Uma greve “indefensável”
Aproveitando-se de um conflito entre patrões e empregados, a mídia conservadora manipula a situação e busca deslocar o conflito para uma disputa por empregos entre imigrantes e trabalhadores ingleses. Os sindicatos protestam contra a mídia e as discriminações
Essa tentativa de discriminação é inaceitável!”, afirmou o ministro português de relações exteriores Luís Amado, no último dia 2 de fevereiro. “Os governos devem evitar o viés protecionista, xenófobo e nacionalista que pode nos conduzir a uma crise ainda mais grave1”, declarou. O mesmo estado de ânimo enfurecido acometeu seu homólogo italiano Franco Frattini contra um movimento social “indefensável” que se desenrolou na Grã-Bretanha.
Tudo começou no dia 28 de janeiro, quando um contrato de 200 milhões de libras (231 milhões de euros) para a instalação de uma unidade de desulfurização na refinaria da empresa Total, de Lindsey, em Lincolnshire, foi terceirizado a uma empresa siciliana, a Irem.
Tal operação substituiu a mão de obra britânica por cem trabalhadores italianos e portugueses. Alojados numa balsa sobre o rio Humber, os estrangeiros foram escrupulosamente afastados dos outros assalariados. Estes últimos, claro, não tardaram a suspeitar que o empregador havia violado as convenções sindicais da categoria, tanto em relação à remuneração quanto às condições de trabalho. Rapidamente uma greve explodiu.
O movimento se espalhou e chegou até o País de Gales e a Escócia, abarcando cerca de 3 mil pessoas, em geral trabalhadores de empresas terceirizadas para a construção de refinarias e de centrais elétricas. Em alguns dias, os manifestantes fecharam cerca de 20 centrais e refinarias por todo o país.
O fato de alguns grevistas terem se levantado para reivindicar “empregos britânicos para trabalhadores britânicos” parecia confirmar as previsões mais funestas: sem dúvida, se tratava de um espasmo de chauvinismo agudo contra os imigrantes. Um vento de indignação tomou conta das elites locais. Ao mesmo tempo em que o primeiro-ministro Gordon Brown julgava as greves “indefensáveis”, seu ministro do comércio Peter Mandelson advertia sobre os males do xenofobismo. Aproveitando a situação, a imprensa marrom mais reacionária começou a divulgar que “compreendia” os grevistas, antes tratados como vândalos e egoístas.
Essa agitação altamente moral logo se propagou por toda a Europa. Na Itália, Emma Marcegaglia, presidente da Confederação dos Trabalhadores da Indústria, citou Margaret Thatcher e apelou para que a Grã-Bretanha “não fraquejasse” perante a livre-troca e se mantivesse firme contra os “baixos instintos nacionalistas”.
Na França, mesmo aqueles que apoiam as reivindicações salariais se deixaram levar pelo jogo, como o porta-voz do Novo Partido Anticapitalista (NPA), Olivier Besancenot, que demonstrou inquietude pelos “movimentos xenófobos suscitados pela crise, notadamente na Inglaterra”.
Levando em conta a maneira pela qual o conflito foi apresentado à opinião pública, seja no Reino Unido ou em outros países, essas reações nada têm de surpreendente2.
São apenas reflexo de um profundo erro de apreciação sobre o que de fato aconteceu e que acabou por se reproduzir. Apontam também para um discurso sobre a crise que, longe de evitar os discursos anti-imigrantes na Europa, corre o risco de alimentá-los.
Como ressaltou Derek Simpson, um dos responsáveis pelo maior sindicato britânico, o Unite, as greves no setor da construção civil não tiveram “nenhuma relação com a imigração”: tratava-se simplesmente de um “conflito de classe”.
O grupo italiano Irem nega as acusações, mas, curiosamente, fracassa em convencer seus detratores que recorrer a trabalhadores importados é uma medida apenas para reforçar a amizade entre os povos.
O que salta aos olhos é que a baixa dos salários e a exclusão da mão de obra local é uma prática estabelecida.
Na central elétrica de Staythorpe, em Nottinghamshire, a empresa francesa Alstom estabelece seus contratos de construção com trabalhadores poloneses e espanhóis, menos informados de seus direitos sociais que seus colegas autóctones.
Ao desencadear o movimento, os grevistas sabiam que estavam fora da lei. Sua ação seria considerada um delito nos parâmetros da legislação antissindical adotada no governo de Margaret Thatcher – e mantida pelos novos trabalhistas.
