Um banquete popular para celebrar a volta da democracia
Exatamente quatro anos após nosso protesto contra a extinção do Conselho, no dia 27 de fevereiro, voltaremos às ruas para fazer um novo conjunto de Banquetaços em municípios de todo o país
Se, em 2016, o Brasil sofreu um golpe em sua caminhada pela conquista de uma sociedade democrática, ao ter uma presidenta eleita retirada do governo sem nenhuma justificativa minimamente consistente; em 2019, um novo golpe atingiu nossa população, sobretudo a mais vulnerável.
Logo no primeiro dia do ano de seu mandato como presidente do país, Jair Bolsonaro assinou um decreto que visava destruir boa parte da estrutura social que havíamos construído em décadas de muito trabalho. Entre as medidas catastróficas do documento, estava o fim do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, nosso CONSEA.
Para quem acompanha a luta intensa contra a fome em nosso território, ficou nítido imediatamente que veríamos gravíssimos retrocessos, já que foi a partir da atuação da sociedade civil junto ao Conselho, que o país criou políticas públicas de segurança alimentar bem sucedidas que se tornaram referência no mundo inteiro.
A repercussão da medida foi intensa e muitas tentativas de revertê-la se seguiram. Nós, movimentos que atuamos pela comida adequada e saudável para todxs, nos mobilizamos imediatamente. A partir do impulso do Coletivo Banquetaço – organização ativista nascida em 2017 para manifestar indignação contra a farinata, espécie de ração processada que João Dória, o prefeito paulistano em mandato na ocasião, queria dar aos estudantes da rede pública e ao povo pobre -, realizamos ações nos quatro cantos do país, protestando em espaços públicos e envolvendo milhares de pessoas.

A forma de atuação não poderia ser mais simbólica da sociedade que buscamos criar: banquetes abertos à população, em que alimentos da agricultura familiar são fraternalmente partilhados em uma festa-protesto que denuncia o sistema injusto e insustentável apoiado pelo governo, ao mesmo tempo em que anuncia a possibilidade de um outro modelo, mais amoroso, ecológico e cheio de vida!
A força das atividades realizadas foi medida pela reverberação que elas geraram e pelos números de alimentos, mãos e barrigas envolvidos no processo, em uma demonstração de articulação em rede e solidariedade que entrou para a história da luta pela Soberania Alimentar no país. Mas o governo agrofascista se fez de surdo – como seguiu fazendo ao longo de todo o mandato – e o nosso CONSEA ficou oficialmente extinto, empurrado para dentro da gaveta em que as demais ferramentas de combate à fome foram escondidas.
E, realmente, a tragédia anunciada veio. E veio a galope! No próprio ano de 2019, já era possível ver o crescimento da miséria devido às medidas econômicas contra os trabalhadores, ao enfraquecimento da Agricultura Familiar frente aos cortes de compras públicas e à impossibilidade de diálogo entre as organizações sociais e os representantes do poder público da nação.
Mas, para complicar as dificuldades já vividas pela população, o caos foi intensificado com a chegada da pandemia e a posterior condução criminosa que o governo brasileiro teve em relação ao seu combate, levando o Brasil a ser um dos piores países ao redor do mundo nessa tarefa e a perder cerca de 700 mil vidas para a doença, sendo boa parte dessas perdas claramente evitável.
Então, em 2020, mais uma vez a sociedade – que nunca deixou de agir em socorro às pessoas em vulnerabilidade, mesmo com o boicote do poder público – se viu com o aumento na demanda de alimentos a serem levados para quem estava com o prato vazio. Para chamar a atenção para o crescimento da insegurança alimentar e da fome no país, nossa rede ativista voltou a se unir e, impulsionada pela energia pulsante do Banquetaço, deu vida a uma nova iniciativa chamada Gente é Prá Brilhar, Não para Morrer de Fome.
De lá para cá, a Gente é Prá Brilhar segue contribuindo para sensibilizar a sociedade para a urgência do combate à fome e ajudar a fazer a comida chegar a quem mais precisa, buscando unir a atuação emergencial com a luta pelas mudanças estruturais necessárias para transformar o atual modelo produtivo e caminhar para que tenhamos um sistema alimentar saudável no país.
Em nossa jornada, ficou cada vez mais evidente que a luta pelo acesso ao alimento estava umbilicalmente ligada à defesa da democracia, já que o governo e boa parte de setores da população, como o agronegócio exportador de commodities e as empresas mineradoras, seguiram pisando nos direitos do povo e minando as instâncias de participação democrática que são vitais para um país soberano.
Foi necessário intensificar a luta política e nossa rede de mobilização se posicionou enfaticamente no cenário de polarização que se desenvolveu frente às eleições que iriam definir os rumos do Brasil. Unimos nossas vozes a um imenso coro no Ato pela Democracia, realizado na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo no dia 11 de agosto de 2022, e levamos a ele a questão do acesso pleno à alimentação em uma ação ativista a que demos o nome de Pães pela Democracia.
A instalação, montada em frente ao edifício da faculdade, localizado no Largo de São Francisco, era composta por uma grande mesa, em que dezenas de pães estavam dispostos para formar a palavra Democracia. Uma cerimônia de bênção, que contou com a presença de representantes de várias matrizes religiosas, precedeu a distribuição de milhares de pães às pessoas ali presentes, muitas delas em situação de rua. O lema da intervenção dava o recado de forma inequívoca – Com a barriga vazia, não existe democracia.
Vieram as eleições e, com a divulgação de seus resultados, uma notícia que trouxe alívio e esperança: o projeto que respeita a vida, representado na esfera nacional pelo líder petista Luiz Inácio Lula da Silva, venceu – mesmo que por uma diferença menor do que era o nosso desejo.
E estamos em 2023: Lula é presidente e, como seu opositor havia feito ao assumir o cargo, também não perdeu tempo. Mas, ao invés de decretar um conjunto de medidas que vai contra os interesses do nosso povo, anunciou boas novas e, entre elas, a volta do CONSEA!
É desse modo que, exatamente quatro anos após nosso protesto contra a extinção do Conselho, no dia 27 de fevereiro, voltaremos às ruas para fazer um novo conjunto de Banquetaços em municípios de todo o país. Será um momento de celebração pela conquista tão suada que podemos, finalmente, anunciar para a sociedade brasileira. Sim, nossas políticas públicas para promover a soberania e a segurança alimentar estão de volta e a população vai ter novamente um canal contínuo de diálogo com o poder público para superar os desafios enfrentados no país. Mas, como hoje o cenário é muito mais dramático, os desafios também se avolumaram e queremos, além de celebrar, sensibilizar as pessoas para a importância de seguirmos na luta para que o CONSEA tenha forças e instrumentos para que possamos botar um fim nas mesas vazias das casas brasileiras e, aí sim, fazer uma verdadeira celebração: a que irá comemorar o fim da fome no Brasil!
Convidamos todxs vocês a estarem conosco nos dias de preparação da festa, nos dias das atividades e nos dias que se seguirão, partilhando o alimento que nutre nossos corpos, nossas almas e a alma da nossa democracia.
Viva o CONSEA, viva a mobilização, a solidariedade e a criatividade da população brasileira!
Susana Prizendt é arquiteta-urbanista e ativista. Atua com políticas públicas socioambientais e faz parte do Coletivo Banquetaço, do Movimento Urbano de Agroecologia – MUDA e da Rede Josué de Castro de Soberania Alimentar.