Uma medicina influenciável
A França enfrenta a segunda onda de Covid-19 em um clima de ceticismo e desânimo. A desconfiança causada pela negligência e pelo autoritarismo do poder público torna ainda mais árdua a saída de uma crise profunda. A incerteza não poupa nem o saber médico, suspeito de sucumbir às influências políticas, midiáticas e, sobretudo, econômicas
“Eu me recuso, hoje, a recomendar o uso da máscara para todos e jamais o governo a recomendou. Se a recomendássemos, seria incompreensível.” Afirmações como essas não emanam de “negacionistas” nem de outros “conspiradores”. Elas foram proferidas pelo presidente da República francesa em meados de abril de 2020,1 quando a Covid-19 já tinha causado a morte de mais de 17 mil pessoas no país. No entanto, desde seu primeiro informe, o Conselho Científico francês recomendou o reforço de medidas de prevenção, “garantindo a disponibilidade de álcool gel e máscaras cirúrgicas para a população”. O mesmo Conselho considerou também que é “importante para a credibilidade de todas as medidas propostas que elas se mostrem privadas de qualquer estratégia política”. A partir de então, não usar máscara se tornou passível de multa.
O hiato entre as promessas sucessivas sobre as máscaras, os testes ou o acompanhamento das pessoas infectadas e a realidade explica a prioridade anunciada pelo primeiro-ministro Jean Castex ao chegar a Matignon no mês de julho: “É preciso restabelecer a confiança!”. A tarefa será ainda mais difícil porque a desconfiança atinge por capilaridade a expertise em saúde pública.2 “Vê-se claramente que, em relação à primeira onda, os cidadãos têm mais dificuldade de aderir às recomendações”, constata Dominique Le Guludec, presidente da Haute Autorité de Santé (HAS). Presidente da Société de Pathologie Infectieuse de Langue Française (Spilf, Sociedade de Patologia Infecciosa de Língua Francesa), Pierre Tattevin se inquieta: “Trata-se de uma doença muito grave, a crise de confiança. E vai se estender se não adotarmos as medidas adequadas”.
De acordo com as pesquisas de opinião, a pandemia teria reforçado sobretudo a visão positiva que os franceses têm da ciência: 69% das pessoas entrevistadas disseram em junho ter “mais confiança na ciência” e 24% afirmaram nela “confiar inteiramente”, um total superior ao do ano passado.3 Em compensação, dois terços dos entrevistados avaliaram que os pesquisadores não “souberam prever a escalada do coronavírus” e 53% que eles “não foram claros”. Será uma desconfiança passageira? É possível colocar isso em dúvida, pois a desconfiança do Estado se inscreve em uma situação mais antiga de desengajamento e monopolização de interesses privados dos quais a ciência médica não escapou.
Incerteza
“Como este foi o único assunto na ordem do dia, com a redução diária do número de mortes, convidamos finalmente o grande público para participar dos grupos de crise”, observa Tattevin. “As pessoas se deram conta muito rapidamente de que os especialistas se enganaram. Não por serem ruins, mas porque isso é novo. Neste caso, muitos dizem que vão refletir por si sós.”
Chefe do serviço de doenças infecciosas no Hospital Bichat e membro do Conselho Científico, Yazdan Yazdanpanah faz parte dos que anunciaram em janeiro que não haveria epidemia. Atualmente, ele acha importante reconhecer seus erros: “Não convém tratar as pessoas como crianças. É preciso envolvê-las, ter uma mensagem clara; ainda é tempo. Deveria ter sido mais prudente. Fui sincero, não queria esconder alguma coisa, raciocinei com base em meus conhecimentos sobre essa família de coronavírus. Depois, entendi que era possível transmitir essa doença sem ter sintomas, ou vários dias antes de senti-los”.
“A incerteza é angustiante, mas é uma realidade. Temo que, ao querer se mostrar muito afirmativo ou apagar as incertezas, não se construa a confiança. Os cientistas não estão aí para tranquilizar”, considera Le Guludec. Na direção do Haut Conseil de la Santé Publique [Alto Conselho da Saúde Pública], Franck Chauvin declara na mesma direção: “Pedimos aos especialistas que revelem certezas. Ora, a ciência é construída progressivamente. Na medicina, acima de tudo, agregam-se evidências parciais para com elas chegar a uma certeza”.
