Tripudiar do capitalismo
Desde o Golpe de 16, a prisão de Lula e eleição de Bolsonaro, o Brasil se tornou laboratório de um projeto de realização máxima de ganhos privados por grandes grupos financeirizados e internacionalizados
Existe um protesto político, uma revolta social não verbalizada, latente, em meio à atual onda conservadora no país. Um protesto que, de certa forma, é o mesmo que se camufla na desorientação de setores progressistas. Explicitá-lo talvez seja o caminho para dar um norte a uma sociedade à deriva, com risco cada vez mais palpável de cair, de vez, na barbárie. Explicitá-lo talvez seja uma condição para reconectar o discurso e a prática de esquerda com as lutas sociais e com a população não organizada.
É fato que a esquerda, pelas mais diversas razões, reduziu sua capacidade de comunicação e mobilização na sociedade. Lembremos da repercussão do recado de Mano Brown nas últimas eleições presidenciais de que a esquerda poderia perder por não conseguir se comunicar com as periferias, com a população que mais sofre com a violência e a ausência de direitos. Eis aí o ponto, o da esquerda saber ouvir o que há de protesto e revolta nos setores da população que aderem ativa ou passivamente ao conservadorismo. Talvez a dificuldade de ouvir decorra do fato de que setores da própria esquerda tenham abdicado de sua radicalidade e perspectiva de classe.
É verdade que por traz do discurso contrário à corrupção e, mesmo, de apelo à moral empreendedora, neopentecostal, está a negação da política, dos políticos e das instituições. Pior, os trabalhadores nem mesmo se reconhecem como tais, mas como empreendedores, patrões de si mesmos. Mas também é verdadeiro que o “ser empreendedor de si” é vivenciado, pela maior parte da população, como sofrimento e desamparo. Sentimentos que, por sua vez, encontram conforto no evangelismo, mas que podem e devem ganhar um sentido político de luta contra a exploração.

Além do mais, a negação da política contém um protesto difuso contra a falência do Estado em prover benefícios públicos. O “nada mais esperar do Estado” possui, certamente, um sentido distinto nos setores populares do que nos médios e abastados. Um entendimento, inarticulado, de que nada mais se pode esperar do poder público, pois esse estaria enfim e, definitivamente, a serviço dos endinheirados, dos grandes interesses privados. Algo como uma centelha de consciência de classe, que pode e deve se tornar fogo.
Já o não enfretamento do poder econômico pelos governos petistas acabou por ser relevado por setores progressistas expressivos e permanece sufocado no peito de ativistas, militantes e intelectuais. Esta espécie de renúncia tática ao projeto redistributivo se explica, por um lado, pelas melhorias sociais ocorridas no período e, por outro, pelo duro golpe sofrido pelo partido, incluindo a prisão sem provas de Lula, sob o comando de frações da elite econômica, apoiadas justamente na tal onda conservadora.
É também verdade que o conservadorismo se alimentou da desilusão de que um partido, com a trajetória do PT, teria se curvado igualmente aos poderosos e, portanto, confirmado ao senso comum de que contra eles nada se pode fazer.
Algumas forças progressistas, bem como diferentes lutas sociais, reivindicam a justo título uma radicalidade não limitada à órbita petista. A exemplo das lutas por moradia, justiça ambiental, em defesa dos direitos humanos, dos povos indígenas e LGBTI e contra o racismo. Mesmo neste campo as pautas, embora com capacidade de mobilização, mostram-se fragmentadas, sem que se reconheçam aí elementos articuladores, capazes de imprimir uma força e um sentido maior de projeto político. O momento seria, então, de principalmente resistir, de buscar manter as poucas conquistas sociais contra a sanha elitista, cada vez mais conservadora.
Há, contudo, espaço político para uma retomada da energia mobilizadora, da força aglutinadora de um projeto político popular. Está presente tanto entre setores conservadores quanto progressistas, um discurso inarticulado ou contido, contrário ao domínio, à exploração do privado sobre o público. Da grande propriedade sobre o restante da sociedade, fazendo do Estado seu escudo e sustento contra os interesses da população. Cada dia fica mais evidente que o fim da promessa de bem-estar social, da garantia de direitos, impõe-se como exigência do atual estágio da acumulação capitalista, em bases monopolistas e financeiras.
Se entre progressistas esse discurso pode se mostrar mais ou menos articulado, não se traduz em horizonte e pauta de luta contra as corporações e seus proprietários. Assumir tal radicalidade talvez seja, hoje, o maior desafio de uma esquerda que busque retomar sua capacidade organizativa e mobilizadora.
