Um luto subversivo na Tunísia
A tristeza de todo o país, após a morte do homem que conduziu o processo de independência em 1956, contrastou com a atitude do poder, que usou todos os recursos para manter os cidadãos distantes do “funeral nacional”Kamel Labidi
“Não será fácil substituir um homem como eu. No plano sentimental, existem entre o povo tunisiano e eu quarenta anos de vida passados juntos, de sofrimentos vividos em comum, o que não existirá com o meu sucessor.” Pronunciadas em 1972, essas palavras nada modestas do ex-presidente da Tunísia, Habib Burguiba, encontraram, desde o anúncio de seu falecimento, no dia 6 de abril de 2000, uma força profética.
Assim como os onze anos vividos, em outros tempos, em prisões francesas, os treze anos de residência vigiada impostos ao “combatente supremo” (el Mujahid el akbar) – após sua destituição, em 7 de novembro 1987, pelo primeiro-ministro, general Zine El Abidine Ben Ali, que alegou senilidade – não fizeram senão realçar seu prestígio junto aos tunisianos de todas as tendências. Mesmo entre os meios mais críticos ao ex-“presidente vitalício”.
Tristeza popular e arrogância do poder
Além das pessoas mais idosas, que saborearam os frutos da independência – como educação gratuita e o Estatuto da Mulher –, também os jovens que não viveram seu reinado, e mesmo os defensores dos direitos humanos, como o advogado Radhia Nasraui, vítima de seus excessos autoritários, lhe prestaram homenagem.
A tristeza de toda a Tunísia, no dia seguinte ao da morte do homem que a conduziu à independência sem muito derramamento de sangue, em 1956, contrastou com a atitude do poder, que usou de todos os recursos para manter os cidadãos distantes do “funeral nacional”.
Reeleito pela terceira vez em outubro de 1999 – com 99,4% dos votos –, Ben Ali, o autor do “golpe de Estado médico-constitucional”, apareceu no dia 8 de abril, quando do velório de Burguiba, como um presidente ainda sedento de legitimidade. “Empreendemos a mudança do 7 de novembro de 1987 utilizando o que de melhor nos deixou como legado o líder Habib Burguiba, melhorando-o e frutificando-o”, declarou, em sua oração fúnebre.
“Limitações de ordem técnica”
Paradoxalmente, os meios de comunicação estrangeiros comentaram melhor a excepcional trajetória do velho chefe histórico. A imprensa tunisiana recusou-se a fazer uma avaliação dos discursos e “diretrizes presidenciais” que contribuíram para colocar o país no caminho da modernidade. Habitualmente disposta a cobrir, ao vivo, eventos esportivos disputados nos países mais distantes, a televisão nacional recebeu como instrução não divulgar ao vivo a cerimônia do enterro. Os pretextos oficiais foram “o desejo do poder de respeitar o luto observado pelo povo” e os “meios técnicos limitados da televisão tunisiana”,1 criada durante o governo Burguiba há mais de 35 anos.
O Jornal Nacional desse dia, às 20 horas, teve um atraso de 35 minutos – o tempo necessário para os “maquiadores” da desinformação apresentarem uma reportagem não prejudicial ao atual regime: a música militar abafava as declarações gloriosas de Burguiba; os “ninjas” encapuzados do serviço de segurança e suas armas militares foram “apagados”.
O perigo vem da sociedade
Do que poderia ter medo um presidente eleito com 99,4% dos votos? “O presidente Ben Ali sabe que a contestação não virá dos partidos políticos, fortemente diminuídos, nem dos islamitas, muito enfraquecidos. É da sociedade que pode vir o perigo para o poder”, responde Béatrice Hibou, pesquisadora do CNRS em Paris.2
“Pela maneira como as homenagens fúnebres foram conduzidas, tudo parece apontar para a tese que, se Burguiba foi amado por seu povo, em especial pela geração que viveu a independência e os grupos da população que lhe devem certas conquistas democráticas, como as mulheres, ele não era bem quisto, em contrapartida, nas altas esferas dirigentes”, dizia um jornal argelino.3
“Os tunisianos têm orgulho de ter tido um chefe de Estado como Burguiba. As pessoas se identificam com ele porque ele tinha um projeto para seu país. Ele não amava o poder pelo poder. Mesmo que, no plano das liberdades públicas o resultado não tenha sido glorioso e ele tenha pisado um pouco nas instituições”, estima Sana Ben Achur, professora de Direito da Faculdade de Ciências Jurídicas de Túnis. Esse orgulho vem igualmente da imagem que gozava Burguiba no cenário internacional – e, sobretudo, de sua resistência à atração que exerce o dinheiro sobre seus colegas e associados nos países em vias de desenvolvimento.