Desde o fim de março, as declarações do professor Didier Raoult, natural de Marselha, defendendo um tratamento à base de hidroxicloroquina e azitromicina monopolizaram a atenção. Chauvin reage: “A ciência é construída por meio da controvérsia, e isso é normal. Mas tornou-se um espetáculo transmitido pela televisão, que transformou os cientistas em gladiadores”.
Controvérsias
A questão ganhou outra dimensão quando o presidente dos Estados Unidos e, em seguida, o do Brasil passaram a promover a hidroxicloroquina. Todo o mundo foi intimado a ter um ponto de vista, enquanto os feitos científicos continuavam indefinidos. “Nós que, todo ano, avaliamos os medicamentos guardamos um enorme silêncio sobre o assunto porque não tínhamos dados. Não queríamos acrescentar cacofonia à cacofonia”, reconhece Le Guludec. A Splif, que reúne mais de quinhentos especialistas em doenças infecciosas, acabou registrando uma queixa contra Raoult no Conseil de l’Ordre des Médecins (Conselho da Ordem dos Médicos), lembrando o Código de Deontologia: “Os médicos não devem divulgar nos ambientes médicos um novo procedimento de diagnóstico ou de tratamento insuficientemente comprovado sem acompanhar seu comunicado das preocupações que se impõem. Eles não devem fazer esse tipo de divulgação para um público que não seja médico”.4
A amplitude dessa polêmica, que minou a confiança, provavelmente se deve muito às redes sociais e às emissões das redes de televisão, mas também às falhas na organização dos tratamentos e da produção do saber. A equipe do Institut Hospitalo-Universitaire (Instituto Hospitalar Universitário) de Marselha testou em massa a população, quando isso era praticamente impossível em outros lugares. Ela correspondeu também a uma expectativa, quando a maior parte dos pacientes sofria sozinha com a instrução de só chamar se seu estado se agravasse. Pressionada a desqualificar a hidroxicloroquina, uma das revistas médicas mais prestigiadas do mundo, The Lancet, teve de admitir não poder garantir a veracidade das fontes utilizadas e acabou tendo de desabonar um artigo que apresentava o tratamento como perigoso.5 Entrementes, essa publicação levou à interrupção do teste desse tratamento no ensaio clínico francês Discovery…
Chefe do serviço de doenças infecciosas do Hospital Saint-Antoine, Karine Lacombe tentou soar o alarme sobre a baixa relação custo-benefício da hidroxicloroquina. Mas seus inúmeros vínculos com a indústria farmacêutica se voltaram contra ela como um bumerangue, especialmente com o Gilead, que fabrica o Remdesivir, outro remédio cogitado – também ineficaz, de acordo com o teste em grande escala da Organização Mundial da Saúde (OMS).6 Ela se defende: “Houve acusações de conflito de interesses, quando são vínculos enquadrados pela lei. Além disso, esses vínculos dizem respeito ao HIV e à hepatite viral, de forma alguma à Covid. Isso é, de fato, uma manipulação. Penso que foram ataques pessoais por causa do que represento: a emergência de mulheres competentes, capazes de se expressar”.
Suas desventuras evidenciaram, sobretudo, a onipresença da indústria farmacêutica na pesquisa médica e na formação dos médicos. Mesmo que ela tenha sido instrumentalizada pelos aliados de Raoult, a influência dos interesses industriais representa uma questão essencial, com frequência dissimulada. A prova disso é a rapidez com que foram constituídos o Conseil Scientifique Covid-19 (Conselho Científico Covid-19) e o Comité Analyse Recherche et Expertise (Comitê de Análise, Pesquisa e Expertise), dos quais vários membros se beneficiam de remunerações, “hospitalidades” ou contratos diversos, às vezes declarados tardiamente. “Infelizmente, isso é revelador da situação atual. Apesar de todos os escândalos e desastres, isso continua. Muitos especialistas têm vínculos de interesses e estarão em situação de conflito de interesses quando mobilizados para atender ao interesse geral”, comenta Bruno Toussaint, diretor editorial da revista Prescrire.
