Tunísia, a embriaguez do possível
Pouco menos de um ano após o suicídio de Mohammed Bouazizi em Sidi Bouzid, que acendeu a chama das revoltas árabes, a Tunísia vai às urnas. Confusa, a campanha eleitoral se desenvolve diante de um cenário de emergência social. Alegria e vertigem diante da página em branco; esperança de uma democracia árabe e muçulmanaSerge Halimi
(Nuvens negras aproximam-se de prédio público na capital Tunis: possibilidade de restauração não pode ser excluída)
A revolução termina quando o ditador é derrubado? Na Tunísia, no momento em que mais de cem partidos, a maior parte desconhecida, buscam um lugar na Assembleia Constituinte que sairá das urnas no dia 23 de outubro, tudo parece possível, tudo parece aberto. Por um lado, a assembleia eleita poderá valer-se de uma legitimidade democrática impecável: eleições proporcionais, paritárias (apesar de 95% dos listados serem homens); regulamentação rigorosa das despesas de campanha, das pesquisas e da propaganda política; nenhum privilégio particular acordado entre os grandes partidos. Representativa, a Constituinte será igualmente soberana. Determinará, ao mesmo tempo, o equilíbrio de poderes, a forma do regime (presidencial ou parlamentar), o lugar da religião nas instituições do país e até, se assim decidirem, o papel do Estado na economia. Alegria e vertigem diante da página em branco; esperança de uma democracia árabe e muçulmana: “Se isso não acontecer aqui, não acontecerá em nenhum outro lugar”, resume um militante de esquerda confiante na capacidade da Tunísia de conservar o papel de comissão de frente da região.
No dia 23 de outubro, as mesas de votação de Sfax serão muito numerosas, ou muito grandes. O eleitor deverá escolher entre 130 listas, das quais quase a metade se declara “independente” (ver box). Como se achar em meio a tanta informação se a profissão de fé da maior parte das listas recicla ao infinito as mesmas expressões e palavras: “identidade árabe muçulmana”, “economia social de mercado”, “desenvolvimento regional”, “Estado estratégico”?
“O cursor da revolução aponta para a centro-esquerda”, analisa Nicolas Dot-Pouillard, pesquisador do International Crisis Group, que publicou diversos relatórios sobre a Tunísia.1 Os caciques desacreditados do partido único de Zine al-Abidine ben Ali (Agrupação Constitucional Democrática, ou RCD, na sigla em francês), como Kamel Morjane, qualificam-se como centristas, assim como seus antigos adversários do Partido Democrático Progressista (PDP), reagrupados ao redor de Nejib Chebbi. Reivindicam-se também como centristas os islâmicos da Ennahda (“Renascença”), assim como dois de seus principais rivais laicos: os ex-comunistas da Ettajdid (“Renovação”) – que, no entanto, situam-se a centro-esquerda. O Partido do Trabalho Tunisiano (PTT), fundado por quadros dirigentes da União Geral Tunisiana do Trabalho (UGTT), está nesse mesmo lugar, enquanto a central sindical acaba de desempenhar um papel fundamental em uma revolta social. Parece confuso? E é. A herança de Ben Ali também contribui para o cenário caótico: a RCD era, ao mesmo tempo, economicamente liberal (e mafiosa), politicamente policialesca e membro da Internacional Socialista.
