Um remédio para matar ou salvar o SUS?
Em entrevista recente, Richard Sennet apontou a tendência atual de adoção de um modelo em que as organizações já não empregam trabalhadores, mas compram trabalho. O mesmo estaria se passando com o EstadoSonia Fleury
Será possível pensar um Estado sem funcionários, carreiras, saberes e instituições próprias que sejam a materialização do interesse público em áreas que até mesmo a Constituição define como de relevância pública, como a saúde? Para alguns gestores governamentais, a resposta afirmativa a essas questões fundamenta-se em algumas premissas: a) a perene convivência entre público e privado na saúde; b) o aperfeiçoamento dessas relações por meio de mecanismos contratuais; c) a inexorabilidade da integração entre público e privado em um sistema nacional de saúde.
A primeira premissa tende a confundir a existência pioneira das organizações filantrópicas, hoje integradas como prestadoras do Sistema Único de Saúde (SUS), com a recente emergência do setor empresarial de serviços de saúde. A criação do mercado de saúde no Brasil não se deu de forma espontânea, sendo resultante da política dos governos militares ao subsidiarem o financiamento da construção da rede privada, garantindo sua expansão por meio de contratos com o setor público, em detrimento da rede pública existente. A naturalização da relação público-privada nos serviços de saúde procura obscurecer o caráter político da construção desse mercado, do qual o SUS se tornou prisioneiro.
A segunda premissa sustenta-se na inevitabilidade da convivência e nas vantagens da redução do Estado, delegando a prestação a um ente privado, com mais agilidade no trato do pessoal e liberdade para compras e investimentos sem licitações. Ou seja, de um só golpe livra-se do entulho democrático, criado para proteção dos servidores e da administração pública – do Regime Jurídico Único (RJU) à Lei n. 8.666 – evitando, de quebra, os controles internos, externos e sociais. Todos esses instrumentos, considerados imprescindíveis para fazer valer a primazia do interesse público sobre o privado, deixam de importar quando se parte da falácia da indistinção entre os dois.
As parcerias público-privadas (PPPs) em saúde seriam mais um passo nessa trajetória rumo à consolidação das relações do setor privado no interior do SUS. Em sua modalidade mais completa, implicam a construção e o equipamento das unidades hospitalares pelo setor privado e posterior contratação de seus serviços pelo governo. Isso só se tornou realidade com a primeira PPP hospitalar do Hospital do Subúrbio, estabelecida pelo governo do PT da Bahia, sendo, porém, uma tendência em expansão, com editais abertos em Minas, São Paulo e Rio.
Antes, predominou o modelo paulista, no qual o governo provê a unidade de serviço e contrata uma entidade gestora (Organização Social de Saúde − OSS). Nesse caso, houve preocupação de exigir experiência de no mínimo cinco anos na administração dos serviços próprios de saúde e aprovação do contrato pelo Conselho Estadual de Saúde. Já no Rio de Janeiro nem mesmo essas precauções foram tomadas, o que permitiu a confluência perversa entre os interesses do Estado em busca da redução de encargos e a necessidade de captação de recursos públicos por parte de organizações sociais. Assim, instituições vistas como bastiões na defesa do interesse público passam a ser gestoras privadas de serviços públicos terceirizados, como o Viva Rio, ou a intermediar contratos terceirizados, como a Fiotec.
O pragmatismo envolto em interesse público não consegue acobertar o comprometimento dessas instituições com interesses particulares. Já a nova modalidade inaugurada com a primeira PPP vai além da terceirização, ao prever a construção do hospital pela iniciativa privada e sua contratação pelo governo com base em metas de remuneração por produção e qualitativas. Essa parece ser a nova tendência que se consolida e amplifica os problemas já existentes na relação de parceria em saúde.
Quais seriam esses problemas? Muitos deles já fazem parte de nossa experiência na relação com o setor privado e outros podem ser deduzidos da experiência internacional das PPPs em saúde, que conseguiram abalar até as sólidas bases financeiras do sistema de saúde inglês, sem aumentar a equidade ou a eficiência.
