Um gesto psicanalítico: o legado de Hélio Pellegrino
Um dos fundadores da Clínica Social de Psicanálise, Hélio lutou contra a ditadura, compôs a Comissão que foi a Brasília negociar a soltura dos presos políticos e chegou a ficar preso
O ano de 2024 marca o centenário de nascimento do mineiro Hélio Pellegrino, figura ímpar na história da psicanálise do Brasil. Seus predicados, no entanto, ultrapassam a escuta sensível e a vida dedicada ao cuidado com o outro, atributos esperados por parte de quem se ocupa do ofício psicanalítico: foi um poeta incendiário, um militante comprometido com a luta contra as tiranias, um jornalista e ensaísta audacioso e uma grande inspiração para muitos de sua geração.
Figura polêmica e cheia de contradições, como são as grandes personalidades, “ele era o homem de todas as intensidades, de todas as paixões, de todas as intransigências, de todas as festas”, como registrou o também psicanalista Heitor O’Dwyer Macedo. A lista de amigos e admiradores era extensa, tal a sinergia que dele emanava, sendo três outros grandes mineiros, Fernando Sabino, Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos, os principais parceiros, de toda a vida.

Imagem: Domínio público
Homem de esquerda, mas que também mantinha amizades à direita, como a que nutriu com Nelson Rodrigues, defendeu com afinco a coexistência de diferentes perspectivas na mesma medida da contundência com que afirmava suas posições. João Batista Ferreira, mais um psicanalista na lista de grandes amigos de Hélio, narra a passagem em que Pellegrino se encontrou com Leão Cabernite, um de seus principais opositores, em uma festa. Hélio se aproxima de Cabernite com os braços abertos e diz “meu leão de chácara, me dê um abraço!”, enlaçando o opositor com a efusiva demonstração de afeto. Cabernite, catatônico, escuta Hélio dizer que não tinha nada que contraindicasse sua demonstração. A relação estava selada, era o seu leão de chácara, mas, ainda assim, uma relação. Estamos falando do analista de Amílcar Lobo, médico que colaborou com a tortura na ditadura militar, motivo pelo qual Hélio acusou seu leão de conivência com o regime e desprezo pela ética da psicanálise. A vinheta parece muito distante de um Brasil que segue polarizado, mesmo tendo passado o momento mais caricato, na história recente, das eleições de 2018.
Hélio lutou contra a ditadura, representou os intelectuais na passeata dos Cem Mil, compôs a Comissão que foi a Brasília negociar a soltura dos presos políticos e chegou a ficar preso, em 1969. Foto histórica é aquela de Hélio com o dedo em riste, liderando cerca de 300 inconformados com a fatídica “sexta-feira sangrenta”, que ocupavam o salão nobre do Palácio da Guanabara para exigir o apoio do governador Negrão de Lima ou sua sumária demissão. O líder afirmava que ali estavam para “interpelá-lo com respeito, mas também austeridade”, mescla de texturas que se encontra frequentemente quando o assunto é Hélio Pellegrino. O episódio foi responsável por causar medo até mesmo em Chaim Katz, figura que muito contribuiu para a psicanálise no Brasil em função de sua verve corajosa e questionadora. É de Chaim a frase lapidar: “Hélio era muito ousado, um ousado verdadeiro, mas era meio maluco”.
Seus dois livros, A Burrice do Demônio e Mineiros Domados, foram publicações póstumas. Sua obra, no entanto, marcada por questões ligadas à psicanálise, à filosofia, à política, à literatura e à religião, se espraia em artigos, crônicas, capítulos e intervenções em diferentes espaços, dando notícias da vivacidade de suas contribuições. Neste ano, esperamos testemunhar o surgimento de muitos trabalhos e iniciativas, celebrando sua vida e obra, somados aos já existentes: Hélio Pellegrino: a paixão indignada, de Paulo Roberto Pires, de 1998, e Lucidez Embriagada, organizado pela neta Antônia Pellegrino, de 2004.
