Uma era de palavras baratas
Enquanto uma batalha de joguetes retóricos influencia a lacração nas redes sociais, a ordem internacional consolidada no pós-Segunda-Guerra expõe a sua fragilidade
Basel Adra e Yuval Abraham posaram juntos para fotógrafos e repórteres no 74º Festival Internacional de Cinema de Berlim. O jornalista palestino e o cineasta israelense ganharam o Prêmio Berlinale de Documentário, por No Other land, ao retratarem a eliminação de vilarejos em Masafer Yatta pelo Exército israelense, no contexto do conflito em curso no Oriente Médio desde outubro de 2023. O conjunto de dezenove povoados está na província de Hebron, no sul da Cisjordânia, circunscrita aos territórios palestinos, tornando-se um dos mais emblemáticos cenários da política de anexação territorial investida por Benjamin Netanyahu, figura dominante do cenário político israelense nos últimos trinta anos.
O ato sucedeu uma cerimônia bem marcante. Com um prêmio na mão e um microfone diante de si, Adra disse estar se esforçando para comemorar o sucesso de seu documentário, enquanto pessoas em Gaza estavam sendo “abatidas e massacradas”. Perpetrado em 7 de outubro do ano passado, o atentado terrorista que inaugurou a guerra travada neste momento entre Israel e Hamas, também foi mencionado. Na abertura, a co-diretora do Berlinale, Mariëtte Rissenbeek, apelou à libertação dos reféns israelenses.
Em seu discurso de aceitação, Abraham denunciou uma “situação de apartheid” e apelou pelo cessar-fogo em Gaza e a solução política para o fim da ocupação. “Em dois dias, Basel e eu vamos voltar para uma terra em que não somos iguais”. Continuou. “Eu vivo sob leis civis; Basel vive sob leis militares. Entre uma e outra, nossas casas estão a uma distância de 30 minutos. Tenho o direito de votar. Basel não. Nessa terra, sou livre para ir aonde quiser. Basel, assim como milhões de palestinos, está trancado à margem oeste (a Cisjordânia)”. Concluiu dizendo, “essa situação de apartheid tem de acabar”.
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O dito gerou rebuliço na imprensa e chacoalhou o mainstream de importantes partidos políticos alemães. Lideranças da União Democrata Cristã e o Partido Democrático Liberal, respectivamente, oposição e base de apoio ao chanceler social-democrata Olaf Schölz, pedem a renúncia da ministra da Cultura por ter aplaudido o cineasta, bem como defendem o corte de recursos públicos destinados ao Festival. O mais importante da Europa, junto com o de Cannes e Veneza.
Abraham foi chamado de antissemita. Passou a receber ameaças seríssimas e teve de adiar seus planos de retornar ao seu país, Israel. Em uma Berlim onde a História fala alto, um dos principais prêmios do evento, segurado pelas mãos de um israelense e um palestino, ambos com 29 anos de idade, transmitem ao mundo uma mensagem eloquente.
Entre o terror e a retribuição
Com o conflito que se desenrola no Oriente Médio, a declaração de Abraham considera elementos mais complexos. Dentre eles, a ascensão do supremacismo judaico que encontrou representação no Knesset, o parlamento de Israel, e no atual governo Netanyahu, ameaçando retirar o direito de cidadania à população árabe-israelense.
Israel retirou-se, em caráter unilateral, da Faixa de Gaza em 2005. Mais tarde, dois anos depois, o Hamas tomou o poder do território, expulsando a Autoridade Nacional Palestina. Desde 2009, sob os governos de Netanyahu, Israel escolheu a convivência violenta como estratégia mestra para afastar a possibilidade de coexistência pacífica com os palestinos.
Netanyahu fomentou a divisão dos palestinos entre dois governos rivais e congelou as negociações de paz. Foi por meio desse caminho que desmoralizou a Autoridade Palestina, responsável por hoje governar partes da Cisjordânia, e que travou confrontos militares pontuais com o Hamas. A postura da organização terrorista que nega o direito à existência de um Estado judeu funcionou como um álibi político constante para a manutenção de Israel como potência ocupante.
E por que não usar outra designação, senão a de potência ocupante? Porque, de fato, a Faixa de Gaza, assim como a Cisjordânia e Jerusalém Oriental, são territórios ocupados, onde Israel exerce o poder de controlar a fronteira e o espaço aéreo. Como potência ocupante, portanto, arca com as responsabilidades correspondentes.
Ao justificar o massacre perpetrado pelas investidas militares em curso, evocando o direito de um país defender as suas fronteiras em nome da sobrevivência nacional, Netanyahu fala como se do lado oposto das cercas e dos muros existisse um Estado soberano em guerra com Israel, o que não faz jus à realidade.
Sob a quarta Convenção de Genebra de 1949, a potência ocupante deve garantir a integridade e segurança da população civil. O Hamas é, de fato, uma organização terrorista e, como alega Israel, utiliza civis como escudos humanos e buchas de canhão. No entanto, isso não serve como desculpa para iniciativas desproporcionais específicas. Bombardear hospitais, atirar em civis indefesos, impedir o acesso à água e comida viola – em absoluto – o direito internacional humanitário, que veta a punição coletiva contra populações civis sob ocupação. A natureza do Hamas, portanto, não autoriza Israel a fugir das suas responsabilidades estatais.
Nomeando um crime e a responsabilidade de proteger
“Queremos encorajar a emigração voluntária e precisamos encontrar países dispostos a recebê-los”, disse o ministro das Finanças, Bezalel Smotrich, ao veículo Times of Israel, em meio à guerra em Gaza. A palavra “voluntária”, mais grave, comemora a expulsão dos armênios em meio ao genocídio feito pelo Império Otomano, ao amparo da Primeira Guerra Mundial.
O ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben-Gvir, reza a mesma cartilha. Em uma reunião partidária, diagnosticou: “a guerra nos oferece uma oportunidade para nos concentrarmos em encorajar a migração dos residentes em Gaza”. O que seria, uma “correta, justa e humana solução”. Ele quase disse “solução final”, a expressão que carrega consigo uma história macabra.
Smotrich é líder do Partido Nacional Religioso; Ben-Gvir, é do Otzma Yehudit. Os dois incontestes supremacistas judaicos são colonos na Cisjordânia e têm mandato no Knesset, além de possuírem, desde 2022, pastas de destaque na coalizão de governo. Ben-Gvir usa da sua posição de ministro para distribuir armas a colonos da Cisjordânia que, tirando proveito da guerra em Gaza, ameaçam e atacam palestinos nos territórios ocupados.
Há pessoas que marcam o caminho da História pela força e determinação das suas convicções. É o caso do judeu polonês Raphael Lemkin (1900-1959). Linguista e advogado, cresceu testemunhando os pogroms que virava e mexia ocorriam na sua comunidade. Ele estava na faculdade de Linguística quando ouviu falar pela primeira vez do caso armênio. Acompanhou-o atentamente.
Estudou o assunto, interessou-se em encontrar caminhos para a punição de massacres como método dissuasório capaz de conter a cadeia de comando. Levantou dados e elaborou uma proposta para a recém criada Liga das Nações. Ele sugeriu a adoção dos termos – barbárie – para falar do extermínio deliberado de uma população por pertencer a um grupo, e – vandalismo – para a destruição do patrimônio cultural visando apagar a história de um grupo. Barbárie e vandalismo deveriam ser classificados como crimes de guerra. A Liga das Nações nada fez.
Voltemos para o Festival Internacional de Cinema de Berlim. Quando Abraham nos conta que a sua vida é submetida a um ordenamento jurídico civil, mas a de seu parceiro a um militar, significa que na prática milhões de palestinos estão sob leis e políticas discriminatórias sistemáticas, como evidencia o documentário No Other land. Não reconhecer aos palestinos o direito à cidadania é um indicativo de que há um crime contra o direito dos povos em curso. Agora, a guerra em Gaza vista como “oportunidade” por alguns dos mais importantes ministros de Netanyahu demonstra que a injusta punição coletiva extrapolou o seu próprio conceito junto à escalada da barbárie. Eis o objetivo – a limpeza étnica.
Nesse sentido, há de se considerar dois elementos. Um de ordem interna e outro de ordem externa. O primeiro, diz respeito às condições de Netanyahu para manter-se longe dos processos judiciais dos quais é alvo. Para isso, ele depende de sustentação política para permanecer à frente do governo, o que passa pelo apoio de seus fanáticos de estimação. No plano externo, está o limite da disposição dos principais aliados em fornecerem armas e bancarem no campo diplomático as iniciativas de Israel na luta contra o terrorismo.
O governo apresentou em 22 de fevereiro um plano para o “dia depois” da guerra, no qual pretende eliminar a Agência da ONU para Refugiados Palestinos. Ele não é viável por várias razões e dependeria da aceitação dos Estados Unidos e aliados europeus para avançar. Enquanto o conflito no Oriente Médio divide opiniões pelo Ocidente, desvenda-se um dilema moral terrível. A essa altura, o leitor pode estar se perguntando se a comparação entre o massacre em Gaza ao Holocausto é razoável. Não é.
Entretanto, o resgate do legado de Raphael Lemkin ajuda a lembrar que o termo genocídio (pela junção do radical grego genos, de família e grupo, com sufixo em latim cidium, de assassinato), criado para dar nome a um crime na Europa dominada pelo nazismo, se consagrou como modalidade típica do século XX, respondendo por um expressivo número de mortos.
Enquanto uma batalha de joguetes retóricos influencia a lacração nas redes sociais, a ordem internacional consolidada no pós-Segunda-Guerra expõe a sua fragilidade. A banalização de expressões carregadas de significado para justificar incontáveis violações de direitos humanos, coloca a comunidade internacional em uma corda bamba. Torna-se igualmente trágico que governos evitem a palavra genocídio em vez de dizê-la, uma vez que dizê-la implica na responsabilidade de proteger, agindo em nome das vidas humanas em perigo. Provoca-se o efeito oposto: a negação até o limite, como ocorreu em Ruanda. O morticínio em curso na Faixa de Gaza, portanto, não pode ser considerado “parte do jogo”.
Quando diplomatas, jornais, governos e igrejas debatiam a veracidade do que acontecia na Armênia em 1915, Adolph Hitler extraía o significado daquela lição da História. Ao tranquilizar suas tropas sobre as consequências de uma possível invasão à Polônia, em setembro de 1939, Hitler lançou uma pergunta sórdida: “Quem, ainda hoje, fala sobre o extermínio dos armênios?”
Se nos acostumarmos com sucessivos morticínios que ficarão sem punição, a pergunta de Hitler fará eco. Estar em solo alemão como neto de sobreviventes do Holocausto e pedir um cessar-fogo – para ser rotulado como antissemita –, não é apenas ultrajante, mas também coloca vidas judaicas em perigo. Ao subverter um termo para proteger judeus, silenciando palestinos, também são silenciados judeus e israelenses críticos da ocupação e da exclusão que permeiam a história daquela terra, ganhando agora contornos mais assustadores. É perigoso, porque desvaloriza o termo antissemitismo. Abraham tem razão.
Rafael Pepe Romano é bacharel em Direito e graduando em Ciências Sociais pela FFLCH-USP.