Uma escolha nada difícil
O Brasil sempre teve uma diplomacia respeitada no mundo por conta da qualificação de seus representantes e da própria atuação institucional deles. Sempre fomos respeitados internacionalmente por conta da seriedade e do atrelamento às regras internacionais por parte do nosso corpo diplomático. Isso contribuiu para que, sendo um importante país e com dimensões continentais, tivéssemos juízes brasileiros eleitos para a Corte Internacional de Justiça. Todavia, essa tradição foi rompida nos últimos quatro anos por conta do desastroso governo de Jair Bolsonaro
A Carta das Nações Unidas descreve a Corte Internacional de Justiça como seu principal órgão judicial. Ou seja, trata-se do mais importante Tribunal Internacional existente em um mundo que foi reerguido sobre os escombros da Segunda Guerra Mundial e que resistiu aos graves conflitos de todo o século XX. A Corte Internacional de Justiça é, portanto, um símbolo de uma proposta para o pós-guerra, de um projeto para a humanidade. Ela é uma das artérias de uma visão de mundo fundamentada na solução pacífica de controvérsias, cujo coração é a própria ONU, com o fim de evitar o desastroso custo humanitário do conflito armado.
Obviamente, a Corte, como todos os órgãos institucionais que existem, sejam eles nacionais ou internacionais, tem suas limitações e defeitos. Mas, eles não invalidam sua ideia de projeto permanente para o futuro que queremos construir. A Corte, podemos dizer sem medo de qualquer equívoco, é uma aposta na capacidade humana de ser humano. Isto é, é a fé na concepção de que podemos construir um futuro baseado na razão, na ciência, no diálogo, na negociação, sem termos mais que conviver com a bestialidade da violência, da truculência, da estupidez e de seus resultados que sempre são os mesmos: morte, caos econômico, destruição, fome e miséria.
Com o fim de fazer valer essa proposta, a Corte Internacional de Justiça foi desenhada para ser integrada por juízes do mais alto grau de qualificação, honorabilidade, respeito e experiência. Afinal, para assumir a responsabilidade de aproximar as nações, julgar seus complicados conflitos, estabilizar as relações e assegurar um ambiente internacional pacífico, não poderiam os juízes da Corte serem despreparados ou desqualificados para tão colossal desafio.
É por isso que os 15 juízes eleitos para a Corte devem atuar sem relação com suas nacionalidades. Tanto que a escolha de cada um deles visa a compor uma espécie de representatividade global. Aliás, é por isso que dois juízes escolhidos não podem ter a mesma nacionalidade. Caso um juiz tenha mais de uma nacionalidade, vale aquela com a qual ele tenha mais vínculos civis e políticos.
Os juízes são escolhidos por meio de uma lista elaborada pela Corte Permanente de Arbitragem, onde os grupos de cada país apresentam seus nomes concorrentes. Ou seja, dentro da Corte Permanente de Arbitragem existem membros de uma mesma nacionalidade que compõem um grupo, este, por sua vez é quem define o nome que será colocado na lista a ser apresentada posteriormente tanto na Assembleia Geral da ONU, como no Conselho de Segurança. Não há previsão legal no Estatuto da Corte de que o governo do país de nacionalidade dos juízes deva endossar um dos nomes. Dessa maneira, o governo apenas deve encaminhar o nome indicado pelo grupo da Corte Permanente de Arbitragem. Eleito, enfim, o juiz tem um mandato de nove anos com possibilidade de reeleição.
O Brasil sempre teve uma diplomacia respeitada no mundo por conta da qualificação de seus representantes e da própria atuação institucional deles. Sempre fomos respeitados internacionalmente por conta da seriedade e do atrelamento às regras internacionais por parte do nosso corpo diplomático. Isso contribuiu para que, sendo um importante país e com dimensões continentais, tivéssemos juízes brasileiros eleitos para a Corte Internacional de Justiça. Todavia, essa tradição foi rompida nos últimos quatro anos por conta do desastroso governo de Jair Bolsonaro.
O governo Bolsonaro representou um verdadeiro “cavalo de pau” na atuação brasileira nas relações internacionais. De país relevante, nos tornamos párias. De um país com um capital político internacional importantíssimo na área ambiental, e por isso líder nas discussões internacionais sobre o tema, respeitado e admirado, nos tornamos vilões, companheiros indesejados e símbolo de obscurantismo, negação da ciência e destruição dos recursos finitos ambientais. Diante de uma narrativa fantasiosa da necessidade de travar uma cruzada contra um suposto marxismo global, nos alinhamos com ditaduras nas discussões acerca de direitos humanos e jogamos no lixo nosso principal capital político internacional: o meio ambiente. O Brasil não é um país relevante internacionalmente por conta de seu potencial bélico e tampouco por conta de sua dimensão econômica (o Brasil, apontado como um dos celeiros do mundo, pode sempre ser substituído por outro no cenário do comércio internacional) mas sim, principalmente, pelo fato de ser uma potência na biodiversidade e ser a casa da maior parte da floresta mais importante do planeta. Foram anos desastrosos para a inserção global do Brasil. Anos que nos exigirão uma reconstrução árdua diante dos danos que Jair Bolsonaro e seu governo nos deixará como legado.