Virando a página
De qualquer forma, a identidade política dos grandes partidos – ou a personalidade de seus dirigentes nos casos em que essa identidade pode ser flutuante2 – é mais ou menos conhecida. Por outro lado, difícil dizer o mesmo sobre a União Patriótica Livre (UPL), fundada em junho passado por Slim Riahi, um homem de negócios instalado em Londres e que faz fortuna na Líbia. Contrário à limitação dos gastos políticos – que ele entende como uma manobra destinada a impedir a emergência de novas forças, entre elas a sua, que não parece sofrer de falta de recursos –, Riahi escolheu como porta-voz um diplomado em Administração pela Universidade de Paris I, presidente de um grupo de empresas e que acaba de apresentar o programa do partido. “Nosso modelo de desenvolvimento está baseado na participação popular, na economia de mercado com mais igualdade social, na dignidade, no pleno emprego, no desenvolvimento regional.” A UPL zelará, obviamente, pela “manutenção da identidade árabe muçulmana do país”, sem deixar de lado sua “identificação com os valores universais”.3 Imagina-se que, após terem contato com essas plataformas impecavelmente precisas, os eleitores farão o resto do trabalho. Senão, a presença do ex-jogador de futebol Chokri el Ouaer como líder da lista da UPL na região de Túnis se encarregará de atrair os votos necessários…
A UPL é apenas um dos numerosos avatares desses partidos “colcha de retalhos” que ocupam um terço dos engajados na democratização do país. Assim, não se descarta a possibilidade de que, um mês após as eleições, ou um ano depois – quando provavelmente terminariam os trabalhos da Constituinte –, alguns dos que participaram da derrota do regime de Ben Ali, e outros que viviam de favores do poder, ressurjam em primeiro plano. Com o argumento de que a ordem e o trabalho precisariam ser restabelecidos, convenceriam os eleitores com o discurso de que tudo já mudou e está assentado porque o tirano já caiu. Não faltam exemplos históricos. A Revolução Francesa de fevereiro de 1848 é associada ao nome de Alphonse de Lamartine. Dez meses após a proclamação da República, porém, o escritor e antigo ministro das Relações Exteriores apresentou-se para as eleições presidenciais e obteve apenas 17.210 votos. Luís Napoleão Bonaparte, candidato dos monarquistas e do partido da ordem, por outro lado, recebeu nada menos que 5.434.226 votos.
Hamma Hammami, dirigente do Partido Comunista Operário da Tunísia (PCOT), não exclui a possibilidade de uma restauração desse tipo. É por isso que, enquanto as redes sociais espalham rumores sobre as manobras de um “governo sombrio” cujas marionetes seriam os homens de negócios ligados ao antigo regime, ele não para de repetir que “a revolução deve continuar”. Em 9 de setembro, em Lassouda, pequena comunidade agrícola situada a 8 quilômetros de Sidi Bouzid, onde a chama da revolta se acendeu em dezembro de 2010, ele explicava: “As riquezas tunisianas foram confiscadas por ladrões. Atualmente, podemos nos expressar, mas a vida cotidiana não mudou. A revolução deve continuar para garantir o bem-estar da maioria da população. Alguns possuem meios para viajar à América, outros não têm dinheiro nem para comprar uma cartela de aspirina. Resolver o problema da água não custará 1% do dinheiro roubado por Ben Ali”.
A questão social
O “problema da água” havia sido exposto pouco antes por um camponês: “Desde 1956 [data da independência], não obtivemos nada dos sucessivos governos – água potável, infraestruturas. Realizaram ‘estudos’ que não resultaram em investimentos concretos. Inauguram projetos que jamais se concluem”. De fato, 7 mil habitantes da região de Sidi Bouzid dependem de uma canalização precária de água, ao longo da estrada, com problemas constantes de vazamento. A perfuração de um poço foi interrompida, e seu buraco, concretado assim que as autoridades descobriram que seria necessário perfurar rocha para chegar ao lençol de água doce.
A efervescência eleitoral oferece aos habitantes a oportunidade de reivindicar créditos de desenvolvimento, uma escola secundária, um posto de saúde, estradas em bom estado. Embora rica em produções agrícolas (azeitona, pistache, amêndoas), a região é habitada por uma população pobre. Alguns camponeses ainda vivem em casas precárias e minúsculas, e dormem no chão. As belas casas de Marsa e os palácios de Cartago parecem bem distantes. Será que uma cédula de voto para eleger uma assembleia constituinte permitirá punir os responsáveis corrompidos do antigo regime, desmantelar o aparato policial obeso, solucionar essa fratura regional e social, pôr em prática a “discriminação territorial positiva” que recomenda Moncef Marzouki, militante dos direitos humanos e presidente do Congresso pela República (CPR)?
