Um bairro ocupado: o programa Cidade Integrada no Jacarezinho
Que espécie de polícia é essa que viola o direito à privacidade dos transeuntes e pratica crimes comuns contra a propriedade de quase um terço dos moradores de um bairro? Trata-se da mesma polícia que em poucos meses invadiu as casas de 50% dos entrevistados
Era uma sexta-feira às 13:30h, às margens do Rio Jacaré, onde em maio de 2021 ocorrerá a maior chacina da história do estado do Rio de Janeiro, com 28 pessoas assassinadas durante uma operação da Polícia Civil. Na mesma margem de rio onde os moradores ergueram um memorial para homenagear seus mortos, que em poucos dias foi demolido por policiais civis, com o auxílio de um veículo blindado. Enquanto nós nos sentávamos para almoçar, observamos um grupo de jovens sendo abordados por policiais militares do Batalhão de Choque, que ocupavam o bairro como parte do Programa Cidade Integrada, anunciado pelo Governador Claudio Castro no dia 22 de janeiro deste ano.
Sob a mira dos bicos de fuzil, os rapazes levantavam suas blusas, afastavam as pernas e viravam de costas. Após o procedimento de revista, notamos algo inusitado: um a um, os jovens entregaram os seus celulares a um dos policiais que examinava o conteúdo das mensagens. Não por acaso, eram todos rapazes negros, aparentando não mais que 20 anos de idade, cabelo raspado “na régua” e cavanhaque desenhado, vestidos com bermuda, camiseta e tênis, como a maioria dos jovens moradores de favelas do Rio de Janeiro. Na perspectiva policial, o estereótipo do “Elemento Suspeito”.
Estávamos ainda fazendo algumas entrevistas em profundidade para subsidiar a elaboração do questionário do Observatório do Cidade Integrada que seria depois respondido por 387 moradores. Foi com base nas narrativas coletadas e em absurdos que nós mesmos testemunhamos que tivemos a ideia de incluir perguntas sobre violações que muitos nem mesmo sabem que ocorrem. Policiais do Cidade Integrada obrigam pessoas a desbloquearem seus celulares e mostrarem mensagens pessoais? Qual não foi a nossa surpresa em descobrir que 17% dos entrevistados haviam sofrido esse abuso, outros 30% viram isso acontecer e 23% ouviram falar que acontece sim. Policiais do Cidade Integrada roubam ou danificam objetos que pertencem aos moradores da comunidade? Assustadores 30% dos entrevistados (115 pessoas) tiveram os seus próprios bens subtraídos ou danificados por policiais e outros 56% confirmaram que isso acontece.
Que espécie de polícia é essa que viola o direito à privacidade dos transeuntes e pratica crimes comuns contra a propriedade de quase um terço dos moradores de um bairro? Trata-se da mesma polícia que em poucos meses invadiu as casas de 50% dos entrevistados. Não chegou a 1% o percentual dos entrevistados que negaram a existência de invasões de domicílio e apenas 8% não souberam responder. Os demais 46% viram isso ocorrer ou ouviram falar que ocorre. Trata-se da mesma polícia que em poucos meses abordou na rua 48% dos nossos entrevistados, porcentagem que é maior entre homens (62%) do que entre mulheres (34%) e maior entre jovens (64%) do que entre adultos (46%) ou idosos (31%). Trata-se de uma polícia que atua como força de ocupação em “território hostil” e, portanto, ignora a Lei e as garantias constitucionais no trato com a população civil.
“Eles entram nas casas com uma chave deles. Entram e fazem as barbaridades dele. Usaram o meu banheiro e não deram descarga.”
“Roubaram o perfume da minha irmã que custou de R$ 600 reais e uma garrafa de whisky. O morador precisa conhecer a lei para se proteger dos policiais.”
“Acordei e eles estavam na minha casa. Não deixaram eu colocar uma roupa. Ficaram revistando minha casa comigo pelada. Além da violência deles entrarem sem poder na minha casa, também fiquei travada de medo por conta do olhar deles para o meu corpo. Ainda tenho pesadelo com aquela voz mandando eu ficar quietinha e falando do meu peito.”
“Levaram do meu pai a chave inglesa, levaram chave fenda, Phillips, martelo tudo isso pra arrombar um bar que eles queriam entrar. Ou seja: pegaram os materiais do meu pai para arrombar um bar que eles queriam entrar. Domingo passado estávamos no bar, a polícia mandou todo mundo ir pra casa. Fecharam tudo.”
