Um evangelista em Barretos
Com sua apresentação, Deive Leonardo abre uma igreja no Barretão, esse espaço e tempo retirado do cotidiano das pessoas, mas regular, previsto no calendário delas e na agenda dos grandes eventos do país.
A turnê nacional de Antes e Depois, do evangelista Deive Leonardo, se encontrou na segunda-feira, 19, com a Festa do Peão de Barretos. O encontro resultou numa cena religiosa na maior arena de espetáculos do country nacional.
Do alto da arena, pende ao centro um enorme televisor com 4 faces, em que são exibidas imagens em tempo real seja do palco, seja do público. Uma propaganda da própria festa informa que a arena acomoda 50 mil pessoas. A estrela da noite informará que são 30 mil.
Até a aparição de Deive, a produção do evento compassou a espera da plateia com uma contagem regressiva. O cronômetro marcava a instauração de um tempo que muitos esperavam ser extraordinário. Crianças se somavam a casais de homens e mulheres de todas as idades. Era notável a presença de pessoas negras, em contraste com a arquibancada no dia anterior. O clima geral era uma mistura de contentamento com ansiedade.

Créditos: Alisson Demétrio
Deive surge no palco, com uma voz suave, descontraída e urbana. A plateia está de pé na arena de terra vermelha e na enorme arquibancada da festa, chamada carinhosamente de Barretão.
Com a segurança de quem já se apresentou em Barretos em outras oportunidades, Deive não titubeia: “nós estamos aqui num espaço do agro, com o povo rico do agro”. Num ato, associa cristianismo a pujança econômica e o público a ambos.
Sem tomar os presentes por “ricos”, imagina que a riqueza seja um horizonte compartilhado de aspirações. “Toda a riqueza é de Deus. Eventualmente, ele pode nos deixar desfrutar de alguma coisa dela.”
A pregação se centra na história bíblica de Samuel, que Deive apresenta como um adolescente da “casa de Eli”, muito querido por Deus e obediente. Em torno da obediência, Deive reflete sobre o primado da audição sobre a visão numa arena projetada para a produção de imagens que eternizem, inclusive por meio da circulação, as experiências do público na arena. A apresentação era a ocasião para um chamado divino.
Laborando a parábola bíblica em discurso, fala sobre a vida e o mundo: da criação dos filhos à violência contra a mulher. O gênero é uma dimensão sensível da cena. Os homens interagem com Deive, erguendo os braços, às vezes com punhos e olhos cerrados, em adoração. É uma masculinidade outra, que, por exemplo, invoca a audiência usando reiteradamente o vocativo “meu lindo”. Deive o usa assim, no singular, não como um masculino universal.
Seu cristianismo também é de lavra própria. O repertório evangélico está presente no louvor, no modo como constrói suas experiências, nos circuitos que conta ter percorrido como evangelista. Conversões e testemunhos em igrejas pequenas e periféricas desenham sua trajetória como evangélica aos presentes.
Mas, em cena, Deive se afasta do padrão das lideranças evangélicas, que se caracteriza pelo efusivo como marca do extraordinário. Marcações emocionais em interações com a música de Elieser de Tarsis sugerem, ao contrário, uma performance coreografada. Deive chora e não caem lágrimas.
Tem sentido que se perceba, segundo compartilhou com a plateia, como alguém cujo papel é anunciar que Deus bate à porta, informar que chega com mudança, material de limpeza, e perguntar ao dono da casa se ele pode entrar. É, como disse, um “porteiro”, um mediador religioso do tempo presente.
Isso distingue o evangelista de lideranças religiosas cristãs tradicionais. Deive é o único com uma peça no serviço de streaming Netflix. Tem 16 milhões de seguidores no Instagram e ruma para os 10 milhões de assinantes do seu canal no Youtube.
Se outras lideranças cristãs têm números de grande magnitude, só Deive os alcança com seu tipo específico de “igreja”. Para que o público a veja, faz duas operações. Primeiro, separa igreja de organização religiosa, não se filiando a qualquer instituição. Depois, afirma falar a uma comunidade que se forma em torno do nome de Deus e caminha em direção a um horizonte comum.
Na arena, a comunidade-igreja se transmuta em multidão. Se vê una e em tempo real seja na tela dos enormes televisores, seja na tela dos celulares, com os quais usuários do Instagram transmitem a apresentação para seus seguidores.
Na igreja que Deive lidera, há tanto evangélicos quanto católicos. Ele recomenda que os evangélicos na arena desejem “a paz do Senhor” ao católico ao lado e que este lhe deseje “a paz ao irmão”. Com sua trajetória de evangelista, vai produzindo um cristianismo sem marcas denominacionais. Na medida em que os presentes o atendem, um quadro vivo do pluralismo se faz em versão reduzida ao cristianismo.
Com sua apresentação, Deive abre uma igreja no Barretão, esse espaço e tempo retirado do cotidiano das pessoas, mas regular, previsto no calendário delas e na agenda dos grandes eventos do país.
Uma paulistana que trabalhava na festa em Barretos já tinha visto duas apresentações da turnê de Antes e Depois em São Paulo. Aguardava a terceira, agora pelo telão instalado no centro da praça de alimentação. “Você vai ficar maravilhada. Depois volta aqui pra me contar”. O homem de meia idade do Noroeste paulista levava os filhos adolescentes para ver o evangelista. “Voltei porque no ano anterior senti os anjos subirem enquanto Deive pregava”.
Renata Nagamine é Pesquisadora de pós-doutorado no Núcleo de Religiões no Mundo Contemporâneo/Cebrap. Aramis Luis Silva é Pesquisador doutor no Center for Critical Imagination/Cebrap.