Uma farsa neoliberal e machista travestida de ciência
A explicação do comportamento humano e sua interação social não pode ser simplesmente reduzida a um contexto de determinação genética
Por muito tempo a Biologia foi usada como única verdade para explicar e justificar as atitudes humanas e de demais animais, tendo como base apenas nossa carga genética. No entanto, ao adentrar nesse mundo da sociobiologia, que dá voz para o “racismo científico”, é preciso que reafirmemos que a Biologia é sim determinada pela genética, mas não somente por ela. O ambiente exerce importante fator sobre o que somos.
A ideia de que somos apenas determinados por nossa genética surge em 1946, com John Paul Scott, mas foi oficializado por Edward O. Wilson especificamente com a publicação do livro Sociobiology: the new sinthesys, em 1975.1 Para essa vertente, defende-se que o comportamento animal pode ser estudado usando-se a abordagem meramente evolutiva, ou seja, todo comportamento social tem base biológica. E mais: para quem segue essa corrente (pseudo)científica, estímulos ambientais, experiências passadas e o livre arbítrio seriam uma ilusão. Para eles, o processo evolutivo visa algo pontual e objetivo: passar os genes adiante via reprodução.
Seguem essa ideologia cientistas famosos como Konrad Lorenz, Richard Dawkins, Theodosius Dobzhansky e Ernst Mayer.
Como afirmam Lewontin & Levis, para o determinismo, “todos os fenômenos sociais são meramente a manifestação coletiva de aptidões fixas e limitações ambientais, codificadas nos genes humanos”, negando que a construção e a transformação, socialmente condicionadas, de nossos ambientes determinam a atualização efetiva dos limites biológicos.2
Assim, tudo aquilo que somos seria governado única e exclusivamente pelos genes, incluindo o sexismo, racismo, xenofobia, comportamento de estupro, agressividade e corrupção.3
Lembremos aqui que, em 1904, as ideias do nazismo começam a se valer desse tipo de discurso “biológico” para subsidiar seu discurso de “biologia social e higiene social”. Em 1979, em artigo na revista científica Nature, a extrema-direita usa o discurso da sociobiologia para argumentar a favor do racismo, antissemitismo e sexismo. Jonathan Beckwith, em seu artigo “Sociobiologia: o instinto em nossos genes”, teve sua interpretação usada para fins políticos, defendendo a natureza biológica da eugenia.4
Mais recentemente, um dos surrupiadores do trabalho de Rosalinda Franklin que permitiu a descoberta da dupla hélice do DNA, o estadunidense James Watson, fez declarações totalmente absurdas, racistas e preconceituosas com base no reducionismo genético. Em sua declaração, insinuou que os negros são menos inteligentes que os brancos, contrariando evidências da genética evolutiva acumuladas nas últimas décadas.5
No entanto, ao contrário do que falou o cientista, a diferença racial jamais foi comprovada pela ciência, mas serviu para nutrir a ideia de uma “supremacia branca” sob a forma de uma pseudociência que sustentou projetos eugênicos como o nazismo alemão.
A visão reducionista abastece discursos absurdos. Um dos exemplos bizarros e repugnantes é da comercialização de bonecas sexuais infantilizadas hiper-realistas para o consumo de pedófilos. De acordo com os fabricantes, tais “brinquedos” serviriam como mecanismo para que pedófilos controlem e deem vazão a seus impulsos.6
O capitalismo, aproveitando dessa pseudociência, explora o nicho comercial da fetichização sexual pedófila, usando como argumento a “liberdade” para que essas pessoas expressem seus desejos legal e eticamente. Felizmente, vários países perceberam a gravidade da normalização desse crime e passaram a proibir esse tipo de comércio.
Hoje, graças ao avanço da ciência verdadeira, sabe-se que os seres humanos não são meras marionetes genéticas – nem vou abranger as novas percepções e comprovações científicas para outros animais não humanos, o que já é fato para muitos. Por mais que tenhamos genes que estejam relacionados a determinados comportamentos, somos a interação de nosso material genético com o ambiente. E mais: ao surgir o comportamento social, permite-se a escolha entre o certo e errado – algo que poderíamos definir como moralidade. E, como tal, não podemos menosprezar a capacidade humana de domar o próprio instinto sexual. Porém, para os sociobiólogos, isso não é possível, justificando “cientificamente” o estupro e a pedofilia.
Não nego que temos sim a influência de nosso material genético herdado de nossos ancestrais, mas não podemos reduzir o que somos apenas ao DNA.