Fundada em 1981, a Prescrire funciona sem publicidade, sem subvenções e com uma prática de revisão rigorosa. Ela avalia com regularidade os medicamentos e publica anualmente uma lista dos que precisariam ser descartados. Bem cedo, ela alertou sobre o perigo do Mediator, assim como de outros produtos na origem de catástrofes sanitárias, todos indissociáveis de conflitos de interesses. “Para nós, o Mediator é simplesmente revelador. Ao longo de décadas, observamos que, quando os medicamentos começam a ser conhecidos, sua eficácia é globalmente superestimada e seus riscos são mundialmente subestimados. Visto seu peso na economia e sua grande influência no mundo da saúde, as empresas farmacêuticas estão na origem de ensaios enviesados, de uma promoção precipitada etc. Mas elas não têm o monopólio deles! Existem muitos exemplos na história, e vivenciamos uma real dimensão deles na primavera de 2020. Um especialista ou um grupo de especialistas pode ter uma convicção e virar as coisas do lado avesso, decidindo que os dados estarão de acordo com sua convicção”, declara Toussaint. Desde o início de abril, a Prescrire recomendou prudência: “Os resultados observados em Marselha não permitem validar nem excluir o interesse de um tratamento particular”. Antes do final de julho: “a balança benefício-risco parece cada vez mais claramente desfavorável”.
Uma deriva sistêmica
Para a opinião pública, a imagem da “Big Pharma” continua deplorável. As empresas farmacêuticas se preocupam bastante com isso, a ponto de financiar um “Observatório Societal do Medicamento”. A última pesquisa da entidade é eloquente. Somente uma minoria de pessoas entrevistadas (16%) não tem confiança em seus produtos, mas essa proporção dobrou em oito anos, e dois terços não confiam nas empresas farmacêuticas “em matéria de informação sobre os medicamentos”.7 No entanto, elas não economizam o dinheiro que destinam à propaganda ou à sedução de médicos e especialistas…
“O mundo da saúde está ligado de forma sistêmica aos interesses industriais, desde a pesquisa, a formação dos enfermeiros, a expertise regulamentar, até as práticas dos médicos e a informação ao público. Esse conjunto de vínculos de interesses influencia os tratamentos, e essa influência tem um risco tanto para a saúde pública como para o equilíbrio das contas sociais. Ele constitui uma perda de oportunidade para os pacientes”.8 Ao tirar lições dessa crise, a Association pour une Information et une Formation Médicale Indépendantes (Formindep, Associação para uma Informação e uma Formação Médica Independentes) lembrou que não se pode mais deixar de levar em conta essas questões e sua dimensão política.
Essa associação reúne profissionais da saúde e cidadãos preocupados em alertar sobre as formas visíveis e invisíveis de influência da indústria. “São ainda muito poucos os professores que declaram seus vínculos de interesses no início de seus cursos, que abordam esses assuntos ou tomam iniciativas proativas para preparar melhor seus estudantes”, lamenta seu presidente, Paul Scheffer. A associação ajudou a Troupe du R.I.R.E. (Rede de Iniciativas e Reações Estudantis), um coletivo de estudantes de medicina, a produzir um livrinho que explica de forma detalhada os métodos de influência da indústria, a fim de ensinar a escapar deles.9 A Formindep também salientou os “esforços raros e tímidos” dos Centres Hospitaliers Universitaires (CHU, Centros de Hospitais Universitários) franceses, dos quais ela estabeleceu uma classificação em função de sua política de prevenção dos conflitos de interesses.10 Ela publicará, também em janeiro de 2021, sua terceira classificação das faculdades de medicina de acordo com sua independência. Somente uma (a Universidade de Tours) obteve a média na classificação anterior, que mediu o grau de aplicação da Constituição Ética e Deontológica adotada em 2017 pelos Congressos Nacionais de Decanos de Medicina e Odontologia.
A Formindep age também na justiça para fazer respeitar acordos prometidos, mas raramente cumpridos. Em 2011, por exemplo, o Conselho de Estado ordenou à HAS suprimir uma recomendação sobre o tratamento da diabetes. A autoridade “independente” não teve “condições de incorporar ao dossiê a integralidade das declarações de interesses cujo cumprimento era obrigatório”.11 Vários membros do grupo de trabalho estavam em conflito de interesses flagrante, pois eram ligados a empresas que intervinham na responsabilização por essa doença.
