para 10%; redução da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – CSLL, de 30% para 8%, posteriormente elevada para 9%; redução da base de cálculo do IRPJ e da CSLL ao permitir a dedução dos juros sobre capital próprio; isenção do imposto de renda sobre remessa de lucros e dividendos ao exterior, dentre outros. Além disso, a liberalização financeira internacional abriu novas oportunidades para a fuga de capitais e evasão fiscal por parte das elites, acentuando a desigualdade.
Convém esclarecer o que é a dedução dos juros sobre capital próprio e a quem beneficia. A inovação, criada em dezembro de 1995, possibilita às empresas distribuir juros aos seus sócios e acionistas, reduzindo com isso os tributos a serem pagos. A justificativa para sua criação: a legislação anterior favorecia o endividamento externo da empresa e, para reverter esse quadro, era necessário incentivar o seu financiamento pelos sócios.
Com o país praticando uma das maiores taxas de juros do mundo, as empresas necessitavam de incentivos para usar o próprio capital, em vez de contrair empréstimo externo? Com certeza, não! E como se dá essa operação? Independentemente da ocorrência da operação de empréstimo do sócio para a empresa, esta paga os juros aos sócios e acionistas, tributando-os em apenas 15% (IRPJ), quando deveria pagar 34% caso não houvesse o “incentivo” (IRPJ, adicional e CSLL). Isso beneficia sobremaneira as grandes empresas capitalizadas e lucrativas, sobretudo os bancos, que fizeram e ainda fazem a festa. Não é sem razão que o saudoso tributarista Osires Lopes Filho tenha denominado o artifício de “usura heterodoxa”.
Para o “Brasil de baixo”, foi cobrada a conta do ajuste fiscal imposto pelo Fundo Monetário Internacional – FMI, em 1998. O governo federal lançou o pacote fiscal, incluindo medidas para aumentar a arrecadação e assegurar o superávit primário, em 1999, de R$ 312 bilhões (3,1% do PIB): majoração da alíquota da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social – Cofins, de 2% para 3%; ampliação da base de incidência do PIS/Pasep e da Cofins; elevação da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira – CPMF (atualmente extinta), de 0,20% para 0,38%. Tudo incidindo sobre o consumo!
Mas o que representa para a população mais pobre esse aumento brutal na tributação sobre o consumo? Como as pessoas de baixa renda consomem toda a renda disponível (não há poupança) e compram basicamente gêneros de primeira necessidade, o aumento dos preços atinge de forma “vital” esse segmento. Por isso, a regressividade da estrutura tributária é sentida direta e especialmente pelas classes de renda mais baixa: em 1996, a carga tributária indireta sobre famílias com renda de até dois salários mínimos representava 26% de sua renda familiar; em 2002, pulou para 46%. Para famílias com renda superior a 30 salários mínimos, a carga indireta era de 7,3%, em 1996, e de 16% em 2002, conforme dados do IBGE.
Vale lembrar que também no Imposto de Renda, direto e progressivo, houve confisco. Mesmo com a participação dos salários decrescendo em relação à renda nacional, a arrecadação do imposto sobre a renda do trabalho cresceu 27%, em termos reais, de 1996 a 2001, devido ao aumento de alíquota de 25% para 27,5% e ao congelamento da tabela progressiva do Imposto de Renda Pessoa Física – IRPF.
Enfim, o “modelito” da regressividade que assolou e deteriorou nosso espectro tributário na segunda metade da década de 1990, em especial após o forte ajuste fiscal, é démodé, mas permanece até hoje um Robin Hood às avessas.
Onde estamos?
Analisando a arrecadação tributária, no Brasil, por bases de tributação (consumo, renda, patrimônio, folha de salários e operações financeiras), podemos observar quais setores têm contribuído mais com o financiamento do Estado. O que se observa é uma tributação bastante concentrada no consumo (15,2% do PIB, em 2008), seguida pela renda (7,8%) e folha de pagamentos (6%), enquanto a tributação sobre operações financeiras (0,7%) e sobre o patrimônio (1,1%) é bastante reduzida.
Ou seja, as reformas tributárias recentes têm acentuado uma anomalia do Brasil: aumento da tributação sobre o consumo em detrimento da tributação da renda, agravando o quadro de desigualdade ou, no mínimo, não permitindo uma maior redução desta.
Se observarmos o que acontece em outros países, em comparação ao Brasil, constatamos o seguinte: aqueles com renda per capita mais elevada tendem a tributar mais a renda que o consumo. A arrecadação de tributos previdenciários é muito importante nos países de renda mais elevada (provavelmente em virtude da maior expectativa de vida), chegando a ser a principal fonte de receita na Alemanha, França, Espanha e Japão. A arrecadação sobre o consumo, no Brasil, é muito alta, mesmo quando comparada a países com renda semelhante (Argentina, Chile e Turquia). Esta arrecadação chega a superar a soma da arrecadação sobre a renda e a folha de pagamentos.
E para que (ou quem) pagamos impostos?
A resposta a esta pergunta, e sua visibilidade sempre tão questionada pelo cidadão e pela opinião pública, é fator decisivo nos caminhos da cidadania fiscal e na busca por trazer ao debate segmentos da sociedade historicamente alheios ao mundo fiscal.
O comunicado da Presidência do Ipea, datado de junho de 2009, analisa o destino da carga tributária, destacando os principais programas e ações do governo federal, em termos de volume de recursos e número de beneficiários.
