Trump e Bolsonaro: ecos da mesma lógica
Bolsonaro e Trump nunca tiveram a intenção de corrigir os problemas relacionados à desigualdade econômica e à exclusão política crescentes em seus respectivos países, mas sim se valer destes para se locupletar com base na promoção de um salvacionismo mais que tudo auto interessado
Temos assistido nas últimas semanas a cenas que imaginávamos estar enterradas no passado. Tropas blindadas invadindo as fronteiras de um país vizinho dentro no continente europeu, ao mesmo tempo em que refugiados tentam desesperadamente fugir das bombas e ataques crescentes. Apesar de ecos do passado estarem se tornando mais eloquentes a cada dia, a história, contudo, insiste em se repetir com as suas próprias idiossincrasias. E notamos assim, que, diferentemente dos anos 1940, ambos os lados do conflito de agora, Rússia e Ucrânia, acusam-se mutuamente de serem representantes de forças neofascistas em ascensão em escala global nos últimos tempos. Expressões desse fenômeno abundam ao redor do mundo, com teores mais raciais ou menos abertamente racistas, mas, ainda assim, não menos xenofóbicos e autoritários. O processo em si expressa crescentes limites, talvez mesmo a exaustão, da democracia em moldes liberais dentro de um mundo complexo, em que demandas de grupos sociais cada vez mais diversos se multiplicam de forma acelerada; ao passo em que a lógica representativa se mantém, em grande medida, presa às amarras deliberativas do século XIX.
A surpreendente ascensão ao poder de Donald Trump, nos Estados Unidos em 2016, e de Jair Bolsonaro, no Brasil em 2018, são expressões claras dessa mesma crise estrutural. Mas em vez de oferecerem reais mecanismos para atender às demandas por novas e mais eficientes formas de representação política, tais líderes aceleram a própria crise em curso. E assim, como interações renovadas de demagogos autoritário do passado, os neofascistas (demagogos autoritários) de hoje exacerbam a narrativa da falência da representação política mediada mas, como resposta, propõem não o aprofundamento da lógica democrática e sim a proteção dos escolhidos provida pelo líder salvador. De fato, de maneira continuada, líderes de diversos países – como Viktor Orbán, na Hungria, Narendra Modi na Índia, Rodrigo Duterte nas Filipinas, Recep Erdogan na Turquia, Vladimir Putin na Rússia, Trump e Bolsonaro – têm buscado: erodir garantias constitucionais de grupos minoritários; destruir a independência investigativa e judicial de órgãos autônomos do aparelho de Estado; deslegitimar vozes de oposição; suprimir a liberdade de imprensa; e reprimir atores contrários a tais desdobramentos, representados como inimigos internos de uma suposta nação homogênea segundo padrões, raciais, religiosos ou ideológicos.
Em um dos seus aspectos mais surpreendentes e perversos, o autoritarismo de tais líderes – que entendemos como expressão do neofascismo em ascensão – funciona como instrumento central na promoção da agenda econômica em um contexto de recrudescimento do capitalismo global contra as conquistas social-democráticas das últimas cinco décadas.[1] Isso implica na erosão de conquistas fundamentais de grupos historicamente marginalizados, que é efetivada na destruição e privatização de serviços públicos, eliminação de direitos trabalhistas e previdenciários, ataque à legislações ambientais e de garantias de proteção às minorias. Interessantemente, a agenda de hoje não se resume ao ajuste econômico estrutural dos anos 1990, mas busca desmantelar princípios centrais da própria lógica e cultura democráticas, como igualdade formal e acesso ao processo deliberativo, que podem frustrar o projeto neoliberal. Assim, minorias de todo tipo vêm sendo perseguidas em todos países onde tais lideranças chegam ao poder e o próprio sufrágio universal está sendo redefinido não como uma conquista civilizatória necessária para o funcionamento da própria democracia moderna, mas com um privilégio que estaria sendo usurpado por tais minorias para aferir supostos privilégios sociais em detrimento da nação homogeneamente e falaciosamente imaginada.
A ascensão de Trump e a legitimação do neofascismo no centro da política global
Apesar de muitas vezes ser visto, especialmente dentro da narrativa neoliberal promovida com afinco nos 1990 na América Latina, como um paraíso do Estado mínimo, o fato é que o Estado norte-americano sempre atuou de forma decisiva na promoção do crescimento industrial, desde o século XIX, e, no pós-Segunda Guerra, assumiu de vez a liderança no processo de crescimento econômico global, necessário para manter o status de superpotência nuclear. Em termos de projeção econômica, os Estados Unidos da segunda metade do século XX não tinham rival. Mas, paradoxalmente, nesse mesmo período as insuficiências políticas históricas do sistema político norte-americano se tornaram mais visíveis. Os anos após a Segunda Guerra presenciaram a explosão das demandas por direitos civis por parte das minorias raciais, em especial os afro-norte-americanos. Se esse processo representou a acesso a garantias legais a tais grupos, sua inclusão efetiva na economia e cultura hegemônica ainda estaria por se realizar. Ao mesmo tempo, o influente movimento neoconservador (neocon) que ajudou a pautar as políticas republicanas das últimas décadas surgiu dentro desse contexto histórico, advogando uma visão econômica de matriz neoliberal e com um forte apelo aos grupos religiosos conservadores, especialmente evangélicos neopentecostais, e viria a pautar as dinâmicas políticas do país nas décadas seguintes.
