Uma hegemonia fortuita
“A França ficaria contente se alguém forçasse o Parlamento [a adotar as reformas], mas é difícil, é a democracia.” Pronunciadas pelo ministro das Finanças alemão, Wolfgang Schäuble, essas palavras não ilustram apenas o desdém dos dirigentes europeus pela soberania popular, mas o domínio da Alemanha sobre a EuropaWolfang Streeck
Depois da guerra, a República Federal da Alemanha jamais alimentou o projeto de liderar a Europa. Todos os seus líderes políticos, de todos os contornos, consideravam que o país tinha um problema fundamental em relação aos vizinhos: era grande demais para despertar amor e pequeno demais para inspirar medo. Por isso, precisava fundir-se em uma entidade europeia mais ampla, que a Alemanha poderia dirigir em conjunto com outros países, como a França. Desde que tivesse acesso seguro aos mercados estrangeiros, pudesse obter matérias-primas e exportar seus produtos manufaturados, ela não estava preocupada em liderar a cena internacional. A integridade do casulo europeu tinha tamanha importância aos olhos do chanceler Helmut Kohl (1982-1998) que, sempre que surgiam atritos entre os parceiros, ele se apressava em fornecer os meios materiais (em outras palavras, pagar a conta) para salvar a unidade europeia, ou pelo menos sua aparência.
Hoje, o governo de Angela Merkel enfrenta uma situação completamente diversa. Sete anos após o início de uma crise financeira cujo fim ainda não enxergamos, todos os países da Europa e mesmo de fora dela voltam-se para a Alemanha esperando que ela encontre uma solução e, muitas vezes, uma solução ao estilo de Kohl. Mas os problemas atuais são muito grandes para serem resolvidos apenas colocando a mão no bolso. A diferença entre Merkel e seu antecessor não é que ela deseje ser a Führerin da Europa: é que a época a obriga, queira ou não, a sair dos bastidores e ficar sob os holofotes do palco europeu.
As dificuldades são consideráveis. Na frente europeia, a integração transformou-se em uma catástrofe política e econômica. E a Alemanha, que se tornou um jogador importante o suficiente para ser acusado de todos os males, continua muito pequena para fornecer a solução. Na frente interna, o consenso centrista ameaça entrar em colapso.
Na Europa, os anos após a crise monetária venceram a simpatia que os governos alemães do pós-guerra haviam conseguido obter, de alguma forma, junto a seus vizinhos. Nos países mediterrâneos e, em certa medida, na França, a Alemanha é mais odiada do que nunca desde 1945. São inúmeras as charges mostrando seus dirigentes com uniformes da Wehrmacht e ostentando a suástica. Para os candidatos tanto de esquerda como de direita, o caminho mais seguro para ganhar uma eleição é fazer campanha contra a Alemanha e sua chanceler.
Na Europa meridional, a adoção da “flexibilização quantitativa”1 pelo Banco Central Europeu (BCE) foi aplaudida como uma vitória sobre Berlim. Na Itália, Mario Draghi, embora ex-executivo do Goldman Sachs e fervoroso defensor do neoliberalismo, é aclamado como herói nacional por ter enrolado “os alemães” várias vezes. O nacionalismo ressurge em toda a Europa, incluindo a Alemanha, outrora o país menos nacionalista de todos. A política externa dos países da Europa meridional hoje se resume a arrancar concessões da Alemanha, em nome do interesse nacional, da “solidariedade europeia” e até de toda a humanidade. Ninguém sabe quanto tempo vai levar até que sarem as feridas causadas pela União Europeia nas relações entre a Alemanha e países como a Itália e a Grécia.