A explicação do comportamento humano e sua interação social não pode ser simplesmente reduzida a um contexto de determinação genética. Peguemos o exemplo de duas populações humanas que vivem em situações totalmente diferentes, uma favorável (com alimento em abundância, saneamento básico, educação de qualidade, segurança) e outra desfavorável (em situação de fome, ambiente insalubre, educação precarizada). Ainda que tenham a mesma carga genética, é gritante a influência na vida daqueles que não usufruem das condições mínimas para seu bem-estar.
Outro exemplo que levo para a sala de aula é exatamente a questão do culto ao corpo e o possível “instinto” que nos leva a escolher certo tipo de pessoa. Homens atraentes são aqueles fortões, altos e ricos, pois só assim seriam capazes de oferecer proteção e vida tranquila às mulheres. Estas, por sua vez, devem ter quadril largo, seios avantajados, pois o parto seria fácil e o suprimento de leite para sua prole, garantida. É óbvio que no passado ancestral, isso até poderia ser uma vantagem, mas hoje, desnecessário. Mesmo que a mulher não tenha sua anatomia favorável ao parto natural, temos a cesárea; ainda que não se produza leite, temos os bancos de leite e até mesmo fórmulas que capacitam essa nutrição. No caso dos homens, ser forte não é mais o requisito, pois não se caça ou se luta contra animais.7
Em um primeiro momento podemos sim ter uma atração para aquele corpo padrão da contemporaneidade (lembremos que entre os séculos XVI e XIX, o corpo belo era aquele dotado de curvas, representando não apenas a beleza, mas o poder que detinham na sociedade, muito bem retratado por Pieter Paul Rubens, Rembrandt Harmenszoon van Rijn e Pierre-Auguste Renoir), mas o próprio ambiente e nossas escolhas mudam – ainda que ditadas pelo interesse homogeneizante do capital.
E vamos além: as cirurgias plásticas burlam todo esse estereótipo. (E para a alegria do capital, enchem os cofres em busca do corpo idealizado, padronizado e atraente).
Corroborando a visão machista que essa pseudociência apoia, era comum a justificativa genética de que o homem é promiscuo por natureza, e que seus gametas são os ativos durante o processo de fecundação, enquanto as mulheres são passivas em ambas as situações. Isso, no entanto, além de defender uma sociedade machista e patriarcal, é uma mentira. Afinal, já foi comprovado que os gametas femininos (óvulos) não são meros receptores e o próprio organismo feminino apresenta mecanismos para selecionar os espermatozoides… de vários parceiros sexuais!8 Mas é claro que o machismo impera e não quer admitir que a liberdade sexual pode também ser utilizada pelas mulheres.
(Poderíamos até discutir a própria questão da monogamia e gênero como um sistema imposto pelo capitalismo, mas deixo para outro momento. Em todo caso, recomendo o livro de Brigitte Vasallo).9
O que é “um(a) parceiro(a) de alto valor reprodutivo” hoje? O fator primitivo/genético é diferente do contemporâneo, afinal, os estilos de vida são diferentes, as demandas ambientais e as pressões do ambiente também são. Assim, por mais que tenhamos genes do Pleistoceno, hoje eles interagem com ambiente totalmente diferente (alterados justamente pela ação humana e sua cultura), gerando traços psicológicos que podem ser muito diferentes dos ancestrais, o que contradiz outro braço da sociobiologia, que é a psicologia evolutiva.
E, além disso, o sexo não é apenas para fins reprodutivos, mas muito mais para o prazer – para humanos e diversos outros animais!
Reduzir o que somos a uma programação é, como diz Lewontin & Levis, “uma expressão autodepreciativa semelhante a se referir a homens cheios de si, pomposos e competitivos como ‘macho alfa’, ou que se apaixonar é uma mera questão ‘química’”.10
O perigo da defesa sociobiológica, ainda mais em tempos de luta feminista nesta sociedade ainda machista/patriarcal, é que se tenta argumentar com discursos tendenciosos a busca “anormal” dessa equidade. Argumenta-se, por exemplo, que a independência feminina, ainda que seja uma conquista social, tornam-nas mais sozinhas pois “perseguem cada vez menos homens de alto valor”, em claro argumento misógino. Surgem, com base nisso, as bases para a defesa dos tais Chads e a defesa da hipergamia (homens que devem ser buscados para casar/reproduzir pois são eles capazes de fornecer mais segurança a longo prazo por serem altos, ricos, com formação acadêmica), assim como dos chamados Incels (estes se posicionando contra essa emancipação feminina pois, se são independentes e até ganham mais que os homens, seria o motivo de gerar homens depressivos e com maior probabilidade de disfunção erétil).11
Assim, a sociobiologia argumenta que a hipergamia é um elemento evolutivo, e as mulheres nunca devem superar os homens, pois isso geraria uma mudança social que desequilibraria a população humana (o “mercado sexual”).