Se o movimento já era uma força na década de 1970, ajudando Nixon a se manter no poder, o controle do Partido Republicano ainda estava nas mãos do establisment do contexto do pós-guerra. Isso tudo iria mudar rapidamente quando Ronald Reagan conseguiu articular uma aliança entre neoconservadores e outras forças políticas e populares, com apoio expressivo dos evangélicos, com base em uma retórica nacionalista exacerbada e a promessa da vitória na Guerra Fria. Reagan e os neoconservadores questionavam a capacidade do Estado como representante legítimo e capaz de atender às demandas coletivas da população, num claro elemento da crise da representatividade democrática liberal, que vai se aprofundar nos anos seguintes.[2] E desde então, a retórica neoconservadora/neoliberal articulada com o progressivo desmonte das políticas públicas universais nutriu o ressentimentos sobre as minorias, vistas como grupos privilegiados pelo que restou dos benefícios sociais, e contra o papel do Estado, especialmente nas regiões historicamente industriais, como os estados do Meio-Oeste, e no interior, onde frações do operariado urbano e rural branco se sentiram deixadas para trás.
A eleição de Barack Obama exacerbou ainda mais esse ressentimento, que seria fundamental para a eleição de Trump, o qual ancorou sua candidatura numa retórica nacionalista exagerada. Já em seu primeiro discurso de campanha, Trump demonizou a imagem do imigrante que viria ao país, especialmente da fronteira sul, não só para tomar os empregos dos norte-americanos brancos, mas também para roubar suas propriedades e estuprar suas mulheres. O ex-presidente ativou assim a frustração de pelo menos duas gerações desses segmentos brancos pobres e conservadores de forma a mobilizá-los a finalmente irem às urnas animados para defender sua América. Para isso, utilizou uma estratégia inovadora de comunicação animando sua base potencial, por meio das novas redes sociais, contra imigrantes e negros, sugerindo que tendiam a depender mais de programas sociais, especialmente nos bairros pobres das grandes cidades. Prometia-se uma América que renasceria das cinzas da decadência industrial das últimas décadas e da vergonha da derrota das intervenções militares externas. Reforçava-se a retórica da América Primeiro, não só no sentido que esta seria superior aos outros, mas também na concepção de que os interesses, xenofobicamente definidos, dos Estados Unidos teriam que ter primazia sobre o mundo. Perseguia-se um nacionalismo econômico exacerbado, calcado na pressão por vantagens e aberturas comerciais a parceiros e, ao mesmo tempo, protecionismo sobre investimentos e mercado. Trump foi um presidente claramente pró-grande capital, mas foi também um articulador das massas atomizadas, motivadas por um descontentamento profundo nas dinâmicas históricas da economia norte-americana, que, tragicamente, não encontraram efetivas respostas aos seus problemas para além do constante ativamento ideológico promovido por meio das redes sociais.
A retomada seletiva da agenda anticorrupção e a erosão da democracia brasileira
Na América Latina, o neofascismo se fez acima de tudo evidente no Brasil. Segmentos socioeconômicos sociais que tiveram ganhos sem precedentes em termos de poder de compra nos governos Lula passaram a ver o governo Dilma Rousseff com desconfiança quando a crise dos commodities inviabilizou a sustentação dos benefícios conquistados no decênio anterior e o governo reorientou a política econômica em um caminho mais ortodoxo. De maneira especialmente impactante, os trabalhadores, base política central da Onda Rosa, foram os primeiros a sentir a queda na produção doméstica para a exportação e, consequentemente, dos níveis de consumo em suas próprias economias. Logo, passaram a questionar, muitas vezes de maneira surpreendentemente rápida, os ganhos, certamente frágeis, que tais governos cederam há até pouco tempo. Essa frustração e a busca por alternativas não ficou restrita aos setores mais diretamente ligados à exportação. Da mesma forma, de maneira igualmente acelerada, em grande parte pelo trabalho crítico das mídias locais oligopolistas e conservadoras, as ditas classes médias se envolveram de maneira decisiva na veiculação do seu descontentamento, inclusive ocupando as ruas, arena tradicionalmente das esquerdas, desde pelo menos o processo de transição das ditaduras para democracia nos anos 1980 e 1990.