Por uma ironia da história que não pode ter escapado à chanceler, a União Econômica e Monetária (UEM), que deveria consolidar definitivamente a unidade europeia, corre o risco de despedaçá-la. Os políticos alemães começam a entender que o conflito não é sobre o “resgate” do Estado grego ou dos bancos franceses (e alemães) e que uma hábil intervenção cirúrgica não fará renascer a unidade. Pelo contrário: esse conflito está relacionado à própria estrutura da zona do euro, que reúne sociedades díspares, com instituições, práticas e culturas muito distintas, refletidas pelos diferentes contratos sociais que regulam as relações entre o capitalismo moderno e a sociedade. A essas economias políticas divergentes correspondem regimes monetários distintos.2
Esquematicamente, os países do Mediterrâneo desenvolveram um modelo de capitalismo no qual o crescimento se assenta principalmente na demanda interna. Quando necessário, ela é estimulada por uma inflação alimentada por déficits públicos e encorajada por poderosos sindicatos, que garantem a segurança do emprego, sobretudo no setor público. A inflação permite que os Estados contraiam empréstimos com mais facilidade, desvalorizando a dívida. Além disso, esses países apresentam um sistema bancário público ou semipúblico fortemente regulado. Combinados, esses elementos garantem, em teoria, uma relativa harmonia entre os interesses dos trabalhadores e os dos patrões, em especial nas pequenas empresas que vendem seus produtos no mercado interno. Mas a paz social tem como contrapartida a falta de competitividade no plano internacional, o que é preciso compensar, de tempos em tempos, desvalorizando-se a moeda nacional, em detrimento das indústrias exportadoras. Evidentemente, essa política tem como condição a soberania monetária.
As economias da Europa setentrional e, em primeiro lugar, a da Alemanha funcionam de outra maneira. Como devem seu crescimento ao sucesso nos mercados estrangeiros, elas são hostis à inflação. Isso também se aplica aos trabalhadores e aos sindicatos, sobretudo na atualidade, quando qualquer aumento de custos pode gerar deslocalização. Uma economia desse tipo não está preocupada em poder realizar desvalorizações. Enquanto os países mediterrâneos – incluindo, em certa medida, a França – beneficiaram-se com a flexibilidade monetária do passado, países como a Alemanha acomodam-se muito bem a uma política monetária rigorosa. É por isso que eles também são hostis à dívida, ainda que, graças ao seu pequeno endividamento, geralmente possam contar com taxas de juros baixas. E, como não precisam de flexibilidade monetária, evitam o risco de estourar bolhas nos mercados de ações. Essa é uma política que beneficia os poupadores, que são inumeráveis. O ditado “Erst sparen, dann kaufen” – “Poupar primeiro, comprar depois” – resume bem a atitude tradicionalmente incentivada pelas instituições político-econômicas na Alemanha.
Um regime monetário unificado não pode beneficiar ao mesmo tempo economias baseadas em poupança e investimento, como na Europa setentrional, e economias baseadas em empréstimos e gastos públicos, como na Europa meridional. Portanto, um dos modelos, para aproximar-se do outro, terá de reformar seu sistema de produção e, ao mesmo tempo, o pacto social sobre o qual se assenta. Atualmente, são os países mediterrâneos que estão sendo forçados pelos tratados a se tornarem “competitivos”, sob a liderança de uma Alemanha responsável por garantir o rigor monetário. Mas não é isso que seus governos querem ou podem fazer – pelo menos a curto prazo. Desse modo, duas linhas enfrentam-se na zona do euro, em uma luta violenta pelo fato de que não trata somente dos meios de subsistência, mas também do estilo de vida das pessoas. Isso fica evidente nos estereótipos dos “gregos preguiçosos” e dos “alemães austeros”, que “vivem para trabalhar em vez de trabalhar para viver” e aparecem como capatazes inflexíveis, pois defendem ao mesmo tempo os tratados e sua própria estrutura capitalista. As tentativas da Europa meridional de efetuar uma flexibilização do euro para retomar as taxas de inflação, os déficits públicos e as desvalorizações da moeda sobre as quais se assentava sua economia chocam-se contra a oposição dos Estados e eleitores do Norte, que se recusam a desempenhar o papel de emprestadores de último recurso para seus vizinhos do Sul.
