Triste lembrança e memória colonial da escravidão, tripla dívida da independência nacional
Terceiro artigo da série Haiti em foco apresenta o peso da dívida na história do país caribenho
Neste texto evocamos um fato histórico significativo que a cada manifestação periódica abala a consciência nacional. Em 25 de abril de 2025[1] recordaremos o bicentenário da publicação do Édito do Rei Carlos X de França, obrigando os (as) trabalhadores (as) libertos (as) de Santo Domingo a pagar uma quantidade de 150 milhões de francos (equivalente hoje a 560 milhões de euros), com vista ao reconhecimento da sua independência.
A velha colônia, que se tornara soberana com o nome de Haiti,[2] não conseguiu dar resposta a essas exigências e as autoridades tiveram que recorrer a um banco francês com uma taxa exagerada de juros que só acabaram por pagar em 1940. É por isso que falamos de dupla dívida.[3]
Esse fato ressurge a cada período histórico memorável como ponto de ajuste de contas político e em busca de uma construção narrativa apropriada ao contexto do momento. Foi o que aconteceu, nomeadamente em 1904 e em 2004 com o slogan da restituição da dívida em moeda atualizada.[4]

No entanto, este ducentésimo aniversário da divulgação do dossiê da dívida da independencia nacional marca mais uma virada. Ele surge em um momento de degradação da política e sobretudo da insegurança. O rescaldo devastador dos dois terremotos, que colocaram o país de joelhos frente ao mundo, trouxeram, desta vez, a narrativa da restituição em um reembolso seguido de remissão dos juros acumulados na lógica de reparação dos danos causados por este ato de pagamento do direito à independência.[5]
Esta escolha de discurso visa por parte das elites livrar-se do colapso da nação da qual deveriam ter a missão de guardiã. Elas tornaram-se defensores de uma causa da qual não são vítimas diretas nem os principais contribuintes. É diferente, no entanto, para as massas camponesas do país que pagaram com os seus suores a referida dívida. O que torna a sociedade mais endividada para com eles por terem contribuído, em seu próprio detrimento, com o pagamento da dívida nacional.
Outros aspectos também são abordados e evocados no capítulo do livro coletivo sobre o Haiti que inspira esta série. Lá, mostramos como essa escolha de aceitação da lógica do pagamento e sua continuidade ao longo de um período de 122 anos foi possível por meio das três fases do seu processo histórico de colonização e modalidade de descolonização, depois, do escalonado processo de decolonialidade da influência francesa.
Vogly Nahum Pongnon é doutor em Ciências Sociais pela UnB, especialista em estudo comparado sobre as Américas e professor na Universidade do Estado do Haiti, onde coordena o Atelier de Recherche sur la Migration (Aterm) do Departamento de Antropologia e Sociologia da Faculdade de Etnologia. E-mail: [email protected].
Bibliografia
ANDREWS, G. R. 1980. The Afro-Argentines of Buenos Aires, 1800-1900(Madison: University of Wisconsin Press,1980.
ARRE MARFULL, M. “Comercio de esclavos: Mulatos criollos en coquimbo o la circulación de esclavos de ‘reproducción’ local, siglos XVIII-XIX. Una propuesta de investigación” en Cuadernos de Historia, N° 35: 61-91. 2011.
BLANCPAIN, François. Un siècle de relations financières entre Haïti et la France (1825-1922), Paris, Éditeur : L’Harmattan, 2001.
CASIMIR, Jean. Haiti et ses elites : l’intermidable dialogue de sourds, Ed.U.E.H, Port-au-Prince, Haiti, 2009.
MIGNOLO, Walter. 1995. The Darker Side of the Renaissance: Literacy, Territoriality and Colonization. Ann Arbor: The University of Michigan Press,1995.
Journal Le Monde. Haïti: comment la France a obligé son ancienne colonie à lui verser des indemnités compensatoires. Le Monde 23 Mai 2022.