Como resultado, a região como um todo passou a experimentar uma série de crises políticas, onde a própria lógica representativa liberal seria crescentemente questionada. Mesmo grupos que tinham ganhado muito com o crescimento econômico durante a bonança do início do século, como as elites do agronegócio, se convertem rapidamente em críticos vorazes dos governos de então. Essas elites econômicas poderosas passaram a liderar uma verdadeira cruzada pelo fim de programas sociais, que assumiram, assim, o papel metonímico de representar tudo o que estaria indo mal em um contexto de taxas de crescimento historicamente baixas.[3] E em meio a um quadro de crise hegemônica, os segmentos sociais mais conservadores capturaram a insatisfação popular e a articularam com o combate seletivo e enviesado da corrupção, antipolítica, soluções de mercado e uma retórica nacionalista, a fim de construir a narrativa do novo autoritarismo de direita, com um viés neofascista.[4]
De fato, ecoando eventos ocorridos anteriormente nos Estados Unidos, a erosão da confiança nas instituições governamentais fermentou o surgimento de um líder autoritário articulado com uma narrativa neoliberal contrária às políticas sociais de Estado, que avançou de forma eficaz como solução para os problemas crescentes do país. Como Trump, Bolsonaro explorou a insatisfação e o colapso das instituições, oferecendo uma plataforma política com poucas propostas sistematizadas, a maioria delas inexequível. Sua força como candidato à presidência não estava na plataforma política, mas no poder simbólico embutido na oposição às políticas públicas desenvolvidas durante os regimes democráticos anteriores, o que foi reforçado por uma estratégia de marketing digital colossal com base em fake news disseminadas por algoritmos em redes sociais. Bolsonaro se posicionou também como um representante da aplicação da lei e da ordem, no que foi apoiado pelo ex-juiz Sérgio Moro, caraterizado como o herói da Operação Lava Jato, e da pauta de costumes promovida pelo ex-astrólogo Olavo de Carvalho, maior proponente da agenda rediviva do autoritarismo brasileiro.
Ecoando novamente as manobras de Trump, o candidato autoritário brasileiro cortejou o empresariado, principalmente, do agronegócio, do grande varejo nacional e do mercado financeiro. Esse bloco de poder, com o apoio claro das Forças Armadas e de líderes religiosos fundamentalistas, projetou uma imagem do Brasil como uma sociedade definida por elementos ultraconservadores e apresentou a lei e a ordem como uma resposta à corrupção, a violência urbana e a uma, suposta, degeneração moral. Segmentos neoliberais, por sua vez, remodelaram as reformas como uma ferramenta contra a corrupção e definiram o mercado como um agente econômico competente para expandir a cidadania econômica e social. Por fim, o apelo de Bolsonaro para os segmentos socioeconômicos mais vilipendiados foi também largamente fundamentado no conservadorismo estrutural e em uma narrativa neoliberal anti-establishment e anti-Estado calcada na ideia de que “tem que mudar isso aí!” – tudo embalado em uma lógica dicotômica e nacionalista fundada na ideia de bem contra o mal, que acelerou a erosão da confiança no sistema político democrático existente.[5]
Fica claro, pois, que como expressões de uma crise mais ampla de legitimidade das democracias liberais, Bolsonaro e Trump nunca tiveram a intenção de corrigir os problemas relacionados à desigualdade econômica e à exclusão política crescentes em seus respectivos países, mas sim se valer destes para se locupletar com base na promoção de um salvacionismo mais que tudo auto interessado. Além disso, especialmente após as ações sem precedentes de Trump, em 6 de janeiro de 2021, e os movimentos ainda curso de Bolsonaro para subverter o processo eleitoral em benefício próprio, fica também claro que eles serviram para reinventar o neoliberalismo defensor do grande capital, desta vez sob um quadro ainda mais autoritário. Reverter tal quadro é, portanto, tarefa urgente e imprescindível para a reconstrução e melhora da democracia. Não em busca somente da volta ao status quo, mas sim de processos deliberativos mais inclusivos e, assim, efetivamente, democráticos.
Rafael R. Ioris é professor de História e Política da Universidade de Denver.
Roberto Moll Neto é professor de História e Política da Universidade Federal Fluminense.
Referências
[1] Wendy Brown, In the Ruins of Neoliberalism: The Rise of Antidemocratic Politics in the West. (NYC: Columbia University Press, 2019).
[2] Roberto Moll. “O Neoconservadorismo nos Estados Unidos da América: as ideias de Irving Kristol e a experiência política no governo Ronald Reagan (1981 – 1989).” Revista de Historia. No. 180, 2021.
[3] Jose A. Sanahuja, “Introducción: América Latina en un cambio de escenario. De la bonanza de las commodities a la crisis de la globalización.” Pensamiento Propio, vol. 44, n. 21, 2017, pp. 13-25.
[4] Rafael R. Ioris e Andre Pagliarini, “Ódio e Medo: Bolsonaro e o Retorno da Política Irracional”, E-Relações Internacionais . 19 de julho de 2019. Disponível em: https://www.e-ir.info/2019/07/29/hatred-and-fear-bolsonaro-and-the-return-of-irrational-politics/ . (Acessado em 20 de abril de 2021).
[5] Natalia Damasceno, “Tem que mudar isso ai ‘ta’ OK?”, Le Monde Diplomatique Brasil. 6 de dezembro de 2018. Disponível em: https://diplomatique.org.br/tem-que-mudar-tudo-isso-que-ta-ai-ta-ok/ (Acesso em 20 de maio de 2021).