Embora os países da zona do euro não possam convergir, eles também não querem se separar, pelo menos por enquanto: os países exportadores da Europa setentrional reverenciam as taxas de câmbio fixas, enquanto os do Sul desejam taxas de juros tão baixas quanto possível, em troca das quais aceitam uma limitação dos déficits, na esperança de que seus parceiros sejam mais clementes que os mercados financeiros. Atualmente, a Alemanha e seus aliados dão as cartas. A longo prazo, ninguém pode dar-se ao luxo de perder a batalha: o perdedor seria forçado a reconstruir sua economia política e atravessar um período de transição longo, incerto e tumultuado. Assim, os países do Sul estariam condenados a instaurar o mesmo mercado de trabalho que a Europa setentrional, e os alemães a acabar com seu hábito de poupança, considerado destrutivo e egoísta por seus parceiros.
Desse modo, podemos considerar que o programa de “flexibilização quantitativa” do BCE, que visa oficialmente elevar a taxa de inflação a 2%, inscreve-se em uma estratégia vantajosa para os países mediterrâneos. Ele também se reflete imediatamente em um declínio da taxa de câmbio da moeda única. É bom lembrar que Enrico Letta, durante o breve período em que foi presidente do Conselho italiano (abril de 2013 a fevereiro de 2014), praguejou contra o nível desse “maldito euro”, que impedia a recuperação econômica de seu país. Problema: a depreciação favorece principalmente países exportadores, como a Alemanha, e não melhora em nada a situação das economias mais fracas. A longo prazo, isso pode até desencadear uma corrida global para a desvalorização. E, na Alemanha, ainda que as indústrias exportadoras não venham a se queixar de um incremento de sua competitividade, os poupadores, por sua vez, terão de amargar por um longo tempo taxas de juros negativas.
Os debates sobre o futuro do sistema monetário europeu são tanto morais como técnicos; e deve-se enfatizar, a esse respeito, que nenhuma dessas formas de capitalismo é superior às outras. A introdução do capitalismo na sociedade, seja por acaso ou por projeto, nunca é totalmente satisfatória, de nenhum ponto de vista, o que não impede que os adeptos de cada modelo nacional considerem os outros deficientes, alegando que o seu seria natural, racional e coerente com os mais altos valores sociais. Assim, os alemães não entendem que, quando exortam os gregos a “reformar” sua economia política, portanto, a reformar a si próprios, a fim de acabar com o desperdício e a corrupção, o que eles estão pedindo é que se substitua a corrupção tradicionalmente enraizada na sociedade grega por outra: a corrupção moderna e financeirizada do tipo Goldman Sachs, inerente ao capitalismo contemporâneo.
Os violentos conflitos ideológicos e econômicos que dilaceram a Europa e alimentam os nacionalismos não estão perto de terminar. Mesmo supondo que a austeridade acabasse por tornar a Europa meridional mais competitiva, estima-se que ela também produziria, nos países devedores, um declínio de 20% a 30% do padrão de vida, em comparação com a situação anterior a 2008. Esse regime é imposto assegurando que a liberalização dos mercados fortalecerá suas economias, que assim poderão recuperar o atraso e reduzir as desigualdades de renda; mas isso é uma ilusão, dada a força das vantagens acumuladas que operam nesses mercados.3 As disparidades regionais, agravadas pela austeridade, terão de ser absorvidas por meio de uma solução política interna à zona do euro, de acordo com o modelo de redistribuição adotado pela Itália em favor do Mezzogiorno e pela Alemanha para os novos Länder. Ainda assim, os cerca de 4% do PIB que esses dois países direcionam a tais regiões penam para combater o aprofundamento das desigualdades de renda inter-regionais.4
As disparidades econômicas suscitarão conflitos entre os Estados-membros da zona do euro e dentro deles. Os países do Sul reclamarão programas de crescimento, um “Plano Marshall europeu”, políticas regionais para ajudá-los a construir uma infraestrutura competitiva e uma solidariedade material em troca de sua adesão ao mercado único e à unidade europeia de maneira geral. Os governos do Norte só serão capazes, por razões econômicas e políticas, de fornecer uma pequena parte dos fundos necessários.5 Em troca, exigirão o direito de observar a maneira como seu dinheiro será gasto, no mínimo por razões de política interna: suas oposições adorariam ter a oportunidade de acusá-los de desperdício, clientelismo e corrupção. Os Estados meridionais resistirão à usurpação de sua soberania pelo Norte e criticarão sua avareza. A Alemanha, o maior e sem dúvida mais rico dos países-membros, será acusada de imperialismo político e egoísmo econômico, sem poder fazer muita coisa a respeito: seus eleitores não permitirão que o governo apoie os países do Sul sem impor condições e se recusarão a financiar uma política regional europeia, quando já financiam uma para a ex-Alemanha Oriental.
