UE cada vez menos democrática, e menos social
O ministro da Economia francês anunciou que o tratado orçamentário europeu não será “ratificado como está” e que é preciso “complementá-lo”. Mas essa renegociação vai enfrentar dificuldades para alterar um texto que prevê o desmantelamento dos sistemas sociais e dos mecanismos democráticos europeusRaoul Marc Jennar
O Tratado sobre Estabilidade, Coordenação e Governança para a União Econômica e Monetária (TECG) “beneficia, talvez, as relações de amizade política da chanceler Angela Merkel, mas não os milhões de desempregados, trabalhadores, pobres e precários da Europa, que esperam em vão um apoio de verdade por parte das instituições europeias. É por isso que não estamos de acordo”,1 observou recentemente Bernadette Ségol, secretária-geral da Confederação Europeia dos Sindicatos (CES). Não há nada de anedótico na declaração da dirigente da organização, que até esse momento nunca havia contestado qualquer tratado europeu; sua complacência com Bruxelas chegou até a incomodar um de seus fundadores, o sindicalista belga Georges Debunne, que uma vez lamentou que a CES havia se tornado “a corrente de transmissão do patronato europeu”.2
Assinado no dia 1º de março por 25 governos da União Europeia, o TECG – que, notadamente, impõem a “regra de ouro” em matéria de orçamento (ver box) – deve ser ratificado nos próximos meses. Além de dificultar o acesso aos recursos públicos nacionais, está acompanhado de outro tratado que instaura o Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE). Ratificado pelo Parlamento francês em 21 de fevereiro de 2012 – com a abstenção da maioria dos eleitos socialistas e verdes –, o MEE constitui um tipo de FMI que se destina à substituição, a partir de 2013, dos instrumentos criados em 2010 para enfrentar a crise da dívida na Europa.3
Esses dois textos marcam uma etapa decisiva no desmantelamento das instituições democráticas e dos modelos sociais europeus. Após um período de relativa discrição, essa evolução não pode mais ser ignorada: o peso crescente da Corte de Justiça da União Europeia (CJUE) e as jurisprudências que elabora, além dos tratados propostos por Jacques Delors quando presidente da Comissão (Ata Única de 1986, Tratado de Maastricht de 1992), favoreceram a emergência de uma potência tecnocrática que não precisa prestar contas aos cidadãos e pode muito bem privá-los de certas conquistas sociais. Essa distorção se consolidou à força − primeiro pelas decisões tomadas nas conferências de Barcelona (2000) e Lisboa (2002), embora treze dos quinze governos que então faziam parte da União Europeia se inscrevessem no bojo da social-democracia; depois, pela adoção a fórceps, em 2007, do Tratado de Lisboa, cujo conteúdo essencial havia sido rejeitado pelas populações da França e dos Países Baixos em 2005.
Essas imposições anunciavam outra: a utilização do procedimento chamado “simplificado” para a criação do MEE. Teoricamente, essa prerrogativa deve ser usada apenas para “aumentar as competências já atribuídas à União Europeia”.4 Pelo visto, o MEE está nessa categoria. Dirigido por um conselho de ministros de finanças chamados “governantes”, assemelha-se a um Estado dentro de outro: é independente do Parlamento europeu e de seus parlamentos nacionais; seu espaço de funcionamento e seus documentos são invioláveis e não podem ser objeto de investigação. Por outro lado, os chamados “governantes” poderão acionar a CJUE, única competente, contra um Estado-membro contraventor. O MEE visa “mobilizar recursos financeiros e fornecê-los sob estritas condições”5 a um país-membro em grave dificuldade financeira que ameace a estabilidade financeira da zona do euro. Para esse fim, dispõe da capacidade de levantar fundos junto a Estados e aos mercados. Seu capital é fixado em 700 bilhões de euros, fornecidos pelos Estados-membros, que se comprometem “de maneira irrevogável e incondicional” a dotar o MEE dessa quantia “nos sete dias seguintes ao recebimento da solicitação”. De sua parte, a França deverá fornecer 142,7 bilhões de euros. O MEE tem poder de decidir sobre o aumento da contribuição de cada país-membro sem ser refutado.
Quando um Estado solicitar auxílio do MEE, caberá à Comissão – não submetida a um controle democrático ou político –, em conjunto com o Banco Central Europeu (BCE), analisar o risco representado para a zona do euro. Em colaboração com o FMI, apreciará a “sustentabilidade” da dívida pública do solicitante e avaliará suas necessidades “reais” em termos de financiamento. Em seguida, se o auxílio for concedido, novamente é a Comissão, em conjunto com o BCE e o FMI, que negociará os termos do empréstimo com o governo solicitante. Essa “troika” será encarregada de fiscalizar o cumprimento das condições impostas.