Apesar de negligenciada pelo poder, Lassouda mudou desde 1956: o café da esquina oferece conexão de internet de banda larga; quase todos possuem telefone celular; a maior parte dos jovens – e às vezes seus pais – utiliza o Facebook. Enquanto o camponês de turbante expõe os problemas da água potável à delegação do PCOT, a cena parece uma gravura antiga, mas logo toca seu celular Nokia, o que interrompe a narrativa das reclamações; ao mesmo tempo, o camponês ao lado se distrai com uma mensagem de texto de seu filho, que mora em Paris. Contudo, as mudanças são menos explícitas em outros setores. Durante o encontro, organizado sob um sol de rachar, os espectadores – majoritariamente homens – reúnem-se debaixo de dois toldos diferentes: um destinado aos homens; o outro, às mulheres e às crianças.
Hammami é questionado novamente sobre o tema da religião. Um militante comenta em voz baixa: “A questão é complicada”. A resposta – “Os tunisianos são muçulmanos. Isso não é um problema: defendemos as liberdades individuais, as crenças, a expressão” – suscita um burburinho. E então o chefe comunista acrescenta: “O partido não é contra a religião nem contra as mesquitas. Quando Ben Ali foi a Meca [em 2003, para cumprir sua peregrinação], ele tinha lágrimas nos olhos. E, no entanto, era um ladrão…”. O público ri e aplaude essa evocação magrebiana de Tartufo, de Molière.
Mais tarde, Hammami completa a proposta em nossa frente: “O genro de Ben Ali, Sakkhar el Matri, comprou um grande terreno e nomeou cada estrada que atravessa sua propriedade com um dos 99 nomes do Profeta. Ele fundou o banco islâmico Zeitouna. E criou uma rádio homônima para a difusão de programas religiosos. Quando [o xeque] Ghannouchi [dirigente do partido islâmico] fugiu da repressão de Ben Ali, onde encontrou abrigo? No Reino Unido, um país laico. Quando o laico Ben Ali fugiu da revolução, onde se refugiou? Na Arábia Saudita… Esses episódios equivalem a todas as lições teóricas que se pode dar sobre o tema”. Sobretudo quando as previsões indicam que os islamitas formarão o partido mais importante da próxima Assembleia Constituinte.
Um dos dirigentes da Ennahda, Ali Laaridh, admite que a repressão policial e o exílio modificaram a perspectiva de seus irmãos de combate: “Fomos submetidos a extorsões. Sabemos o que significa a violação dos direitos humanos. Durante cinquenta anos, vivemos em países estrangeiros. E aprendemos o que é a democracia e os direitos da mulher. É preciso, portanto, julgar-nos com base em nossa própria trajetória. E observar como vivemos, nós e nossas famílias: minha mulher trabalha, minhas filhas estudam, uma delas não usa o véu”. É suficiente para tirar as dúvidas relativas ao “discurso duplo” que se imputa aos islâmicos? A advogada de opositores perseguidos pelo antigo regime, Radhia Nasraoui, inquieta-se diante dos encontros da Ennahda, nos quais se veem bandeirolas que proclamam: “Nenhuma voz pode se elevar sobre a voz do povo muçulmano!”. E acrescenta: “Entre o discurso dos dirigentes e a prática de alguns membros, há um grande lapso”. Sem ser reconfortante, porém convincente, Laaridh replica: “De qualquer forma, não há nenhuma garantia prévia de que os outros partidos cumprirão a palavra”.