De nossa parte, como psicanalistas, desejamos ressaltar um aspecto em especial. No Rio de Janeiro, cidade que o acolheu por grande parte de sua vida, seu nome se destaca também pela criação, junto com a alemã Anna Kattrin Kemper, a Dona Catarina, da Clínica Social de Psicanálise, um projeto pioneiro que objetivava oferecer atendimento a preço simbólico à população de baixa renda e que funcionou de 1973 a 1991. Foi inspirada na Policlínica de Berlim, uma das tantas clínicas públicas de psicanálise espalhadas pela Europa que buscaram fazer jus ao discurso de Freud no V Congresso Psicanalítico Internacional, em 1918, na cidade de Budapeste. Era preciso que a psicanálise se fizesse acessível às grandes massas e que se comprometesse com a reconstrução de uma sociedade dizimada pela guerra.
Em terras cariocas, a Clínica Social expandiu o que se entendia por tratamento psicanalítico, a dois e a portas fechadas de consultórios, tendo se tornado um refúgio em meio à repressão da ditadura militar, “um respiradouro político”, nas palavras de Kátia Martins Almeida, a quem coube a função de administrar a Clínica. Funcionava como um local de encontros, debates e resistência, onde era possível compartilhar angústias e ideias. Na ditadura, além de suporte de fuga para perseguidos no auge da repressão, teve um papel emblemático que merece ser lembrado. Inês Etienne Romeu estava em Bangu, em prisão perpétua, tendo sido barbaramente torturada na Casa da Tortura, em Petrópolis, e foi atendida semanalmente por uma colaboradora da Clínica. Inês teve, ainda, um notável papel para a história que aqui narramos, já que Amílcar Lobo foi por ela acareado e reconhecido, sepultando as tentativas de minimizar, por parte de uma psicanálise supostamente escamoteada sob o véu do apoliticismo, as contribuições do médico às sessões de tortura.
Ao revirar memórias e arquivos da Clínica, percebemos que a iniciativa não logrou efetivamente o alcance idealizado de ser um espaço dedicado ao povo. No entanto, se a clientela não chegou a ultrapassar os limites de quem conseguia transitar pelos cartões-postais da cidade maravilhosa, podemos dizer que a proposta foi bem-sucedida ao dar importantes passos rumo a uma psicanálise que busque se pintar de povo. Isso porque a iniciativa desafiava a lógica elitista e ortodoxa dos “barões da psicanálise”. Mexia com cânones da formação institucionalizada, e em troca de pequenas fortunas, abrindo espaço para a criação. Vale lembrar que as sociedades filiadas à IPA (International Psychoanalytical Association), que representava a ortodoxia da formação, exigiram que Dona Catarina e Hélio retirassem a palavra “psicanálise” do nome da Clínica, ao que ambos se opuseram veementemente.
À época, poucas eram as escolas e sociedades que aceitavam psicólogos como candidatos à formação analítica, reservada apenas para médicos. Desafiando a máfia de branco, a Clínica foi pensada para ser um espaço aberto, que acolhesse entusiastas da psicanálise, não importando qual fosse sua formação, sem hierarquização de status ou filiação, desde que tivessem feito ou estivessem em análise, dispostos a escutar quem ali se apresentasse. Por lá circularam muitos analistas de várias orientações teóricas, de diversas instituições, uma experimentação incomum até mesmo para os dias atuais, em que a lógica da filiação muitas vezes persiste em sobrepujar aquela da aliança quando se trata do movimento psicanalítico.
Buscava-se criar um ambiente fértil para divergências, debates e a sustentação das ambivalências, essa marca inconteste de que nós somos providos. Intercâmbio com a sociedade, agitação política, ousadia e experimentação técnica. Mesmo não se propondo como um espaço institucionalizado de formação, ou até mesmo por isso, pode-se dizer que formou muitos analistas. Segundo Hélio, a Clínica Social de Psicanálise Anna Kattrin Kemper foi “um gesto, nada mais do que um gesto”. Aqui estamos, acenando de volta, para não deixar morrer o espírito subversivo e transformador da escuta psicanalítica que Dona Catarina e Hélio tão bem encarnaram.
Fernanda Canavêz é psicanalista, professora do Instituto de Psicologia da UFRJ e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRRJ. Coordena o marginália – Laboratório de Psicanálise e Estudos sobre o Contemporâneo.
Fernanda Pacheco-Ferreira é psicanalista, professora do Instituto de Psicologia da UFRJ e do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ, sob sua coordenação atualmente