O MEE usará o aporte dos Estados-membros, mas também poderá recorrer ao mercado de capitais. Isso significa que ele mesmo será submetido às agências de crédito. Os bancos, que podem pedir empréstimos ao BCE com taxa de juros de 1%, emprestarão ao MEE por uma taxa de juros superior; em seguida, o MEE repassará esse empréstimo aos Estados com uma taxa ainda mais alta. Esses fundos servirão para pagar o débito da dívida e restituir os cofres dos bancos. Em resumo, o novo mecanismo parece muito mais vantajoso aos banqueiros que às populações; ademais, longe de ser uma delegação reversível da soberania, acarreta a perda de independência de forma “irrevogável e incondicional”.
Desde já, prefigura-se uma segunda etapa. Contrariamente ao que afirmam certas personalidades ecologistas que comparam o MEE a uma “mutual”6 por ter acesso a auxílio privado, o Estado que recorrer a esse empréstimo deverá aceitar a austeridade orçamentária prevista pelo TECG, pois os dois tratados são indissociáveis. Assim, é ilusório pensar na possibilidade de renegociar um sem o outro. Dessa forma, o novo presidente francês, François Hollande, não poderá cumprir o que havia prometido em sua campanha.
O TECG obriga os países signatários a constitucionalizar a “regra de ouro”. E, caso a Comissão – única competente – anuncie um “déficit estrutural”,7 os Estados deverão colocar em marcha um mecanismo de correção “automático”, ou seja, “que não será submetido à deliberação parlamentar”. Na prática, isso significa que não serão mais os eleitos, e sim a Comissão constitucional que terá o poder de controlar a adequação dos orçamentos a essa nova regra. Quando um Estado sair da tabela prefixada (déficit orçamentário superior a 3% do PIB e dívida acima de 60%), deverá submeter um programa de reformas estruturais obrigatórias à Comissão e ao Conselho. O conteúdo de um programa como esse é previsível: “reforma” do mercado de trabalho, questionamento das aposentadorias, reduções salariais, cortes nos orçamentos de áreas sociais (educação e saúde principalmente) e privatizações.
O TECG vai de encontro à essência do Parlamento: o poder de decidir sobre as receitas e despesas da nação. Com o tratado, esse papel passa a corresponder à Comissão Europeia. Se antes a função da CJUE se limitava à imposição da legislação europeia, agora se estende ao manejo das diferenças entre Estados – papel que está assumindo com particular empenho, já que se trata de privilegiar as lógicas liberais.8
De acordo com os defensores do tratado, a medida possibilita uma “governança econômica comum”.9 Nada é mais falso: os mecanismos criados visam limitar as políticas orçamentárias e econômicas com regras rígidas e automatizadas que impedem qualquer tipo de adaptação em função da situação particular de cada país. Se o termo “governar” tem algum sentido, não pode ser reduzido à aplicação sistemática de regras imutáveis nem admitir a ausência de responsabilidade da Comissão e da Corte sobre as consequências dessas medidas. Da mesma forma que o ex-presidente François Mitterrand cedeu ao chanceler Helmut Kohl, que reivindicava a independência do BCE, Nicolas Sarkozy cedeu a Angela Merkel na formulação do MEE e do TECG. Mas se Mitterrand submeteu o Tratado de Maastricht a um referendo, o presidente Hollande descartou essa possibilidade ao considerar que o TECG não implica transferência de soberania. Por outro lado, durante sua campanha eleitoral, prometeu que solicitaria renegociação com Merkel sobre a falta de disposições no tratado de dispositivos a favor do crescimento econômico.
Por considerarem que o tratado compromete a soberania nacional ao permitir a transferência de competências sobre assuntos internos, o Reino Unido e a República Tcheca se recusaram a assiná-lo. Nesse cenário, os Estados signatários renunciaram explicitamente à exigência de ratificação unânime dos Estados-membros – um dos princípios da União Europeia. Não bastasse, fixaram o número mínimo de doze ratificações (sobre 25, ou seja, menos da metade) para que o TECG entre em vigor. Os governos aderentes não levaram em consideração os referendos francês e holandês de 2005: mais uma vez impuseram, constitucionalmente, a mesma política econômica e financeira para todos.
Raoul Marc Jennar é autor de Quelle Europe aprés le non? (Qual Europa após o não?), Fayard, Paris, 2007.