Uma dívida providencial…
No passado, os conservadores se mostravam preocupados em preservar o equilíbrio das contas, a ponto de concordarem com aumentos de impostos. Nos últimos 30 anos, ao contrário, eles vêm gerando deliberadamente os déficits públicos
Por efeito de fartas injeções de dinheiro público, os bancos recobraram sua saúde. E até mesmo saíram da crise financeira maiores e mais poderosos do que eram anteriormente. Portanto, eles deverão se mostrar ainda mais propensos a fazer os Estados “reféns” quando da próxima tempestade. Este é o momento que os governos ocidentais e os bancos centrais escolheram para disparar novamente o sinal de alarme, desta vez contra a dívida interna.
Após ser deixada de lado esta questão, de maneira astuciosa, quando a prioridade era arcar com quantias que superam o entendimento para salvar o Goldman Sachs, o Deutsche Bank ou o BNP Paribas, o fantasma da falência está agora ressurgindo, desta vez com a meta de acelerar a invasão das lógicas de rentabilidade mercantil no quadro de atividades que estavam preservadas até então.
O fardo do endividamento, que se tornou pesado pela pane econômica, está servindo mais uma vez como pretexto para o desmantelamento da proteção social e dos serviços públicos. Há um ano, previa-se que os liberais não tardariam a ficar em estado de coma; ora, ao anunciar repetidamente que “o caixa está vazio”, eles encontraram neste argumento o instrumento da sua ressurreição política.
Contando com ventos favoráveis, eles não irão reduzir a marcha. A nova coalizão no poder em Berlim prometeu reduções adicionais de impostos no valor de 24 bilhões de euros, embora o déficit alemão esteja a caminho dos 6,5% do produto interno bruto no ano que vem (ou seja, mais de duas vezes a taxa máxima autorizada pelo pacto de estabilidade e crescimento da União Europeia). Na França, desde a eleição de Nicolas Sarkozy, a direita no poder suprimiu, sucessivamente, a imposição das horas extras; ergueu um “escudo fiscal” para proteger dividendos do capital; e diminuiu o imposto sobre as heranças. Agora, ela decidiu também suprimir a taxa profissional, um imposto pago pelas empresas às administrações locais.
No passado, os conservadores se mostravam preocupados em preservar o equilíbrio das contas, a ponto de concordarem com aumentos de impostos. Nos últimos 30 anos, ao contrário, eles vêm gerando deliberadamente os déficits públicos, com o objetivo de paralisar as veleidades de intervenção da coletividade. Além disso, uma prática excessivamente tolerante que amputa as receitas está sendo reforçada por um discurso catastrofista que permite justificar a redução das despesas do Estado de bem-estar social.
“Reagan forneceu a prova de que os déficits não contavam”, rebateu em 2002 o vice-presidente americano Richard Cheney ao seu ministro das Finanças que se dizia preocupado com uma nova diminuição dos impostos diretos. Ao defender esta tese, Cheney estava convencido de que os déficits não são necessariamente nocivos para quem os provoca, já que Ronald Reagan foi reeleito com ampla margem em 1984, após ter triplicado esses últimos no decorrer do seu primeiro mandato. Mas, os encargos orçamentários exercem um peso maior sobre os sucessores, sobretudo quando eles são suspeitos de serem gastadores pelo simples motivo de não serem de direita… Assim, para ter uma chance mínima de obter a aprovação da sua reforma do sistema de saúde, Barack Obama foi obrigado previamente a prometer que esta não aumentaria em um centavo sequer o nível da dívida pública. Não seria o caso de indagar se algum dia alguém chegou a impor uma condição dessa natureza às aventuras militares?
Ao dividir por três o montante da TVA (imposto sobre os serviços) paga pelos proprietários de bares, lanchonetes e restaurantes, o governo francês sacrificou recentemente 2,4 bilhões de euros em receitas fiscais. Algumas semanas mais tarde, sob o pretexto de preservar a “equidade”, ele recuperou 150 milhões de euros, fiscalizando as indenizações diárias pagas às vítimas de acidentes de trabalho. Ainda assim, embora dê mostras de excelente disposição para tanto, ainda lhe resta um longo caminho a trilhar até conseguir se igualar a Reagan. Isso porque o antigo presidente americano amputou os impostos dos mais ricos, e então, uma vez que era preciso reduzir os déficits (que ele acabara de ampliar), pediu às cantinas escolares para contabilizarem o ketchup como sendo um legume, ao calcularem o valor nutricional das refeições que elas serviam aos alunos…
Esse episódio aconteceu na Califórnia, o Estado do qual Reagan era o governador, e que havia desencadeado em 1978 a contrarrevolução fiscal que mais tarde varreria o mundo. Hoje, nesse mesmo Estado, os caixas se encontram totalmente vazios (o déficit na Califórnia alcança US$ 26 bilhões). Por causa dessa situação, na quinta-feira, 17 de novembro de 2009, a universidade pública francesa aumentou sua taxa de inscrição em 32%. Antes disso, ela já havia suprimido 2 mil empregos.
*Serge Halimi é o diretor de redação de Le Monde Diplomatique (França).