Era preciso utilizar todo seu poder de fogo para dissuadir os empregadores de processar os dois sindicatos implicados, Unite e GMB.
A incerteza da situação conduziu um punhado de grevistas a usar o slogan “Empregos britânicos para trabalhadores britânicos” com a intenção de ridicularizar o primeiro-ministro, que cinicamente se havia apropriado dessas palavras de ordem de extrema direita no congresso anual do Partido Trabalhista de 2007.
Na realidade, esse slogan nunca fez parte das reivindicações do comitê de greve, que reclamava, ao contrário, a isonomia para todos os assalariados na Grã-Bretanha, independentemente da sua nacionalidade, e exigia a aplicação das mesmas convenções sindicais para todos os canteiros de obra.
Trabalhadores unidos
Dois ou três dias após o início da greve, as palavras de ordem nacionalistas desapareceram de Lindsey para ceder lugar a cartazes redigidos em italiano que convidavam os imigrantes a se juntarem ao movimento. Gritos como “Trabalhadores de todos os países, uni-vos” surgiram nos piquetes. O risco de que o conflito ganhasse um tom de xenofobia fora claramente evitado.
A vigilância reduziu a nada as tentativas de infiltração da extrema direita, notadamente aquelas do Partido Nacional Inglês (PNI). Os grevistas jamais tomaram os trabalhadores estrangeiros como objeto de crítica: o alvo eram os empregadores e o governo.
Contudo, os meios de comunicação dominantes, tão suscetíveis ao clichê protecionista e do racismo operário, ajustaram a realidade à sua visão de mundo.
No dia 2 de fevereiro, no jornal televisivo noturno News at Tem, da BBC, era possível ver a declaração de um grevista sobre operários italianos e portugueses: “Não podemos trabalhar ao lado deles”. A segunda parte da frase – “em razão da segregação que nos separa” – foi cortada na edição, de maneira a criar a impressão de que os trabalhadores locais recusam-se a se relacionar com os colegas imigrantes. Jornalistas enviados por tabloides ao local tentam então convencer os grevistas a posar para uma foto com a bandeira inglesa.
Finalmente, o movimento de greve na refinaria de Lindsey terminou no dia 4 de fevereiro, com um acordo que prevê a divisão igualitária de trabalho entre locais e imigrantes, reconhecendo o direito do sindicato de controlar as condições de remuneração dos italianos e portugueses.
O ato vitorioso também pôs fim à quarentena infligida aos imigrantes. Longe de reavivar tensões entre operários britânicos e estrangeiros, a greve permitiu, ao contrário, que se aproximassem.
Em Staythorpe e Grain, por outro lado, o conflito endureceu. Não era apenas o crescimento do desemprego que inquietava os grevistas, mas a erosão contínua do conhecido modelo social europeu, substituído pela flexibilização dos direitos por todo o continente.
O primeiro-ministro Gordon Brown afirmou que viraria as costas ao “mercado não regulado”, mas seu governo se opôs, nesses últimos meses, a qualquer tentativa de atenuar o impacto da jurisprudência europeia vinda de Bruxelas.
A persistência da ideologia neoliberal – herança thatcherista – e o mercado de salários descartáveis dela decorrente explicam, em parte, o fato de as reações coléricas estarem mais presentes no Reino Unido que em outros países europeus.
Incentivar as multinacionais do continente a deslocar trabalhadores para alojamentos precários a milhares de quilômetros de seus lares, enquanto outros são colocados na rua com o nobre propósito de “retomar o crescimento” e extirpar a recessão européia, é uma ideia cada vez mais difícil de admitir diante do aumento das filas nos guichês de assistência social.
É isso que está no cerne das greves de janeiro e fevereiro, não a xenofobia ou o racismo. Num país onde mais de 100 mil empregos desaparecem a cada mês, a mão de obra viu, desesperada, transformar-se em fumaça a garantia de um trabalho decente e seguro. Ao mesmo tempo, a incapacidade dos governos europeus de centro-esquerda de representar a classe operária abriu espaço a uma direita descomprometida.
A insistência das elites midiáticas e políticas em rebaixar a xenófobos os trabalhadores que defendem seus empregos podem acabar transformando a ficção em realidade.
*Seumas Milne é jornalista do The Guardian.