O leitor deve estar se perguntando o que a política externa do governo Bolsonaro tem a ver com a Corte Internacional de Justiça. A resposta é: absolutamente tudo. Recentemente o Brasil perdeu um dos maiores nomes da sua história no Direito Internacional, o jurista Antonio Augusto Cançado Trindade, juiz da Corte Internacional de Justiça, que faleceu no dia 29 de maio deste ano de 2022. A morte do ilustre jurista abriu uma vaga na composição da Corte para o Brasil, que deve indicar um substituto para completar o mandato de Cançado Trindade.
Contudo, seguindo a “tradição” das nomeações e apoios baseados na bajulação, no “chapa branquismo” e na fidelidade ao bolsonarismo em detrimento ao preparo, à vasta experiência, à apurada técnica, ao qualificadíssimo currículo e às listas elaboradas pelos órgãos relacionados aos cargos (lembremos aqui de Augusto Aras, o até 2019 desconhecido procurador da República e não integrante da lista tríplice elaborada pelo MPF), o governo Bolsonaro endossou a candidatura de uma espécie de novo Kássio Nunes Marques para ocupar a vaga em aberto na Corte Internacional de Justiça. O nome apontado como o mais adequado por toda comunidade acadêmica e pela quase absoluta maioria de todos os profissionais que atuam nas relações internacionais, que deveria ser, inclusive, uma indicação natural ao cargo, o Professor Titular de Direito Internacional da Universidade de São Paulo, Paulo Borba Casella, foi vetado e boicotado por conta de sua visão crítica ao governo de Jair Bolsonaro.
Ou seja, por conta de críticas ao governo, a candidatura de Paulo Casella, que possui sem a menor sombra de dúvida o melhor currículo, fruto de décadas de estudo e dedicação (talvez um dos juristas mais cultos e de vasta produção intelectual renomada internacionalmente que o Brasil produziu recentemente), pode acabar simplesmente sendo ignorada. Aliás, talvez seria a sua não indicação pelo moribundo governo Bolsonaro um dos primeiros de uma série de atos a deixar um rastro de miséria, mediocridade e “péssimo legado” para o futuro presidente.
Enquanto o professor Paulo Casella recebe o apoio de quase a totalidade da comunidade acadêmica e de demais instituições importantíssimas da República brasileira, o governo insiste em colocar um indicado cujo único grande feito é ser “bolsonarista”. Paulo Casella é professor em regime de dedicação exclusiva à docência e à pesquisa na Universidade de São Paulo e sua produção científica, além de impressionante, é profícua. Isto é, não se trata de uma figura que passa o seu tempo bajulando este ou aquele outro político, mas sim pesquisando, publicando, ministrando cursos, que não só auxiliam na formação dos futuros juristas e internacionalistas do Brasil, como também contribuem para o próprio futuro da inserção internacional deste país isolado pelo bolsonarismo. Vale, inclusive, lembrar, que Paulo Casella já ministrou curso em Haia, tendo recebido elogios e ampliado o respeito que sua reputação internacionalmente goza.
Seria cansar o leitor elencar cada uma das instituições que saíram em defesa da candidatura de Paulo Casella. Todavia, é importante que algumas sejam mencionadas, para que se tenha a dimensão de que não estamos diante de uma disputa entre dois candidatos de espectros políticos diferentes, mas sim entre um que corresponde ao que o cargo exige e outro que só está no páreo por causa de um presidente caprichoso e personalista. Do meio acadêmico, desnecessário mencionar o apoio amplo e geral, como da USP, da PUC-RJ, da UFRJ, da Universidade Federal da Paraíba, da UFMG, da FGV-RJ, da FECAP, da Universidade Federal do Paraná, da UERJ, da UFABC, da Universidade Estadual Santa Cruz da Bahia, da University of Delhi, da Jawaharlal Nehru University, da Universidade Lyon III, com apoio, inclusive do professor Hugues Fulchiron, juiz do mais alto tribunal da França, a Cour de Cassation, da Ecóle de Droit de la Sorbonne, Universiteit Leiden, Université Paris II, dentre outras.
Além do meio acadêmico, o apoio a Paulo Casella é amplo também fora dele. Saíram em sua defesa a Academia Paulista de Magistrados, Otaviano Canuto dos Santos, vice-presidente e diretor executivo no Banco Mundial, ex-diretor executivo no FMI e ex-vice-presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento, a Associação dos Juízes Federais de São Paulo e Mato Grosso do Sul, a Associação Paulista de Magistrados, a Associação dos Magistrados de Rondônia, a Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, dentre outros importantíssimos apoios.
A escolha do próximo juiz da Corte Internacional de Justiça se dará no dia 4 de novembro. É fundamental que se tenha a consciência de que, mesmo derrotado nas urnas, Jair Bolsonaro poderá agravar o funesto legado que deixa não para o próximo presidente da República, mas sim para toda população brasileira. A indicação de Paulo Casella para ocupar o cargo de juiz da Corte Internacional de Justiça pode ser o símbolo do início do longo processo de renascimento do Brasil na diplomacia e nas relações internacionais como um todo. Seria o retorno não somente ao bom senso, mas também à seriedade e a dignidade do Brasil dentre seus pares. Que esse país não deixe outro lacaio do bolsonarismo assumir tamanha função.
Guilherme Antonio de A. L. Fernandes é doutor em Direito pela USP, mestre em Integração da América Latina pela USP, professor de Direito Internacional e Direitos Humanos e advogado em São Paulo.