Alimentando ainda mais a influência social no genoma, podemos citar os casos crescentes de alergia alimentar entre os humanos, relacionadas justamente pelas alterações epigenéticas – mudanças que ocorrem no material genético de um organismo que não estão diretamente relacionadas a alterações em sua sequência de DNA, mas pelas modificações químicas no DNA ou em suas proteínas associadas, que podem afetar a expressão de certos genes. Tais alterações são comprovadamente influenciadas por fatores ambientais, como a dieta, o estresse e a exposição a toxinas.12
Assim, a vida no sistema capitalista, por si só, é resultado dessas alterações. Não apenas pelo modo de vida estressante, mas pelo próprio hábito alimentar com o consumo de alimentos ultraprocessados, agrotóxicos, mudanças ambientais, poluentes urbanos.13
E não podemos esquecer que 98% de nosso material genético é formado pelo “genoma obscuro”, o principal mecanismo para a atuação da epigenética, ajudando a controlar o comportamento dos nossos genes em resposta às pressões ambientais. Assim, de todo o nosso material genético, menos de 2% das 3 bilhões de letras do genoma humano são dedicados às proteínas (apenas cerca de 20 mil genes codificadores de proteínas). Outro aspecto que surpreendeu a comunidade científica foi a descoberta de sequências repetidas do genoma – conhecidas como transposons. Apesar de sua origem ser motivo de debate ainda hoje, sabe-se que esses fragmentos têm a capacidade de se mover de uma parte do genoma para outra, o que promove mutações nos genes. Doenças, por exemplo, não estariam relacionadas com a parte codificante (2%), mas pela interação da parte não codificante com o genoma total.14
Trago aqui outro exemplo preocupante: a sexualização humana pela exposição precoce aos conteúdos de sexo. Ou ainda, da exposição aos agrotóxicos miméticos aos hormônios sexuais, que não apenas causam doenças como câncer, Alzheimer, Parkinson, mas igualmente alteram a configuração e expressão gênica dos organismos.15
Outro aspecto preocupante que esse tipo de discurso gera é a seleção de indivíduos com base em seu genoma. Quem garante que, em vez de analisarem currículos, os empregadores não exigirão testes genéticos para a vaga oferecida? Ou ainda, em uma situação ainda mais grave, quem garante que políticas neoeugênicas poderão obrigar a esterilização em massa de pessoas com câncer, ou até de mães (mulheres, como sempre, as vítimas) depressivas, alcóolatras e marginais, ou até mesmo de ciganos, mestiços e pobres (não podemos esquecer da ascensão da extrema-direita xenofóbica) como feita na Suécia entre 1935 e 1996, que esterilizou mais de 230 mil pessoas, amparando-se em programas de eugenia e “higiene social e racial” aprovados em parlamento? Poderíamos citar também a República Tcheca, que até 2007 realizou esterilizações forçadas.16
A crítica dialética é justamente pela visão unilateral que o reducionismo biológico defende, ignorando o todo. Uma população saudável ou doente exige uma avaliação muito mais ampla do que a falta de unidades de saúde ou médicos no local. O que está causando tais doenças? Desnutrição? Falta de saneamento básico? Estresse? Excesso de demandas e produtivismo desumano?
Destaco aqui um dos aspectos que torna Cuba – sim, a mesma ilha com seu regime socialista exemplar, que resiste mesmo com os embargos criminosos do imperialismo estadunidense – vanguarda na medicina, justamente porque tem essa visão ampla dos fatores que geram as doenças. A ciência cubana promove um foco muito amplo sobre as questões de saúde pública, permitindo avanços máximos com um mínimo de recursos. Impossível não relacionar todo o ataque que a ilha socialista sofre justamente por mostrar que a medicalização/interesses das corporações capitalistas nem sempre é a solução dos problemas. Afinal, os investidores da ciência exigem resultados lucrativos.
Por mais que existam pesquisas que tentem justificar a pegada apenas genética, é importante que tenhamos a criticidade. Em muitas dessas pesquisas, é clara a tentativa de materializar apenas nesse aspecto. E, claro, para que se direcionem novas pesquisas em atendimento aos interesses do capital de indústrias farmacêuticas.
Em resumo, a sociobiologia prioriza princípios que enfatizam habilidades individuais inatas, visando ao sucesso reprodutivo individual, o que atende aos interesses do capitalismo e sua meritocracia. Capitalismo esse que depende de produtos padronizados, homogeneização das pessoas.
O discurso meritocrático, coberto pela falácia científica do “mais capacitado”, destroem a realidade que promove a sociedade: o ambiente cooperativo, com iguais oportunidades para todos, contrariando os anseios do individualismo capitalista que deseja o pensamento individual e o máximo de produtividade de cada pessoa. Ao mesmo tempo, escondem que sob essa batuta exploratória, ainda que “geneticamente capazes”, a jornada insana de trabalho com um produtivismo insano, desumano e alienante, com noites mal dormidas, regadas a uma alimentação artificializada e quimicamente produzida, são fatores que afetam nossa sobrevivência.