“Aqui todos pagam pela cadeira do salão. Eles entraram na loja na sexta-feira no dia de pagamento do aluguel do espaço e pegaram o valor de cinco mil reais que estávamos juntando para comprar material. Aí você me pergunta se eu fui denunciar esse roubo? Eu fui e fui esculachado como se eu fosse bandido e não trabalhador. Os ladrões são eles e quem é tratado como bandido soomos nós trabalhadores. Isso é justo dona?”
Com recursos dos nossos impostos, essas forças de ocupação invadem e subtraem residências para enriquecimento pessoal e, não satisfeitos, agridem a população subjugada. Foi 10% o percentual de entrevistados que relataram terem sofrido agressões por parte de policiais. Outros 45% das pessoas disseram ter visto policiais do Cidade Integrada batendo em outras pessoas e apenas 3% afirmaram que isso não acontece. 37% dos entrevistados viram policiais baterem em menores de idade.
Um total de 35 entrevistados viram policiais abusando sexualmente de mulheres e 85 ouviram falar que isso acontece. Uma mulher relatou que ela própria sofrera assédio praticado por policiais do Cidade Integrada que teriam alisado o corpo dela e dito que “uma preta gostosa dessa podia aquecer a minha cama”. Algumas pessoas relataram o estupro de uma menina de 12 anos de idade em que policiais “chuparam o peito dela até sair sangue”. Uma jovem travesti disse ter que apanhado após ter sido alisada e os policiais descobrirem o seu órgão sexual masculino. Quando perguntados sobre agressões a pessoas LGBTQI+ por policiais, 10% relataram que viram isso ocorrer e outros 10% ouviram falar que isso ocorreu.
Experiências desse tipo talvez sejam o motivo pelo qual 62% dos entrevistados querem que o Cidade Integrada acabe e apenas 1% esteja satisfeito com o programa tal como se encontra. Uma crítica muito comum foi a de que os serviços e projetos sociais anunciados não teriam sido entregues e que o bairro teria recebido apenas a ocupação policial. 69% dos entrevistados disseram se sentir mais inseguros com a presença de policiais na comunidade. Eles relataram que as perseguições a suspeitos produziriam correrias totalmente imprevisíveis e que policiais frequentemente atiravam contra os suspeitos, colocando em risco a vida de todos ao redor.
Em razão da insegurança produzida, o Cidade Integrada contribuiu para o empobrecimento da comunidade em virtude dos prejuízos sofridos pelo comércio local. A imprevisibilidade de conflitos armados afastou a clientela que acessava o pujante comércio do bairro. Embora muitos comerciantes tenham obtido acesso a empréstimos no valor de 5 mil reais sem incidência de juros da AgeRio, eles relataram que esse recurso foi utilizado para cobrir o prejuízo causado pelo Cidade Integrada, aumentando assim o seu endividamento.
Alguns moradores e lideranças comunitárias se queixaram de que os investimentos mais robustos em saúde, educação e formação profissional direcionados para a região em razão do Cidade Integrada teriam sido alocados no bairro vizinho de Manguinhos, que não foi submetido à ocupação pela Polícia Militar. A maioria dos entrevistados afirmou que queria sim um aumento dos programas sociais e serviços públicos oferecidos pelo Estado no bairro, mas que não consideravam necessária a ocupação pela polícia militar. Afirmaram preferir um Cidade Integrada sem a participação da polícia, instituição que historicamente se relaciona com a população do bairro de maneira violenta e arbitrária.
A pesquisa realizada em consulta aos moradores do bairro do Jacarezinho sobre a sua percepção e experiências relacionadas ao Cidade Integrada revelou que o programa fracassou em todos os objetivos estabelecidos. Além de falhar em entregar a maioria dos serviços prometidos pelo Estado para o bairro e interromper ou reduzir projetos iniciados, a ocupação do território pela Polícia Militar produziu maior sensação de insegurança na população.
Essa é a “política de segurança pública” oferecida pelo Governo Estado do Rio de Janeiro aos moradores de comunidades, principalmente no governo Castro, que em apenas 2 anos e que acumula centenas de mortes em suas mãos.
Foram coletados mais de uma centena de relatos de violências sofridas, informação que corrobora o resumo dado por um morador sobre a experiência do Programa Cidade Integrada: “bala e esculacho”. Sintetização que muito nos indica sobre passado, presente e, a depender dos resultados da eleição de outubro, talvez também o futuro de milhares de pessoas que residem em favelas no estado do Rio de Janeiro.