Diferenciações ocorrem nas modalidades de contrato e remuneração de profissionais, atuando, às vezes, na mesma unidade com diferentes vínculos, gerando uma subversão de hierarquias e da lógica do planejamento. Os pacientes do SUS tendem a ser discriminados em unidades privadas, em função do valor da tabela de pagamento do Sistema − situação que se pretende perpetuar por meio da reserva legal de leitos hospitalares para convênios, prevista em São Paulo.
O financiamento público a unidades privadas tem aumentado sistematicamente, justificado pelos aportes de conhecimentos que elas trarão ao sistema público. No entanto, ao não investirem na rede pública, esses recursos podem estar aumentando sua defasagem em relação à rede privada, situação até agora não avaliada. A defesa das parcerias enfatiza a definição de metas, flexibilidade e eficiência como principais argumentos em favor da execução das ações pelo setor privado. Por meio de um contrato transparente, as PPPs aumentarão a capacidade estatal de fazer uma gestão mais flexível, reduzir a politização e os custos, monitorar metas e qualidade. No entanto, a experiência internacional nos ensina que o resultado pode ser o oposto do desejado.
Os principais problemas apontados na literatura internacional são:
Processos de precificação em saúde são extremamente complexos, visto ser um dos setores mais dinâmicos em incorporação tecnológica. Contratos longos, de 25 anos, tendem a fracassar na estimativa de preços, sendo o prejuízo assumido ou pelo governo, com maior ônus financeiro, ou pelo paciente, quando o provedor reduz a qualidade.
A atenção em hospitais públicos no Reino Unido custou menos que em Hospitais PFI (PPP). O impacto das PPPs sobre as desigualdades em saúde foi nulo. O gasto público com saúde aumentou em vez de reduzir.
A politização ocorre na medida em que o governo atual se beneficia da inauguração de unidades de serviços, cujos custos serão amortizados nas décadas seguintes. Agências internacionais patrocinaram as PPPs, inclusive com a exclusão dos contratos de leasingdo cálculo da dívida pública.
Na crise europeia, os contratos com as PPPs mostraram-se inflexíveis, acarretando um ônus maior para cortes em outros setores da administração pública. Usuários e especialistas reclamam que a transparência legalmente assegurada no setor público não se aplica aos contratos das PPPs, que justificam ser segredo parte do negócio privado.
Por fim, a alegação maior de que as PPPs seriam uma solução para o setor da saúde não só por resolver o problema da gestão, mas também o do financiamento, ao injetar recursos privados, parece ser uma grande falácia. Se os problemas começaram com a sistemática redução do financiamento da União para a saúde – DRU, pagamentos indevidos, redução da porcentagem do PIB –, comprometendo a gestão e a qualidade dos serviços públicos, a solução encontrada parece acentuar tais problemas.
Para ver se o fluxo de recursos caminha do privado para o público, como apregoado na PPP ou ao contrário, basta fazer um exercício e identificar que as empresas vencedoras das parcerias são também as principais financiadoras das campanhas políticas. Não por acaso, são também as principais beneficiárias de financiamento público subsidiado via BNDES, para o qual a União emite títulos públicos, aumentando a dívida pública e reduzindo a capacidade de financiamento dos sistemas universais de educação e saúde. Além disso, as beneficiárias das PPPs são isentas de contribuições que financiam a seguridade social, fechando-se assim o círculo.
Enfim, ao igualar o público e o privado em busca de crescente interação rumo a um projeto de nacionalização do sistema de saúde, o que se está fazendo é reduzir progressivamente o papel do Estado a financiador e comprador, o que seria decretar a morte progressiva do SUS.
Sonia Fleury é Doutora em Ciência Política, professora titular da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (Ebape/FGV), onde coordena o Programa de Estudos da Esfera Pública (Peep), ex-presidente do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e membro da Plataforma Política Social – Agenda para o Brasil do Século XXI.