Trata-se de se avançar nesta direção, de articular tal discurso e prática, extraindo daí as pautas e projetos capazes de renovar e revalorar a política em favor dos trabalhadores. Resimbolizar a luta política em termos anti-capitalistas parece ser hoje uma condição para a esquerda escapar da postura reativa, de mera resistência.
Cabe, pois, denunciar e rechaçar, clara e nominalmente, a captura do Estado e dos governos pelos grandes proprietários privados, em sua natureza agora financeira e, portanto, brutalmente desumana. A exemplo da atual proposta de reforma da previdência que introduz o regime de capitalização, que tornam as aposentadorias produtos financeiros. Tal proposta foi elaborada pelo ministro Paulo Guedes, com o apoio do economista Armínio Fraga. Além de Ministro da Economia, Guedes é fundador do banco BTG-Pactual, que tem negócios com um dos maiores fundos de investimento do país, o Fundo Gávea de Fraga que juntamente com o Itaú possui, no seu portfolio de investimentos, fundos de previdência complementar. Descaramento que deixaria a raposa, responsável pelo galinheiro, rubra de vergonha alheia.
Não se tratam de questões técnicas, de confrontar proposições sobre a melhor forma de gestão pública do sistema previdenciário, mas sim de um notório representante da banca privada travestido de gestor público. É inequívoco, portanto, que estes são representantes da casta de proprietários, “inimigos do povo” e precisam ser assim nomeados e tratados. Vale acrescentar que, em meio à crise que elimina milhares de empregos e serve ao indecoroso presidente como justificativa para negar o reajuste do salário mínimo, os bancos e fundos de investimento seguem batendo recordes de rentabilidade.
Cabe, pois, empreender um esforço coletivo de construção de uma pauta pública de controle sobre a grande propriedade capitalista. Uma pauta que proponha a limitação, por meios fiscais e legais, da sua concentração e financeirização, deslocando os recursos públicos em favor do micro, pequeno e médio empreendimento, realizado de modo privado e coletivo. Garantir à população, via gestão e fundo públicos, serviços essenciais de educação, energia, saneamento, saúde e transporte.
Contra o atual estreitamento do horizonte político, há espaço para se avançar socialmente na compreensão de que o problema, ou melhor, o inimigo está, para além e junto do Estado, na classe dos grandes proprietários que hoje fazem do público seu negócio, tripudiando da população. A revalorização do público na prestação de serviços e infraestruturas sociais passa por fazer avançar na sociedade essa compreensão.
Vale lembrar a atual onda de reestatizações na Europa e nos EUA, como atesta o estudo da Transnational Institute (TNI), que aponta mais de 800 casos de serviços sociais que foram retomados de mãos privadas. O estudo aponta como principais motivos para as reestatizações: o aumento de tarifa; a não cobertura das populações mais pobres; falta de transparência; e a prioridade dada pelos agentes privados em remunerar seus acionistas em prejuízo da melhoria dos serviços.
Se os argumentos aqui possam soar como uma saudosa e anacrônica retomada de um projeto político de esquerda, o ponto é o de precisamente argumentar em favor da sua urgência e oportunidade histórica. Desde o Golpe de 16, a prisão de Lula e eleição de Bolsonaro, o Brasil se tornou laboratório de um projeto de realização máxima de ganhos privados por grandes grupos financeirizados e internacionalizados: fim da Petrobras como operadora única do pré-sal; desregulamentação das relações de trabalho; desmonte do sistema de seguridade social com a mudança do regime de previdência em benefício dos grandes bancos; o agigantamento do aparato repressivo do Estado, em articulação com estruturas paramilitares; o amesquinhamento do Judiciário pela “lógica econômica”; a retomada das privatizações de serviços e infraestruturas públicas; o desmonte da legislação ambiental em favor da expansão sem freios do agronegócio e da mineração; cortes e desvinculações das receitas orçamentárias a fim de alimentar ganhos financeiros via dívida pública.
É fato que a antipolítica parece dominar o sentimento popular, mas é também verdade que a realidade é bastante didática sobre os abusos do poder econômico sobre a vida das pessoas. Há que se disputar no campo discursivo e prático os setores conservadores, que incluem parcelas expressivas de trabalhadores. Igualmente, há que se renovar e ampliar o horizonte dos setores progressistas, reanimando e reavivando a luta social. O jogo não está dado. A própria agressividade do ataque conservador, representado pelo Governo Bolsonaro, demonstra a dificuldade da casta capitalista de produzir adesão aos seus projetos moedores de carne humana. Bolsonaro reclamou, recentemente, que no ambiente acadêmico brasileiro se tripudia do capitalismo, pois bem, está na hora de dar razão a ele e, de fato, “tripudiar do capitalismo”.
João Roberto Lopes Pinto é professor de ciência política da UNIRIO e PUC-RJ e coordenador do Instituto Mais Democracia.