Anos de ação e agitação
O projeto de Burguiba, do qual fala essa jovem universitária, começou a tomar forma na década de 1920. Indo para Paris para “estudar Direito com o objetivo de combater o protetorado francês”, o ex-presidente retornaria em 1927 à Tunísia com um diploma que lhe permitiria exercer a profissão de advogado. Dedica-se de imediato à política, juntando-se ao grupo do partido Destour (organização nacionalista que propunha o retorno a uma Tunísia tradicional) e colaborando com o jornal L’Etendard Tunisien, antes de fundar, em 1932, L’Action Tunisienne.
Rapidamente, esse dirigente nato, com o dom da palavra e olhar sedutor, entende que a liberação de seu país não pode depender de uma classe política incrustada no coração de Túnis e que não goza da confiança das massas populares.
Em 1934, ele deixa o velho Destour, do xeque Abdelaziz Thaalbi, e funda, com um grupo de jovens, o partido Neo-Destour. Após alguns meses de ação política e “contato direto” com as multidões, o general residente francês, Marcel Peyrouton, manda prender os “agitadores” e ordena sua deportação para o sul da Tunísia. Essa detenção vai até 1936.
Decepção com a Liga Árabe
Novamente preso, Burguiba será libertado em 1942 pelos alemães, mas recusa-se a apoiar as potências do Eixo. “A Alemanha não ganhará a guerra nem a pode ganhar”, escreveu, pouco antes de sair da prisão, numa carta dirigida a seu companheiro de luta, Habib Thameur: “A você e aos militantes, a ordem é entrar em contato com os franceses gaullistas para articular nossa ação clandestina. Nosso apoio deve ser incondicional, é uma questão de vida ou morte para a Tunísia”.4
O apoio dado pelo Neo-Destour à resistência francesa, infelizmente, não foi levado em consideração pelas autoridades coloniais após a derrota das forças do Eixo. Moncef Bey, o soberano mais popular da dinastia então reinante, é destituído e Burguiba, decepcionado com a França, deixa clandestinamente o país. Instala-se no Cairo e frequenta, de 1945 a 1949, os meios nacionalistas e intelectuais árabes. Em 1947, visita os Estados Unidos para defender a causa de seu país. Decepcionado com seus contatos no mundo árabe – especialmente com a Liga Árabe –, ele entende que será necessário contar, sobretudo, com as próprias forças e os movimentos anticolonialistas do Ocidente.
Primeiros passos para a emancipação
De volta do exílio, começa a percorrer a Tunísia para retomar o controle do Neo-Destour, que durante sua ausência foi liderado pelo tenente Salah Ben Yussef, seu futuro rival. Após a derrota, em 1951, de uma experiência num governo de coalizão com o partido Destour, Burguiba compreende que o caminho da independência ainda é longo. Em janeiro de 1952, é preso por ter convocado seus compatriotas a multiplicar as ações de resistência.
A sorte lhe sorri a 31 de julho de 1954, quando Pierre Mendès France, presidente do Conselho (primeiro-ministro) francês, desembarca em Túnis e dá uma declaração em Cartago, e diante do rei, dizendo que Paris não iria se opor à emancipação do povo tunisiano. No dia 1º de junho de 1955, Burguiba volta triunfalmente a Túnis, logo após a assinatura das convenções franco-tunisianas reconhecendo a autonomia interna do país. Sua habilidade em manobrar e sua determinação em se tornar o mestre incontestável do Neo-Destour o levam a excluir do partido e a forçar ao exílio seu influente rival, Salah Ben Yussef, que se opõe à autonomia interna.
A “política de etapas”
A proclamação da independência, no dia 20 de março de 1956, parece ter sido apressada pela obstinação de Burguiba, cada vez mais preocupado em provar o sucesso de sua opção pela “política de etapas” – principalmente depois do apoio dado pelo presidente do Egito, Gamal Abdel Nasser, a Salah Ben Yussef.
Ele irá defender essa “política de etapas” perante Israel. Em 1965, seu discurso histórico em Jericó, na Cisjordânia – quando defende a aceitação do plano das Nações Unidas de dividir a Palestina em dois Estados – tem o efeito de uma bomba no mundo árabe. Manifestantes nas ruas de numerosas cidades do Oriente Médio, assim como os meios de comunicação árabes, o acusam de ser “um lacaio do colonialismo e do imperialismo”.
