Ucrânia: dois anos de guerra
A guerra na Ucrânia tornou-se uma alavanca geopolítica que parece apontar para “o retorno da nação” na agenda do imaginário político. Leia a primeira parte do artigo sobre o tema
Há dois anos, o conflito na Ucrânia tem sido o nó górdio da geopolítica. Sendo ainda mais preciso ― apesar da controvérsia que, para muitos, isso possa produzir ―, ele tem sido o nó górdio que parece ter vindo para atar e cingir o declínio da hegemonia anglo-americana.
Seus desdobramentos foram ainda mais amplos do que se podia, à primeira vista, imaginar, sobretudo no reconhecimento do poder militar das potências internacionais e dos fundamentos econômicos e institucionais desse poder, não apenas fazendo emergir o vislumbre efetivo de uma assim chamada “ordem multipolar” como também alterando, quase que por inteiro, as coordenadas de fundo em que se moviam os aparentemente pacíficos projetos de gestão do mundo (o Great Reset, por exemplo) e as novas grandes narrativas (por mais que o excepcionalismo pós-moderno tenha por hábito descartar sumariamente como válida a ideia de “grande narrativa”, salvo para o reconhecimento da transcendência das “verdades” que lhe dizem respeito[i]). É de se esperar que ambos ― projetos e narrativas ―, engendrados pela ordem hegemônica até então vigente, também se vejam, cedo ou tarde, esvaziados.
Alguns poderiam se sentir tentados a acrescentar a esse quadro o atual conflito no Oriente Médio. Mas, visto este último por um olhar analítico que vá além da singularidade irredutível de um fenômeno concreto, o que ele sugere é que tanto os cálculos sobre as expectativas conjunturais (a nulificação política da Palestina por meio dos Acordos de Abraão) que moveram a resposta do Hamas, quanto as expectativas estratégicas comuns aos membros do Eixo da Resistência, parecem ter levado em conta não só o novo balanço de forças instaurado pelo conflito na Ucrânia como também o reconhecimento de que a “guerra do Ocidente” já não é mais eficaz para impor as vontades deste ator coletivo, o Ocidente. Não por casualidade, a resposta de Israel veio na forma clássica ― senão mesmo amplificada ― da “guerra do Ocidente”, sobre a qual se tratará logo adiante.
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Duas fases da guerra
É possível caracterizar o conflito na Ucrânia pela sucessão (não estanque, mas casualmente sobreposta) de duas fases específicas. A primeira foi desencadeada pelo que se poderia consignar como uma resposta do governo russo à intimidação do Ocidente, que vinha se desdobrando havia 14 anos ou, mais precisamente ― como testemunhou no mês passado, no Fórum de Davos, o ex-presidente tcheco, Václav Klaus ― desde 4 de abril de 2008, momento em que a cúpula da Otan em Bucareste, capitaneada pelos Estados Unidos e pelo Reino Unido, e a contragosto da Europa, decidiu consumar seu avanço em direção às fronteiras da Rússia, dispondo-se a incluir a Ucrânia e a Geórgia naquela aliança militar.
À diferença dos países bálticos, ao norte, o caso ucraniano envolveu uma agressividade nitidamente militar, que incorporou forças políticas radicais da própria Ucrânia (há muito financiadas por programas da CIA), sobretudo a partir do golpe de Estado de 2014, e que se consumou com a ameaça, por parte do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, em fevereiro de 2022, de instalação, no país, de armamento nuclear da Otan.
Nesse momento, a até então mal tolerada (pela Rússia) e deliberadamente não resolvida (pelo Ocidente) repressão neonazista violenta à população etnicamente russa do leste da Ucrânia serviu então como casus belli suficiente e fundamentado para invocar o (novo) princípio estatutário da ONU ― fomentado pelo próprio discurso liberal ― da “responsabilidade de proteger” (uma vez reconhecida a independência das duas repúblicas do Donbass) e intervir no curso da marcha ucraniana e, por extensão, no curso da marcha da Otan na Ucrânia.
Exceto para a grande mídia comercial do Ocidente, que se afanou implacavelmente por silenciar tanto o neonazismo quanto a guerra interna na Ucrânia (ambos, fatos inelutáveis), pode-se dizer que a Rússia “vendeu” razoavelmente bem seu casus belli para o mundo. Particularmente no Sul Global ― mas também um pouco por toda parte ―, e associado à imagem (também inelutável) da perversão neocolonial do Ocidente, esse argumento serviu como uma cunha para deslocar a aparente verossimilhança da massiva propaganda de guerra anglo-americana em torno da “agressão russa” e, progressivamente, corroê-la como nonsense que é. E, assim, o Ocidente acabou “perdendo a narrativa” no Sul Global.
No entanto, ao desencadear sua “Operação Militar Especial” (uma figura jurídica distinta da “guerra”, e que impõe, por consequência, limitação às ações do executivo russo, como até mesmo a dimensão de uma mobilização de soldados), o objetivo imediato do governo russo era assegurar a neutralidade militar da Ucrânia, obstando decididamente sua incorporação à OTAN. Dadas as circunstâncias, essa neutralidade deveria, de fato, assegurar uma não hostilidade. Daí os objetivos declarados pelo presidente Vladimir Putin para a sua Operação Militar Especial, de “desmilitarizar” e “desnazificar” a Ucrânia.
