Uma festa verde, amarela e violenta
Nós esperamos que em contextos democráticos a violência seja um recurso escasso, inexistente e execrável. Mas nas democracias atuais a violência é praticada sob eufemismos, desdobramentos pirotécnico-verbais e jurídicos
Se eu ousasse escrever que em um determinado tempo a política era feita com armas, minha afirmação estaria incorreta. A política nunca deixou de lado o seu braço armado e não pode existir poder político sem algum tipo de coerção para que seja exercido.
Atos de violência cometidos por ditaduras não melhoram a situação das democracias. As democracias ocidentais de passado genocida, escravocrata e racista ainda possuem um alto grau de tolerância e justificativas para a manutenção da violência. E as justificativas para a violência normalmente vêm acompanhadas de questões de gênero, raça e classe.
Desejar a morte do inimigo não é incomum em democracias. Diversos tipos de interpretações da realidade pregam a não existência do alvo de seus ódios. Trump não consegue criticar a violência racista cometida por autoridades governamentais. O governador do Witzel fez dancinha ao saber que um “vagabundo” havia sido assassinado. Bolsonaro nunca se importou com a violência policial e costuma glorificá-la.
Nós esperamos que em contextos democráticos a violência seja um recurso escasso, inexistente e execrável. Mas nas democracias atuais a violência é praticada sob eufemismos, desdobramentos pirotécnico-verbais e jurídicos.
No atual período, líderes de Estados democráticos estão muito suscetíveis ao constante e ilimitado fluxo de informação. Ainda que isso exerça determinada pressão sob suas atitudes e palavras, esse fluxo não é uma barreira contra a violência que muitos deles defendem. Só os habitantes de bolhas é que não verão as imagens violentas a causar convulsões sociais contra violência que, infelizmente, são recebidas com violência.
A violência no Brasil possui um passado longínquo, mas não precisamos ir muito longe. Prender, torturar e matar inimigos no governo militar eram fatos de celebração para seus apoiadores. Não nos é novo o desejo de matar outros brasileiros por motivos ideológicos e de ódio.
Na atualidade, os desejos violentos de Bolsonaro encontram uma sociedade pouco suscetível à solução de que mais violência é a resposta. Uma menor parte, barulhenta e verde-amarela, apoia esse discurso que não existe apenas em palavras. Para moradores de favelas, isso se materializa em mortes desde muitos governos antes desse.
Nossa violência não pode ser reduzida a um governo. Deve ser compreendida como um fator complexo da sociedade brasileira que deve considerar cultura, classe, raça, gênero, política, economia e história. Porém, isso não deve levar à ideia de que um governo não tenha o poder de amenizar ou piorar essa questão.
Em uma entrevista em 1999, Bolsonaro falou em criar uma guerra civil e matar 30 mil brasileiros. As instituições que suspostamente deveriam impedir sua participação na política devido ao cunho violento de suas ideias não o barraram. Mas essas mesmas instituições são crias de séculos de violência. Elas tendem a perpetuá-la.
Não podemos nos esquecer de nosso passado escravocrata e genocida que ainda nos molda como Brasil e brasileiros. Bolsonaro é um brasileiro que carrega esse fardo, mas não para criticá-lo, e sim para perpetuá-lo em nosso presente.
Depois de décadas despejando todo tipo de ódio contra aquilo que não é branco, cristão, conservador e de origem europeia ou norte-americana, o idólatra de ditaduras e ditadores conseguiu reunir ao redor de si um número considerável de brasileiros que adulam violência, ódio e ignorância.
Em sua campanha, quando falou em fuzilar a petralhada, teve de se explicar e disse que era apenas uma brincadeira. Todo outro crime verbalizado foi explicado como assim, ou como palavras retiradas do contexto. O período atual não tolera um discurso violento direto, que clama pela morte, mas o tolera nas entrelinhas, disfarçado, que faz piada ou apenas brinca de matar. Um dos símbolos que levou o presidente à vitória foi a arminha, um símbolo de violência.