Por quanto tempo a grande coalizão de Merkel será capaz de apaziguar tanto seus parceiros europeus como seus eleitores? Em breve, ela poderá ter esgotado todos os seus recursos. As indústrias exportadoras da Alemanha e seus sindicatos perseguiram a união monetária como uma prioridade absoluta e, com o apoio de uma esquerda euro-idealista, sacralizaram o euro.6 A chanceler, sempre atenta ao que dizem seus apoiadores, pronunciou a famosa sentença: “Se o euro falhar, a Europa falhará”.7 Assim, ela está resignada a fazer dolorosas e humilhantes concessões, especialmente durante a votação no Parlamento dos “planos de resgate” para a Grécia.
O governo alemão – agindo como um comitê executivo das indústrias exportadoras – estaria disposto a sacrificar-se pela sobrevivência do euro, mas o consenso que reinava em favor da integração europeia está rachado. O euroceticismo de repente entrou em cena. Um novo partido, a Alternativa para a Alemanha (AfD), ameaça a direita da União Democrata Cristã (CDU). Para resistir a ele, os partidos de centro, incluindo os social-democratas, devem desconfiar de qualquer concessão que os outros países possam lhes pedir. Até o momento, a transferência de recursos internos para a União Europeia e a zona do euro foi muitas vezes dissimulada em fundos regionais ou sociais europeus. No entanto, a união monetária exigirá – não apenas para “resgatar” a Grécia, mas especialmente depois de seu “resgate” – somas consideráveis, impossíveis de dissimular.
Diversas queixas ao Tribunal Constitucional tentaram politizar a Europa e alertar a opinião pública alemã. Durante certo tempo, o governo de Merkel pareceu aprovar tacitamente a inventividade com que o BCE contornava a proibição de empréstimos diretos a Estados-membros, enquanto o Bundesbank vociferava indignado. Mas, como o conflito de distribuição entre países da zona do euro logo será um problema crônico, o custo político e econômico da união monetária pode tornar-se tão exorbitante que o governo não conseguirá mais escondê-lo nem defendê-lo, sobretudo num contexto em que a população alemã é severamente testada pela austeridade fiscal.
Ainda que a Alemanha sacralize o euro, ela poderia, em princípio, passar sem ele. Para equilibrar o desempenho econômico, poderia valer a pena dar alguma soberania monetária aos países europeus e conceder uma margem de manobra maior ao Sul (e ao Sudeste, que espera entrar na zona do euro), em vez de permanecer no quadro da moeda única. As dúvidas sobre a viabilidade desse regime começam a crescer, inclusive na Alemanha. No fim das contas, supondo que os alemães tivessem razão em pensar que, em certas circunstâncias, a austeridade é boa para a saúde econômica, não devemos esquecer que, na prática, ela só faz milagres quando acompanhada pela desvalorização da moeda nacional.8
Wolfang Streeck é diretor do Instituto Max Planck de Estudos das Sociedades, em Colônia, Alemanha. Este artigo é uma versão abreviada de uma análise publicada na New Left Review, n 71, Londres, set-out, 2011.