Demonstrar sua independência e sua autoridade não é uma tarefa fácil para a atual presidente da HAS, de quem uma das missões principais é avaliar o “serviço médico prestado” pelos produtos autorizados pela Agence Européenne du Médicament (Agência Europeia de Medicamentos) antes de seu possível reembolso aos pacientes.12 Ela sucedeu a Agnès Buzyn quando esta foi para o governo, em 2017. A ex-ministra da Saúde tinha sucedido a Jean-Luc Harousseau, ex-presidente (partido União por um Movimento Popular – UMP) do conselho regional do Pays de la Loire e que se tornou, em 2019, presidente da Fondation des Entreprises du Médicament [Fundação das Empresas de Medicamentos]! “Os profissionais da saúde compreenderam a importância das declarações de interesses. Isso requer tempo, trata-se de uma aculturação. Essa cultura se adquire com o tempo”, assegura Le Guludec.
Uma transparência incompleta
A lei “antipresentes” de 1993 foi reforçada em 2011 após a questão do Mediator. Os vínculos contratuais e financeiros entre as empresas e os profissionais devem ser publicados em um único site, público. Mas vários anos se passaram antes que o site Transparence Santé 13 mostrasse os primeiros montantes, e de maneira muito pouco legível. Graças a um coletivo voluntário, o site EurosForDocs14 permite atualmente que se tenha uma ideia mais clara das vantagens, acordos e remunerações desde 2012. São 144 milhões de declarações detalhadas, representando mais de 6 bilhões de euros. Os jornalistas utilizaram esses dados. Em janeiro de 2020, por exemplo, um grupo de uma dezena de jornais regionais revelou os vínculos de interesses dos principais CHU. Em Clermont-Ferrand, um professor “recebe mais de 120 mil” sem o conhecimento de seu estabelecimento, salienta La Montagne.15 Ele teve de pedir demissão.
A perseverança da Formindep leva a administração a aplicar seus próprios textos. Mas a transparência permanece incompleta: mais de 3 milhões de contratos continuam registrados sem que seus montantes apareçam. A Cour des Comptes [semelhante ao Tribunal de Contas no Brasil (N.T.)] observa: “A análise dos acordos entre médicos e indústria, até 2018, era extremamente inoperante […]. Nenhum médico foi convocado pelo Conselho Nacional e não foi feita nenhuma acusação disciplinar por desrespeito a uma advertência sobre um contrato irregular”.16 Um novo dispositivo antipresentes previsto pelos textos “para no mais tardar 1º de julho de 2018” entrou em vigor em 1º de outubro de 2020. Ele reforça as proibições, reduz os limites que definem um “presente” (30 euros por uma refeição, 150 euros por um abono etc.) e dá um papel mais importante para as ordens profissionais, que deverão autorizar os acordos.
Todavia, esses dispositivos sucessivos tropeçam na ausência de sanção. “A dificuldade jurídica está ligada principalmente ao fato de um conflito de interesses não ser uma infração penal. E os casos que permitem fazer uso da reprimenda para conflito de interesses são bastante limitados. No quadro de uma prescrição médica, por exemplo, é muito difícil provar que, se um médico recomenda um medicamento que não é o mais barato ou o mais adequado, é porque ele está ligado ao fabricante”, explica Farah Zaoui, responsável pela expertise jurídica na associação Anticor. Essa associação de luta contra a corrupção, da mesma maneira, lamentou a “apreensão ilegal de interesses” e, em 2018, redigiu uma recomendação da HAS. Esta teria levado ao tratamento de metade dos franceses de mais de 60 anos de idade com estatina sob o pretexto de prevenir um risco cardiovascular… Suas declarações públicas de interesses se revelaram mais do que incompletas. Embora a HAS tenha retirado essa recomendação logo após um novo recurso da Formindep dirigido ao Conselho de Estado, a informação judicial, confiada a um juiz em novembro de 2019, ainda não deu lugar a nenhuma intimação. “Ainda não tínhamos todos os instrumentos de transparência. Desde então, revimos as declarações públicas de interesses de todos os grupos de trabalho daquele período”, explica Le Guludec.