Valeries Maren La merlee. Haiti: L’histoire meconnue de la dette. Journal Lepoint,12 juillet 2024.
[1] “Haiti: como a França forçou a sua ex-colónia a pagar-lhe uma compensação compensatória”, O Mundo, 23 maio 2022.
[2] Na época, se escreveu Hayiti.
[3] Em 1911, a cada US$ 3 arrecadados com o imposto sobre o café, principal fonte do país, US$ 2,53 eram utilizados para reembolsar montantes emprestados por investidores franceses.
[4] Em 2003, a dívida foi estimada em: US$ 21.635.135.577.
[5] Fim do pagamento em 1947. A consolidação das dívidas foi feto em 1900. Primeiro pagamento em 31 de dezembro de 1825.
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O Haiti como prisma para a compreensão do passado e do presente
Nesta série especial, apresentamos estudos e reflexões sobre o contexto haitiano a partir de diferentes perspectivas (filosófica, histórica, política internacional, cultural, das migrações, etc.). E elas são tão variadas quanto os campos que reúnem os pesquisadores do grupo de pesquisa Haiti: descolonização e libertação – estudos contemporâneos e críticos. Registrado junto ao CNPq e sob a liderança da UNILA, o grupo reúne pesquisadores de diferentes instituições interessadas em investigar as lutas populares por soberania, o pensamento haitiano no contexto caribenho, continental e mundial e as migrações e a cooperação internacional.
Recentemente, o grupo publicou o livro Haiti na encruzilhada dos tempos atuais: descolonialidade, anticapitalismo e antirracismo [de acesso aberto e disponível em: https://pedroejoaoeditores.com.br/produto/haiti-na-encruzilhada-dos-tempos-atuais-descolonialidade-anticapitalismo-e-antirracismo/] Os capítulos publicados nessa obra são um esforço desse coletivo, que inclui pesquisadores haitianos, que se interessa e se compromete a contribuir com o conhecimento da sociedade brasileira e regional acerca da realidade haitiana, contra as intervenções estrangeiras e pelo reconhecimento da autonomia e soberania do povo haitiano. Os artigos publicados nesta série pretendem apresentar ao público brasileiro alguns achados dessas pesquisas.
Confira a seguir a relação completa de artigos da série seguida da sua data de publicação:
- Revolução, patrimônios difíceis e dignidade no Haiti, por Loudmia Amicia Pierre Louis (publicado em 8 de abril de 2025)
- Intervenções dos Estados Unidos no Haiti: a continuidade da violência sob o pretexto de paz, por Tadeu Morato Maciel e Sarah Rezende Pimentel Ferreira (publicado em 15 de abril de 2025)
- Triste lembrança e memória colonial da escravidão, tripla dívida da independência nacional, por Vogly Nahum Pongnon (publicado em 22 de abril de 2025)
- Movimento popular, mulheres, revolução haitiana e história da libertação latino-americana, por Carlos Francisco Bauer (publicado em 29 de abril de 2025)
- A cooperação internacional e o Haiti: assistência ou ingerência?, por Marina Bolfarine Caixeta e Roberto Goulart Menezes (publicado em 6 de maio de 2025)
- Soberania comunitária haitiana: alternativa contra o arranjo realista-liberal do Conselho de Segurança, por Renata de Melo Rosa (publicado em 13 de maio de 2025)
- O Movimento Constitucional Haitiano de 1801 a 1816 como precursor de um Constitucionalismo Emancipatório Amefricano, por Maria do Carmo Rebouças dos Santos (publicado em 20 de maio de 2025)
- A comunidade migrante acadêmica haitiana na República Dominicana, por Judeline Exume (publicado em 27 de maio de 2025)
- Colonialidade sem branquitude: entre dilema e desafio da integração do Haiti no Sistema-Mundo neocolonial, por Samuel Morancy (publicado em 3 de junho de 2025)