Desde o primeiro ano da independência, Burguiba inaugura uma série de reformas legislativas, das quais o elemento fundamental é o Código do Estatuto Pessoal. Promulgado a 13 de agosto de 1956, o novo código outorga à mulher direitos sem precedentes no mundo árabe. A abolição da poligamia e do repúdio,5 assim como a exigência, para o casamento, do consentimento mútuo dos futuros esposos, constitui um verdadeiro ataque às fontes da discriminação contra as mulheres, tornando as tunisianas privilegiadas na região do Magreb (Norte da África) e no Oriente Médio.6
“Mentalidades tribais e retrógradas”
Eleito primeiro presidente da República, a 25 de julho de 1957 – após ter abolido a monarquia num clima de alegria geral –, Burguiba dá seguimento ao seu projeto de construção de um Estado moderno, ao se apoiar num partido cujos núcleos cobrem o país. Vê no ensino gratuito o melhor instrumento de combate ao subdesenvolvimento. Para isso, aproximadamente um terço do orçamento do Estado é consagrado à Educação.
Embora preocupado em ampliar a base de seu partido e incentivar os jovens a assumirem responsabilidades políticas na linha de frente, Burguiba nunca prometeu democracia. O pluralismo político correria o risco, segundo ele, de semear a divisão e despertar “as mentalidades tribais e retrógradas”. Em sua opinião, o controle do partido sobre os sindicatos e a imprensa e a proibição do pluralismo eram os únicos meios de realizar seu projeto de desenvolvimento.
Processos políticos são instaurados não somente contra opositores, mas também contra antigos colaboradores, como Ahmed Ben Salah, ex-ministro da Economia, Habib Achur, ex-líder sindical, e Mohamed Mzali, ex-primeiro-ministro. Esse autoritarismo resultaria no fracasso da política de socialização da economia, mantida até 1969 por Ahmed Ben Salah; no braço de ferro trágico entre o governo e a central sindical, a 26 de janeiro de 1978; e nos sangrentos “motins do pão”, em dezembro de 1983 e janeiro de 1984. A tímida abertura do início dos anos 1980 foi abortada, e Burguiba impediu um desenvolvimento político autêntico.
Reduzindo ao silêncio os direitos humanos
A “ameaça islâmica”, apregoada e exagerada no final de seu reinado, serviu para dar um golpe na sociedade civil, acelerando a chegada ao poder de Ben Ali, um “técnico em segurança”. O xeque Rached Ghannuchi, presidente do movimento islâmico Ennahdha, que se encontra no exílio desde 1989, foi uma das raras personalidades políticas que se recusou a render homenagem a Burguiba, considerado por ele um “ditador” e a quem acusa de ter “preparado o terreno para o surgimento de um Estado policial”. Reconhece, em todo caso, que o “período de Burguiba é menos ruim que o de Ben Ali”.7
Os islâmicos foram, talvez, os primeiros a compreender que estavam errados – e logo seriam acompanhados de perto por outros ativistas políticos de esquerda, por pequenas organizações políticas e pelos defensores dos direitos humanos. A detenção de milhares de islâmicos desembocaria em dois grandes processos, em julho de 1992. Alguns meses antes da abertura desses processos, o poder dominante cria uma nova lei sobre associações, com o objetivo de reduzir ao silêncio a Liga Tunisiana para a Defesa dos Direitos Humanos.8
O “despertar da sociedade”
Foi necessário mais de treze anos de “modificações” sob a condução do presidente Ben Ali para que, por comparação, os tunisianos começassem a esquecer os abusos de poder de Burguiba, e considerar seu longo reinado como “os bons tempos de antigamente”.
A sociedade civil, cada vez mais se revolta. Intelectuais, advogados, jornalistas independentes são importunados, humilhados por ordem de Ben Ali, tendo às vezes que recorrer a longas greves de fome para chamar a atenção da opinião pública sobre as violações de seus direitos mais elementares.9 Recentes movimentos sociais, como a greve de motoristas de táxi em Túnis e as manifestações dos estudantes no Sul do país, mostram que a contestação do poder não é mais assunto exclusivo das elites.
As lágrimas derramadas pelo povo com o desaparecimento do “combatente supremo” e a vibrante homenagem feita à sua luta contra a opressão – mesmo por antigos inimigos políticos – poderiam, de alguma forma, ser os arautos do despertar da sociedade contra o autoritarismo atual? Essa mesma sociedade que o presidente Burguiba se gabava de ter liberado “dos sentimentos de desespero e resignação à tirania”.10