Do vínculo ao conflito de interesses
A doutrina estabelece uma nítida distinção entre os vínculos de interesses – autorizados – e os conflitos de interesses – proscritos. A argumentação encontra-se no regulamento interno do Conselho Científico: “Um conflito de interesses nasce de uma situação em que os vínculos de interesses de um especialista são suscetíveis, por sua natureza ou sua intensidade, de colocar em questão sua imparcialidade ou sua independência no exercício de sua missão de expertise em relação ao que vai ser tratado”. Ex-diretora de redação da prestigiada revista New England Journal of Medicine, Marcia Angell criticou em 2009 esse tipo de raciocínio: “Parece haver uma vontade de eliminar o cheiro da corrupção e, ao mesmo tempo, conservar o dinheiro. Romper a dependência da profissão médica relativa à indústria farmacêutica demandará mais que a nomeação de comitês e outros gestos. Será preciso uma nítida ruptura com um comportamento extremamente lucrativo”.17
A indústria sabe jogar com rivalidades pecuniárias entre médicos. Ela tem como alvo os líderes de opinião, em primeiro lugar os especialistas e os professores universitários que exercem a medicina em hospitais (PU-PH), que trabalham no serviço público. Um PU-PH que não seja profissional liberal inicia sua carreira ganhando cerca de 6.400 euros líquidos por mês e a termina com um salário de 10.500 euros líquidos, sem contar diversos benefícios e a remuneração dos plantões.18Mas seus colegas das clínicas ou os que têm uma atividade liberal no próprio hospital ganham muito mais.
Bruno Toussaint se tornou pedagogo: “Uma vez no exercício profissional, no cuidado ou na redação científica, no ensino, na participação em qualquer expertise, o vínculo é uma fonte de conflito. A pessoa que tem um vínculo de interesse com uma empresa farmacêutica é de fato influenciada em tudo o que concerne a essa área, não só para defender um medicamento ou outro”. A influência é bem mais difusa do que a corrupção. Vários estudos revelaram, assim, que os médicos generalistas franceses que aceitam os presentes das empresas são também aqueles cujas prescrições se mostram menos em harmonia com o estado dos conhecimentos e as mais dispendiosas para o seguro-saúde.19
Longe de garantir a independência, a transparência talvez represente um primeiro passo. Em matéria de financiamento político, lembremos que o Parlamento tinha autorizado num primeiro momento o das campanhas eleitorais pelas empresas, com uma obrigação de publicidade. A revelação do apoio maciço a alguns eleitos por parte de empresas do tratamento de águas ou da construção e obras públicas durante a campanha legislativa de 1993 tornara a situação insustentável; o Legislativo acabou proibindo e organizando um financiamento público. Até hoje, a população se mostra mais exigente quanto à probidade dos políticos do que a dos médicos ou especialistas, mas isso pode mudar. “Muitos clínicos estão tomando consciência e isso está prestes a acabar”, garante Chauvin. E Yazdanpanah o testemunha: “Em 2017, pensava que, dadas minhas novas responsabilidades no Inserm [Institut National de la Santé et de la Recherche Médicale (Instituto Nacional da Saúde e da Pesquisa Médica)], era melhor parar. Isso está mais claro em minha cabeça; estou menos preocupado”.
Ciência e lucros
Muito além dos presentes e dos representantes de vendas que cortejam os médicos generalistas, a indústria farmacêutica preserva sua grande lucratividade tornando-se indispensável na elaboração de conhecimentos. Inclusive utilizando-se da conduta científica para seus próprios fins, ressalta John Abramson, professor da Harvard Medical School (Faculdade de Medicina de Harvard): “Os laboratórios farmacêuticos transmitem informações aos médicos para convencê-los a exercer da melhor forma seus interesses. O problema é que os médicos não se encontram suficientemente armados para desvendar essas manobras. A medicina fundamentada nas provas e a medicina de alto nível são muitas vezes mais influenciadas pelos interesses das empresas farmacêuticas do que pela saúde dos pacientes”.20 A indústria joga, sobretudo, pelo viés da publicação: quando um estudo não é bom, ele pode continuar na gaveta. Constatando que cerca da “metade dos ensaios clínicos realizados jamais é relatada”, principalmente os resultados negativos, um coletivo internacional criado em 2013 milita em prol de sua publicação integral.21
As melhores ferramentas podem ser mal utilizadas, explica Toussaint: “A medicina baseada nas provas continua a ser muito importante quando se trata de estudar a eficácia de uma intervenção. Em compensação, quando se trata de gerar efeitos indesejáveis, é a prudência que manda. Não havia necessidade de cinquenta ensaios para provar que o Mediator era muito perigoso. Tínhamos dados de química e de farmacologia suficientes para prever o que ia acontecer. Desde os primeiros casos, demorou muito tempo para estancar os estragos”.