O fetiche genômico não passa de mentira e uma tentativa de promover um certo apartheid social, negando a capacidade humana de discernimento e que se traveste cientificamente com o termo “genômica social e do comportamento”.
Contrariamente, Marx enfatiza o ambiente, a cultura e a criação como determinantes para o comportamento humano, o que permite mudanças radicais de acordo com as condições do meio.
No entanto, os fatos estão aí para provar a falácia perigosa da sociobiologia. Não se pode mais pensar nos comportamentos humanos como algo meramente ditado por nossos genes, afinal, toda a condição social é capaz de alterá-los através da plasticidade biológica e a alteração do próprio ambiente.
Como diz Bekah Ward na resenha do livro Not in our genes, “o reducionismo, aplicado ao comportamento humano, foi importante para uma sociedade capitalista emergente como um meio eficaz de controle social sobre os trabalhadores. Nesse caso, um fenômeno social e histórico – um local de trabalho eficiente – é reduzido a um atributo biológico inato de trabalhadores individuais, como uma máquina pode ser reduzida a suas partes menores”.
A tentativa de justiçar todo e qualquer comportamento humano como meramente biológico, visa apenas um objetivo: a perpetuação da resignação sem que a crítica social, realmente necessária, seja levantada e, consequentemente, que o sistema capitalista e a naturalização dos problemas sociais sejam colocados contra a parede.
Enfim, a discussão está posta.
Luiz Fernando Leal Padulla é professor, biólogo, doutor em Etologia, mestre em Ciências e especialista em Bioecologia e Conservação. Autor do blog e do canal no Youtube “Biólogo Socialista” e do podcast “PadullaCast”. Autor do livro “Um irritante necessário”. Instagram: @BiologoSocialista.
Referências bibliográficas
- WILSON, E.O. Sociobiology: the new sinthesys. 1975.
- LEWONTIN, R. & LEVIS, R. 1997. The Biological and the Social. Capitalism, Nature, Socialism, 8 (3): 89-92.
- The Dialectical Biologists. https://isreview.org/issue/106/dialectical-biologists/
- Sociobiology critics claim fears come true. 1979. Nature, 282: 348.
- Declarações racistas de Watson chocam cientistas. Disponível em: https://cienciahoje.org.br/declaracoes-racistas-de-watson-chocam-cientistas/
- Empresa gera polêmica com bonecas sexuais infantis feitas para ‘controlar impulsos dos pedófilos’. Disponível em: https://extra.globo.com/noticias/mundo/empresa-gera-polemica-com-bonecas-sexuais-infantis-feitas-para-controlar-impulsos-dos-pedofilos-18500138.html
- A evolução segundo o tesão. Disponível em: https://revistagalileu.globo.com/Revista/Common/0,,DMA303617-17773,00.html
- Por que as feministas precisam estudar evolução. Disponível em: https://etosocio.com/comportamento-humano/feminismo-evolucao/
- VASALLO, B. 2022. O desafio poliamoroso – por uma nova política dos afetos. São Paulo: Editora Elefante. 232p.
- LEWONTIN, R. & LEVIS, R. 1999. Are we programmed? Capitalism, Nature, Socialism, 10 (2): 71-75.
- As mulheres estão mais independentes — e também mais solitárias. O que isso pode nos dizer sobre o futuro? Disponível em: https://etosocio.com/comportamento-humano/selecao-parceiro/
- Humanidade está mais alérgica a alimentos, dizem especialistas; veja o ‘cardápio’ de possíveis explicações. Disponível em: https://g1.globo.com/saude/noticia/2023/04/28/humanidade-esta-mais-alergica-a-alimentos-dizem-especialistas-veja-o-cardapio-de-possiveis-explicacoes.ghtml
- O combo promocional da ignorância e da servidão. Disponível em: https://diplomatique.org.br/o-combo-promocional-da-ignorancia-e-da-servidao/
- O mistério do ‘genoma obscuro’ que compõe 98% do nosso DNA. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cp3j3616k05o
- O Agro não para…de destruir, poluir e matar! Disponível em: https://diplomatique.org.br/o-agro-nao-para-de-destruir-poluir-e-matar-intoxicacao-por-agrotoxicos/
- Ao modo nazista: Suécia aplicou higiene racial à sua população com suposto apoio da ciência. Disponível em: https://history.uol.com.br/historia-geral/ao-modo-nazista-suecia-aplicou-higiene-racial-sua-populacao-com-suposto-apoio-da