Nessa perspectiva, geralmente pouco compreendida pelos ocidentais em geral, a ação do governo russo se orientou pelo precedente da Geórgia em 2008, com o acionamento de uma força militar profissional limitada (estima-se que em torno de 90 mil combatentes empenhados, contra um exército ucraniano de 210 mil combatentes), para realizar uma operação fundada sobre o princípio operacional do movimento, com ações de profundidade, e que assegurasse uma expressão contundente de força, capaz de desarticular o dispositivo militar da Ucrânia, cercar a capital Kiev e forçar o governo a negociar e assumir uma posição de neutralidade.
Por outro lado, sabia-se que o principal objetivo militar colateral da Otan no cenário ucraniano era anular a presença russa no Mar Negro, bloqueando por oeste a iniciativa econômica eurasiana Cinturão e Rota. Nisso, a Criméia era o bastião a ser conquistado. A operação militar russa tratou então de consolidar uma zona tampão ao norte da península, conectada ao Donbass, e que se tornaria o grande espinho nos planos da Otan, cuja supressão inspirou a última e desesperada tentativa ucraniana de grande operação militar (a “contraofensiva”) no ano passado.
Em um mês de realização, a operação russa parecia ter obtido pleno sucesso para aquilo a que se dispusera, com a Ucrânia dirigindo-se para as negociações de paz em Istambul e estabelecendo uma minuta de acordo, em que o ponto principal era exatamente as garantias em torno da neutralidade. Nesse momento, como é bem sabido hoje, a Otan, observando miopemente as forças dispostas pela Rússia no terreno e acreditando na receita das sanções econômicas, resolveu dobrar a aposta em favor de uma opção maximalista.
No início de abril de 2022, o então primeiro-ministro britânico Boris Johnson dirigiu-se pessoalmente (e de surpresa) a Kiev e convenceu o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky a não assinar acordo algum com os russos, prometendo-lhe que o Ocidente proveria toda a ajuda econômica e militar que precisasse para derrotar a Rússia por completo. Esse não foi apenas um dos muitos erros de avaliação do Ocidente, foi também o movimento que desvelou por inteiro tanto a sua insuperável arrogância quanto a real dimensão das suas más intenções. E, nesse momento, começou-se a gestar a segunda fase da guerra.
Ela não teve início de imediato, nem assumiu suas feições próprias nos movimentos que logo se seguiram. O período que compreendeu a primavera e o verão boreal de 2022 foi um período de investimento logístico de ambos os lados, mas ainda marcado pela relutância da Rússia em ampliar seus contingentes sobre o terreno por meio de uma ampla mobilização de pessoal. As posições russas no nordeste da Ucrânia amargam até hoje as consequências dessa relutância. Ela parece expressar as hesitações, ainda, do governo russo, sobre como conduzir politicamente a guerra. Logo as contingências se tornariam outras.
Com efeito, ao deixar claro que sua intenção era, de fato, infligir uma derrota estratégica à Rússia e, muito provavelmente, recolonizar o país tal como nos anos 90 ― a par das ações hediondas que os neonazistas ucranianos cometiam contra os soldados russos que caíam prisioneiros ―, o que a Otan conseguiu foi substituir no conflito, e em termos de lógica simbólica, o lugar do governo russo pela nação russa. Para os russos, já não se trataria mais de assegurar a neutralidade da Ucrânia, mas de derrotar a Otan e eliminar por inteiro o perigo ucraniano ― no sentido inclusive mais radical, de que a própria Ucrânia, como entidade específica, na forma de Estado e nação, tornara-se um perigo, e não simplesmente por sua causa, mas sobretudo por causa do Ocidente, como as autoridades russas acabaram reconhecendo de forma cabal. Até onde isso vai, já não é mais sequer do exclusivo arbítrio do governo russo, mas desse intrincado de disposições que constitui a nação russa. Se o governo não responder a ela, corre sério risco de tornar-se simbolicamente ilegítimo[ii].
[i] Alguns analistas outsiders têm sublinhado as interconexões lógicas entre a ideologia woke, a plataforma do “capitalismo de partes interessadas” (stakeholder capitalism) e a “agenda climática”. Essas são, provavelmente, as três “grandes” narrativas da contemporaneidade, e que confluem para a Weltanschauung do liberalismo último. A segunda narrativa, do stakeholder capitalism, é seguramente a menos visível, mas é a que orienta a agenda do Fórum Econômico Mundial, de Davos. Quanto à última, apesar da conexão imediata que possa insinuar, ela está apenas colateralmente vinculada ao alarma gerado pelo consenso científico em torno da crise climática (consenso que, para ela, tem uma função apenas instrumental). Assim, a “agenda climática” diz respeito, antes, a uma certa perspectiva de gestão política e social dessa crise, que enfatiza novos circuitos de consumo (mas, ainda assim, baseados no consumo, que avança para e exploração capitalista de novas fronteiras, como as das “novas fontes de energia”), assim como a financeirização das suas variáveis gerenciais (créditos de carbono e fundos ESG, por exemplo), a terceirização de suas iniciativas (nas mãos do “terceiro setor”), com a esfera pública (se for conveniente) acionada apenas por indução residual, e, finalmente, a massificação do artifício discursivo do greenwashing. Afinal, seria no mínimo suspeita uma agenda “ecológica” que derruba uma floresta para colocar uma planta eólica em seu lugar, em nome da “energia verde”.
[ii] Assim, passa a fazer todo sentido uma observação recente do empresário Elon Musk de que outro presidente na Rússia, que não Vladimir Putin, poderia ter uma postura muito mais dura com o Ocidente. Para isso, basta conferir as manifestações correntes do entourage governamental do próprio Putin, em especial do ex-presidente russo Dmitri Medvedev, do secretário do Conselho de Segurança, Nikolai Patruchev, e do presidente do Conselho de Política Externa e de Defesa, Sergey Karaganov.