Inovação?
Como as empresas conseguiram ter esse poder? “Se você é infectologista e quer fazer pesquisa clínica, você não tem outra solução a não ser trabalhar com a indústria. Caso contrário, você não tem as moléculas ou as vacinas em desenvolvimento”, explica Chauvin. “Felizmente, existe parceria público-privada”, assegura Tattevin, que não esconde seus próprios vínculos de interesse. E prossegue: “Se não houvesse a indústria farmacêutica, de um lado, e o hospital, do outro, jamais haveria esse progresso, como vi para a aids”. Lacombe se mostra ainda mais categórica: “É preciso olhar as coisas de frente. Não se pode produzir inovação científica sem a indústria. É por isso que as coisas são enquadradas”.
Toussaint confirma. “É claro, há uma regulação. Os poderes públicos dizem: ‘Vocês têm uma autorização para colocar no mercado quando comprovar que seu medicamento tem certa eficácia e não é extremamente perigoso. Uma vez feitos os estudos, observaremos o relatório. Você terá o retorno de seu investimento, graças ao preço do medicamento’. A curto prazo, isso não custa muito para a coletividade. É depois que isso se torna um problema! Os medicamentos são produzidos por iniciativa das empresas nas áreas que lhes interessam, do modo como as interessa. Sem dúvida, elas devem a transparência às autoridades, mas detêm os dados. E, com o passar dos anos, o regulador torna-se mais fraco que o regulado.”
“A inovação é uma palavra-chave muito poderosa, que permite suscitar a adesão da opinião pública e dos que tomam as decisões. Nós brandimos o progresso terapêutico para não calar a indústria farmacêutica. Mais de perto, isso parece muito menos evidente. As cifras da comissão da transparência da HAS ou da Prescrire mostram que, dos novos medicamentos, poucos são melhores do que aqueles de que já dispúnhamos. Observamos, sobretudo, um papel insignificante da inovação”, analisa Scheffer. Entre as 1.292 novas especialidades ou novas indicações estudadas pela Prescrire entre 2007 e 2019, apenas 7,7% corresponderam a um progresso “notável”; 1% representou um progresso “mínimo”; nada foi demonstrado para 59,1%; e 16,3% se mostraram mais perigosas do que úteis.
A indústria gasta bem mais com a comercialização de seus produtos do que com a pesquisa e o desenvolvimento. Os estudos comparados de moléculas existentes para as populações mais reduzidas, como as crianças, as pessoas idosas e as grávidas, não interessam muito. No entanto, ela conserva as benesses do Estado e alcança o segundo lugar relativo à distribuição do crédito dos impostos para pesquisa na França.22 No entanto, se concedidos a laboratórios públicos, esses fundos permitiriam reduzir a influência das empresas sobre a produção e a difusão do saber médico. Em 2005, a Itália abriu o caminho ao instaurar uma taxa de 5% sobre os gastos promocionais das empresas farmacêuticas visando aos profissionais da saúde. O dinheiro recolhido por um fundo nacional permite financiar uma pesquisa clínica conduzida diretamente pela Agência Italiana de Medicamentos, que não se contenta mais em apenas ler os estudos que lhe são submetidos. Seus pesquisadores controlam inteiramente os dados e os estudos que devem ser publicados em sua integralidade.
Além dos medicamentos, o maná que representam os serviços, os dispositivos e os aparelhos médicos ou os dados de saúde suscita cobiças e tentativas de corrupção. A chegada de novas moléculas e de possíveis vacinas contra a Covid-19 demandará a maior vigilância, pois os lucros previstos pela indústria estão à altura da angústia que se apoderou do planeta. Fenômeno com consequências ainda mais pesadas: os interesses financeiros e os jogos de influência põem o foco da atenção nas terapêuticas, nos tratamentos, no modelo hospitalar; ora, essa crise é testemunho, antes de mais nada, de uma falência da saúde pública, da prevenção, da redução do risco, dos cuidados primários, que simboliza a ruína do “testar, traçar, isolar”.