O estudo compara o que foi recolhido aos cofres públicos e o que foi destinado aos programas de governo nas áreas de saúde, educação, previdência e assistência social, desenvolvimento agrário, dentre outras. Ressalta, também, dentre as despesas do governo, o montante destinado ao pagamento dos juros da dívida pública.
Apesar da carência de estudos nessa área em termos desagregados (por família e faixa de renda), alguns dados, mesmo globais, ressaltam a expressiva concentração de renda decorrente da política de juros altos.
Segundo o Ipea, o montante destinado ao pagamento de juros da dívida pública recebeu, em 2008, somente do governo federal, 3,8% do PIB, enquanto o Programa Bolsa Família, que complementa a renda de 12 milhões de famílias, custou ao governo federal 0,4% do PIB: dez vezes menos!
O financiamento do Programa Bolsa Família exige arrecadar o equivalente a um dia e meio de trabalho do contribuinte. Já para financiar a ciranda financeira, União, estados e municípios destinam, em conjunto, 5,6% do PIB (valores de 2008), ou seja, 20 dias e meio de trabalho do cidadão brasileiro; quase um sexto de toda a carga tributária arrecadada em 2008.
Comparado ao que se destina à saúde e educação, a “derrama” dos cofres públicos – para patrocinar escandalosos ganhos aos rentistas – fica ainda mais aberrante. Para o SUS, em 2006, foram destinados 3,6% do PIB, ou 13 dias de trabalho do contribuinte. Para a Educação, 4,3% do PIB, ou 15,7 dias.
Mas o que não é dito ao contribuinte brasileiro? Que ele trabalha quase 3 semanas para pagar as despesas com elevadas taxas de juros para a classe de alta renda! E que essa monumental transferência aos 20 mil clãs de alta renda, que se beneficiam da dívida pública, representa uma transferência do Estado infinitamente maior do que recebem milhões de famílias de baixa renda (Marcio Pochmann – Agência Carta Maior, 2005).
O custo social da política fiscal foi posto a nu, já em 2002, no artigo “Tudo azul: do outro lado da moeda” (Contraponto, 2002). À pergunta: para onde foi a arrecadação federal, que passou de R$ 81 bilhões em 1995 para R$ 192 bilhões em 2001? A resposta: engordou os ratos na despensa do endividamento garantido pelo Banco Central.
Sem maiores rodeios, constata-se que a política tributária foi condicionada à transferência de renda do conjunto da população para saciar o capital financeiro e a banca nacional e internacional. A relação receita/PIB saiu de 12,6% em 1995 para 17,1% em 2002! A relação juros/PIB salta de 2,9% para 9% no mesmo período.
Para onde vamos?
Estamos, basicamente, diante de três alternativas para as próximas reformas tributárias: podemos ampliar e aprofundar as reformas do pacote neoliberal; promover ajustes no modelo neoliberal, mas sem efetivamente promover uma tributação redistributiva; ou, finalmente, engajarmo-nos em um movimento em direção à maior progressividade do sistema tributário, como condição primeira para uma efetiva redução das desigualdades.
Depois da crise mundial de 2008/2009, há poucos que apostariam na ampliação das reformas do pacote liberal, mas o que temos visto nos debates recentes, incluindo o eleitoral, é uma tentativa mal disfarçada de promover meros ajustes no modelo neoliberal, sem redistribuição efetiva do ônus tributário. E essa tem sido a tônica das principais propostas de reforma tributária: simplificação a qualquer custo, desonerações do capital, desoneração da folha de pagamentos, sem uma avaliação crítica dos efeitos sobre o financiamento da Previdência Social e a regressividade do sistema, entre outras.
Ninguém se atreve a incluir no debate a necessidade de novos movimentos em direção à maior progressividade, o que implicaria repensar, por exemplo, a tributação sobre o consumo de artigos de luxo (como fez o Equador com a criação do Impuesto a los Consumos Especiales, em 2008); os impostos sobre a propriedade, especialmente sobre a terra nua, com a sua utilização como instrumento de reforma agrária; os impostos sobre grandes fortunas e a necessidade de maior progressividade na tributação sobre a renda, Alcançando efetivamente a renda do capital.
É preciso ter a coragem de reconhecer que nas próximas reformas, ainda não será possível abrir mão de receitas, que o reforço da tributação da renda dependerá também da capacidade da administração tributária do país e que é preciso incorporar ao sistema tributário brasileiro não somente o setor informal, mas também e, principalmente, a burguesia capitalista.
Também não pode ser desconsiderado o risco que é fazer uma reforma tributária sem antes ter feito uma reforma política. Nesse ambiente, a chance de criar um sistema ainda mais regressivo é muito grande, pois a probabilidade de os grandes financiadores de campanha serem ainda mais beneficiados é altíssima. Como diria o professor Richard Bird: “os países latino-americanos não têm sistemas fiscais mais igualitários porque a população politicamente relevante é pequena e rica, e ela gosta das coisas como estão”.
Em suma, o Brasil deve decidir o que quer do seu sistema tributário, estabelecendo objetivos específicos, que, certamente, estarão em conflito uns com os outros. Esses conflitos e dilemas devem ser debatidos e equilibrados. Há muitas questões a ser tratadas, e embora não seja fácil responder a todas elas, precisamos fazer as escolhas agora. E uma delas é fundamental: o Sistema Tributário Nacional deve ser instrumento imprescindível de combate à pobreza e de redução das desigualdades sociais.
Fátima Gondim é auditora fiscal da Receita Federal, especialista em Tributação.