Laico ou muçulmano
Preocupados em demonstrar que estão do lado da democracia, alguns dirigentes da Ennahda se referem cada vez mais ao “modelo turco” de Recep Tayip Erdogan, que acaba de ser calorosamente acolhido pelos islamitas tunisianos.4 A analogia é tentadora e ao mesmo tempo esclarecedora. Nos dois países, um chefe carismático (Mustafa Kemal Atatürk ou Habib Bourguiba) privilegiou – depois impôs – uma modernização separando o âmbito religioso do político. Chegou mesmo a inspirar-se, às vezes explicitamente, nas referências nacionalistas ocidentais. Defendendo-se de querer fechar esse “parêntese”, a maior parte dos islâmicos tunisianos estima que um pouco como Atatürk “desorientalizou” a Turquia, Bourguiba “desarabizou” a Tunísia. Com o apoio da Europa. O programa da Ennahda – que não coloca em questão o liberalismo ou a abertura comercial – propõe um reequilíbrio entre os investidores e operadores financeiros ocidentais e os “islâmicos” da região do Golfo.
Cada um deles fala de democracia? Laaridh aproveita para reivindicar que a Constituinte seja dotada de “liberdades sem limite”, ou seja, que “possa incorporar as referências religiosas árabe-muçulmanas”. Com Bourguiba, lamenta ele, “o Estado impôs, forçou uma evolução em direção à racionalidade”, um pouco à maneira de um “sistema soviético”. Para ele, não se trata de contestar as conquistas dos últimos cinquenta anos, mas de ponderar que isso deveria ter sido feito “com o mínimo de ônus”.
Os islamitas não se arriscam. Consciente do impacto de um discurso moralizador num país onde as fortunas foram desviadas pelo clã de Ben Ali, a Ennahda teme que esse debate a coloque contra os “erradicadores” ocidentalizados que vivem em bairros abastados. Para estes, contudo, o perigo é grande. “Durante um século, eles foram a fina flor cultural do país”, resume Omeyya Seddik, um militante de esquerda antes membro do PDP. “Eles serão apenas uma entidade residual. Eles apostam a vida nesse negócio.”
O artigo 1º da atual Constituição é objeto de infinitas controvérsias. Foi redigido com esmero por Bourguiba: “A Tunísia é um Estado livre, independente e soberano: sua religião é o islã; sua língua, o árabe; e seu regime, a república”. Propositadamente ambíguo, esse enunciado constata que a Tunísia é muçulmana. Mas poderia também ser lido como prescrevendo tal situação, o que faria do Alcorão uma fonte de direito público. A essa altura, suprimir a referência religiosa indignaria os islamitas; precisá-la desagradaria aos laicos. O mais provável é que o texto atual seja mantido dessa forma. “A discussão sobre o artigo 1º foi lançada pelos islâmicos como uma armadilha aos laicos. E eles caíram. Enquanto a resposta certa seria: por que vocês querem reforçar a natureza muçulmana da Tunísia? Com que objetivo? Para aplicar a charia? Para questionar a igualdade das mulheres? Cada vez que essas perguntas foram feitas, os islamitas recuaram.”
Os socialistas do Fórum Democrático pelo Trabalho e as Liberdades (FDTL) também se recusam a mergulhar no terreno religioso. Quando defendem o código do estatuto civil que confere às mulheres direitos iguais aos dos homens, apresentam-no como elemento fundamental da identidade nacional, não como um “empréstimo” da tradição racionalista ocidental. O programa aborda a questão com a arte consumada da dialética: “A identidade do povo tunisiano está enraizada em seus valores árabe-muçulmanos e é enriquecida por diferentes civilizações; ela é fundamentalmente moderna e aberta às culturas do mundo”. No dia 10 de setembro, Ben Jaffar, dirigente do FDTL, fechou um encontro em Sidi Bou Said (bairro balneário de Túnis) com palavras cheias de esperança: “Os que não querem mudanças se alardeiam. Tenhamos confiança em nós. Um país tão pequeno como a Tunísia, que conseguiu manter-se de pé quando a guerra acoçava suas fronteiras, é um país forte”.
Um país tão forte que poderia até resolver prontamente seus problemas de água potável.
Serge Halimi é o diretor de redação de Le Monde Diplomatique (França).