*Philippe Descamps é jornalista do Le Monde Diplomatique.
1 “Emmanuel Macron: ‘Ce moment ébranle beaucoup de choses en moi’” [Emmanuel Macron: “Este momento provoca muitas coisas em mim”], Le Point, Paris, 15 abr. 2020.
2 Ler Renaud Lambert, “Plombiers en blouse blanche” [Encanadores com jaleco branco], Le Monde Diplomatique, jul. 2020.
3 Pesquisa on-line da Harris Interactive encomendada pela Philip Morris France, realizada em 15 e 16 de junho de 2020 com uma amostra representativa de 1.032 pessoas.
4 Artigo 14 do Código de Deontologia, artigo R. 4127-14 do Código da Saúde Pública.
5 Mandeep R. Mehra, Frank Ruschitzka e Amit N. Patel, “Retraction – Hydroxychloroquine or chloroquine with or without a macrolide for treatment of COVID-19: a multinational registry analysis” [Retração – Hidroxicloroquina ou cloroquina com ou sem um macrolídeo para o tratamento de Covid-19: registro de análise multinacional] The Lancet, Londres, 5 jun. 2020.
6 “Repurposed antiviral drugs for COVID-19; interim WHO Solidarity trial results” [Drogas antivirais reindicadas para Covid-19; resultados de testes da OMS Solidariedade], MedRxiv, 15 out. 2020. Disponível em: www.medrxiv.org.
7 Pesquisa realizada pela Ipsos para Les Entreprises du médicament, de 26 a 29 de novembro de 2019, com uma amostra representativa de 1.029 pessoas.
8 “Quelques leçons de la crise” [Algumas lições da crise], Formindep, 3 jul. 2020. Disponível em: https://formindep.fr.
9 “Pourquoi garder son indépendance face aux laboratoires pharmaceutiques?” [Por que manter a independência dos laboratórios farmacêuticos?], La Troupe du R.I.R.E., 2014. Documento inspirado no manual “Comprendre la promotion pharmaceutique et y répondre” [Compreender a propaganda farmacêutica e reagir a ela], OMS e Action Internationale pour la Santé, 2013.
10 “Classement 2018 des facultés françaises en matière d’indépendance” [Classificação 2018 das faculdades francesas em matéria de independência]. Disponível em: https://formindep.fr.
11 Arrêt du Conseil d’État [Decisão do Conselho de Estado] n.334396, 27 abr. 2011.
12 Sobre as missões dos órgãos públicos, ler “Un empilement d’institutions” [Uma pilha de instituições]. Disponível em: https://www.monde-diplomatique.fr/.
13 www.transparence.sante.gouv.fr.
14 www.eurosfordocs.fr.
15 “‘Transparence CHU’: notre enquête sur les liens entre médecins et groupes pharmaceutiques à Clermont-Ferrand” [“Transparência CHU”: nossa pesquisa sobre os vínculos entre médicos e grupos farmacêuticos em Clermont-Ferrand], La Montagne, Clermont-Ferrand, 10 jan. 2020.
16 “L’ordre des médecins” [A Ordem dos Médicos], Cour des Comptes, Paris, dez. 2019.
17 Marcia Angell, “Drug companies and doctors: A story of corruption” [Empresas de medicamentos e médicos: uma história de corrupção], The New York Review of Books, 15 jan. 2009.
18 De acordo com as últimas informações do Ségur, os status dos clínicos de hospitais e dos professores universitários.
19 Cf. especialmente Bruno Goupil et al., “Association between gifts from pharmaceutical companies to French general practitioners and their drug prescribing patterns in 2016” [Associação entre presentes das empresas farmacêuticas para médicos generalistas franceses e seus métodos de prescrição de medicamentos em 2016], British Medical Journal, v.367, n.8221, Londres, Pequim, Délhi, Nova York, 6 nov. 2019.
20 “Big Pharma, labos tout puissants” [Big Pharma, laboratórios todo-poderosos], documentário de Luc Hermann e Claire Lasko, Arte, 2020.
21 www.alltrials.net.
22 “L’évolution et les conditions de maîtrise du crédit d’impôt en faveur de la recherche” [A evolução e as condições de controle do crédito de impostos em favor da pesquisa], Cour des Comptes, jul. 2013.