“Ultrapassar fronteiras é uma questão humana”
A saúde das populações refugiadas que atravessam fronteiras em busca de sobrevivência traz consigo imagens que lembram as da Segunda Grande Guerra; são imagens de êxodo, de pessoas se deslocando se movendo, enfrentando muros, arames farpados, acampando à beira da estrada, sem atendimento, a não ser aquele oferecido por organizações da sociedade civil, com todos os limites de recursos que elas possuem.
Professora associada do Instituto de Relações Internacionais e da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), Deisy Ventura explica, nesta entrevista, como algumas questões de saúde pública podem restringir a mobilidade humana e, inclusive, cercear direitos.
Como os problemas sanitários e de saúde pública afetam as migrações no mundo?
Quando se discute saúde dos migrantes, em geral, pensamos nas condições sanitárias da partida, nas da trajetória e também nas da chegada. O caminho desse percurso, muitas vezes, é muito duro, e agrava problemas de saúde dos migrantes e dos refugiados.
Temos visto muitas imagens que lembram as da Segunda Grande Guerra; são imagens de êxodo, de pessoas se deslocando dentro de um continente. Imagine uma população que se desloca a pé; são milhares de pessoas se movendo, enfrentando muros, arames farpados, acampando à beira da estrada, sem atendimento, a não ser aquele oferecido por organizações da sociedade civil, com todos os limites de recursos que elas possuem.
Qual é a questão central, então?
A questão é em que condições as pessoas vão sair, viajar e chegar. A questão da saúde é causa e consequência de uma série de problemas. Por exemplo: o migrante quando chega em um novo país, se é submetido a condições de trabalho, se são degradantes, essa é uma questão que vai impactar sua saúde. Casos recorrentes de trabalho em condições análogas à da escravidão ocorrem no mundo inteiro por uma simples razão. Se o migrante não tem a permanência no país de forma juridicamente regular, tende a aceitar qualquer tipo de trabalho, porque estará impedido de acessar o mercado formal de trabalho, já que não tem documentos em dia. Ele poderá ser, então, levado a redes de trabalho irregular e até aceitar condições laborais que vão repercutir sobre sua saúde e vão diminuir ou limitar sua força de trabalho, às vezes até de forma permanente. Vira um círculo vicioso. As condições de trabalho prejudicam a saúde do migrante e o prejuízo da saúde compromete a própria razão de migrar de milhões de pessoas que migram em função do trabalho.
Quais são os vínculos entre mobilidade humana e saúde?
Existe a repercussão sobre a saúde em condições traumáticas de travessia e os problemas de saúde nos países de origem, que podem tornar esse migrante mais vulnerável quando de sua chegada ao local de destino. Temos uma interface que requer pesquisas, políticas públicas e também um trabalho de acompanhamento a ser feito durante o trajeto.
Como os Estados respondem politicamente à relação entre migrantes e saúde pública?
Nos Estados com políticas restritivas, as restrições poderão ser reforçadas. Alguns restringem diretamente regiões que, em determinado momento, vivem surtos de doenças.
Ebola é o terror útil, como definiu um microbiologista francês no auge da epidemia. Quando um vírus sai do lugar no qual ele deveria ter ficado, ele gera oportunidades de mercado para a indústria farmacêutica, como vacinas ou tratamentos, mesmo que até então ela não tivesse se importado com aquela doença. Ela somente se torna uma emergência quando sai do lugar no qual deveria ter ficado. Quantos surtos de ebola já ocorreram na África? Quando ele aconteceu em uma dimensão que gerava preocupação com sua propagação internacional, a partir daí se tornou uma emergência.
Em artigo recente, você escreveu sobre o conceito de “germe de utopia totalitária”. Poderia explicá-lo?
Grande parte da literatura normativa que vem dos centros de controle e prevenção de doenças norte-americanos, e de outras unidades importantes de pesquisa que influem em políticas de saúde pública no mundo inteiro, prega que o mundo não estava preparado para o ebola, a OMS é ineficaz e a gente precisa criar sistemas de vigilância que para alguns atores até deveriam ser independentes da atuação da OMS, ou seja, um controle das doenças fora da OMS para que elas não se propaguem internacionalmente.
Existem outros problemas aí, em parte porque o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial recomendaram reformas do Estado e impuseram condicionalidades que contribuíram para o desmantelamento dos sistemas de saúde nos países mais atingidos pela crise do Ebola, como Libéria, Serra Leoa, Guiné-Conacri.
Por que defender sistemas fortes de vigilância é uma utopia?
Para mim, defender sistemas de vigilância fortes, baseados, se necessário, na militarização da resposta e na contenção da doença, é uma utopia totalitária em dois sentidos. A ideia em si é utópica, porque sempre alguém poderá furar este cerco. O ser humano, felizmente, se move e é incontrolável. As fronteiras são porosas. Se todo o nosso dinheiro fosse investido no fechamento das fronteiras ainda assim alguém poderia furá-las. É utópico no sentido de que é fantasioso. Totalitário, porque prevê o controle absoluto de fronteiras, porque gera violações de direitos e porque não leva em consideração o direito de as pessoas decidirem sobre a própria vida.
*Rodrigo Farhat é jornalista.