Bolsonaro representa a violência contra criminosos (os identificados como pobres e negros, não os uniformizados do Estado ou brancos endinheirados), contra minorias étnicas e contra pessoas que negam os gêneros impostos pelo conservadorismo cristão. E, também, contra adversários políticos (petistas, esquerdistas, antirracistas, feministas, “globalistas”, marxistas, cientistas, jornalistas, ambientalistas, sindicalistas e a verdade).
A celebração da violência não se vende como um fim em si. O objetivo dessas ações e discursos é criar um Brasil melhor. Esse Brasil melhor é bolsonarista (família Bolsonaro acima de tudo), negacionista (negação de qualquer dado negativo contra o governo), autoritário (supressão da democracia), nacionalista (amor ao Brasil desde que esse amor relacione bolsonarismo com o Brasil), totalitário (controle sobre todas as instituições públicas do país, sobre o corpo das mulheres e sobre a sexualidade da população), violento (genocídio indígena e negro), racista (negação e manutenção do racismo no Brasil), corrupto (defesa da corrupção de conservadores, neoliberais e ricos), cristão (evangélico e negação de religiões não cristãs), subalterno (aos interesses morte-americanos), auto-destrutivo (destruição da natureza e negação das mudanças climáticas) e capitalista (tudo para o mercado e demonização do Estado).
Todo o poder que emana e emanou do governo brasileiro ao longo de sua história foi acompanhado de um elemento de violência. Alguns foram mais outros menos violentos. Nenhum conseguiu fazer o Estado brasileiro não ser criminoso. Atualmente, a morte e a violência vivem em êxtase. O governo de Bolsonaro possui uma face macabra que sente prazer com a violência.
O número absurdo de mortes causadas pela violência nessa guerra civil não declarada não é encarada como um problema, mas naturalizada e prestigiada pelo presidente e seus arautos. E o amor às armas do governo bolsonarista vê nas Forças Armadas seu principal suporte.
O presidente nomeou mais militares do que os próprios golpistas de 1964. As Forças Armadas possuem uma função que é ser eficiente no uso da violência. Dizer que sua função é a defesa do Estado é esquecer que essa defesa é feita através da violência. O presidente crê que as Forças Armadas são o bastião da força de seu governo. Ele já se manifestou mais de uma vez ao dizer que a democracia só existe porque os militares permitem. O presidente deseja um poder que vem do cano de fuzis e canhões. Ele deseja o poder supremo de decidir quem morre. Parece até que o desejo do presidente é ser um capitão do Brasil cercado por jagunços a matar quem não o obedece (até então, ele só consegue demitir quem não o obedece).
Bolsonaro sempre defendeu abertamente uma política autocrata. Essa autocracia que ele confabula (porque ainda não consegue executá-la), deseja se estabelecer pelo domínio da força sobre a sociedade. Por isso, andam a falar no poder moderador das Forças Armadas. As armas que devem gerir a política segundo nosso presidente.
Os hierarcas do Exército não conseguem dizer que querem defender nossa democracia, por mais ineficiente que ela seja e por mais que ela trabalhe para garantir a desigualdade, a violência e a segregação (coisa que muitos de meus compatriotas defendem). Tudo o que os generais conseguem dizer é que não farão um golpe de Estado se não for necessário.
A morte, companheira de séculos do Brasil, hoje anda mais próxima de nós. A violência, amiga da morte, não só sustenta o status quo de nossa sociedade, mas é parte constituinte de nossa vida e das instituições que nos controlam. Não sejamos ingênuos, a forma em que o poder está organizado no país requer violência para se manter e não há sinal de que isso mude.
A política brasileira anda mais armada do que nunca. Do jeito que as coisas estão, as pessoas vão continuar a morrer. Se não forem mortas pelo vírus, serão mortas pela nossa maldição, a violência. E, enquanto existir Bolsonaro na presidência e nos corações, a festa vai continuar verde, amarela e violenta.
Bruno Ribeiro Oliveira é mestre em História da África pela Universidade de Lisboa e doutorando do Programa de História e Artes da Universidade de Granada.