Uma preocupante mudança de atitude nas relações internacionais
Em poucos dias, passamos da perspectiva de bombardeio da Síria para negociações entre Washington e Moscou. Teerã deixa entrever possíveis aberturas. Esses movimentos refletem as mudanças da ordem global, que luta para se recompor após a Guerra Fria, desprezando até mesmo as regras da segurança coletivaAnne-Cécile Robert
O veto que Moscou, por três vezes, opôs às resoluções da ONU que ameaçavam impor sanções a Damasco repousa “sobre uma concepção insuportável da legalidade internacional”, estimou um diplomata à margem da XXI Conferência Anual dos Embaixadores da França, no Palácio do Eliseu, em 28 de agosto de 2013.1 Cada vez mais frequente nos debates de política externa, esse tipo de declaração revela a mudança de atitude das relações internacionais.
Desde o século XIX, a ordem jurídica mundial tende prioritariamente a “erradicar o flagelo da guerra”, nas palavras da Carta da ONU. Como a Liga das Nações2 que a precedeu, a organização faz da paz o valor supremo, em função da qual as instituições e a legislação se organizam. Seu objetivo primeiro é “manter a paz e a segurança internacionais” (artigo 1, parágrafo 1). Nessa perspectiva, são proibidos o uso da força e a ingerência nos assuntos internos das nações (artigo 2), porque perturbam as relações internacionais e podem levar à guerra.
Para preservar – e na necessidade de restabelecer – a paz, a “segurança coletiva” implica garantias: mecanismos jurídicos, diplomáticos e institucionais, coercitivos ou não, que permitem reagir em comum contra uma ameaça à paz e à estabilidade internacionais. Assim, o capítulo VI da Carta incide sobre a solução pacífica das controvérsias. Já de início o famoso capítulo enfatiza a precedência em relação ao recurso à força que pode ser autorizado pelo Conselho de Segurança. O artigo 33 afirma em especial: “As partes em uma controvérsia, que possa vir a constituir uma ameaça à paz e à segurança internacionais, procurarão, antes de tudo, chegar a uma solução por negociação, inquérito, mediação, conciliação, arbitragem, solução judicial, recurso a entidades ou acordos regionais, ou a qualquer outro meio pacífico à sua escolha”.
Trata-se de elaborar, por meio da “cooperação” e de “relações amigáveis”, um espaço público global de discussão e de negociação no qual se definem regras do jogo aceitas por todos. Assim, as imunidades diplomáticas permitiram a fluidez das relações entre os países, com os embaixadores e outros emissários da paz não tendo mais medo de ser sacrificados pela ira de um anfitrião insatisfeito. Elas certamente não são uma forma de combater os líderes do crime, mas criam a possibilidade de um diálogo, minimizando os mal-entendidos.
Não faltam fracassos da segurança coletiva, como o lembra a retirada do Japão e da Alemanha da Liga nos anos 1930, um prelúdio da Segunda Guerra Mundial. Da mesma forma, depois de 1945, a guerra não desapareceu da face da Terra. No entanto, uma norma foi definida para a coletividade dos países; quem quiser se desviar dela deve se justificar. E de qualquer forma ainda há alguns grandes sucessos da ONU, como a autodeterminação do Timor Leste3 e a descolonização da Namíbia.
“Nada a descobrir na contemplação da violência”
Se a paz é o valor básico, não se trata de excluir a proteção dos direitos humanos do campo da intervenção internacional, mas de estabelecer uma ordem de prioridade. O desenvolvimento da segurança coletiva se faz acompanhar daquele do direito humanitário, cujas premissas apareceram após o massacre da Batalha de Solferino, em 1859. A falta de recursos para a saúde tinha, então, levado à criação da Cruz Vermelha e à adoção de regras legais para facilitar o acesso dos socorros ao campo de batalha. Mais tarde, o massacre de Ypres pelo Exército alemão em abril de 1915 levou, em 1925, a uma convenção que proibiu o uso de armas químicas. Foi nessa pequena cidade belga que se utilizou pela primeira vez o gás de mostarda em larga escala.4
Do ponto de vista da segurança coletiva, a invocação dos direitos humanos suscitou de início a desconfiança porque serviu de pretexto a estratégias imperialistas. No século XIX, as potências europeias recorriam a eles para justificar a interferência nos países que queriam colonizar (“intervenções humanitárias”).5 Idealmente, a proteção da população deveria ser um dos benefícios colaterais da paz. E, na defesa das liberdades, o uso da força só intervém como último recurso, quando todas as vias pacíficas fracassaram.
O mundo pós-Guerra Fria não questionou a visão de um direito internacional como uma “torre de controle” dos comportamentos dos países no exterior. Desde o caso de Manchukuo (a invasão da Manchúria pelo Japão) em 1932, as anexações de território pela força foram proibidas. Ordenada pelo Conselho de Segurança, a guerra pela libertação do Kuwait em 1990 se encaixou nesse quadro.
Mas a sequência dos acontecimentos permitiu então um vislumbre da virada “emocional” das relações internacionais. Foi após o falso testemunho da filha do embaixador do Kuwait nos Estados Unidos, descrevendo a agonia de bebês em incubadoras desligadas, que o Congresso norte-americano decidiu autorizar a ação militar contra o Iraque.
Em 1999, com a intervenção da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) no Kosovo, não autorizada pelo Conselho de Segurança, confirmou-se o início de uma mudança na ordem das prioridades internacionais. Os meios de comunicação e a pressão de numerosas associações alimentaram o movimento. As imagens de mulheres e crianças fugindo dos abusos do Exército sérvio, acusado de organizar uma “limpeza étnica”, suscitaram uma reprovação legítima do regime de Slobodan Milosevic.6 Mas, passados quinze anos, tendo o “mestre de Belgrado” morrido em uma prisão em Haia e o Kosovo proclamado sua independência, seus novos líderes não são modelos de virtude e há inúmeros incidentes de fronteira entre albaneses, sérvios e kosovares. Pouco importa para a Aliança Atlântica: pensar a segurança coletiva conta menos do que ter “punido” Milosevic.
Um cenário semelhante caracterizou a intervenção anglo-francesa na Líbia na primavera [do Hemisfério Norte] de 2011: os crimes do regime de Muamar Kadafi, abundantemente relatados por intelectuais de reflexão fraca e expressão forte, prepararam a opinião pública para uma ação militar internacional. Mas, após a queda do Guia, os mercenários desempregados e os arsenais pilhados da Líbia favoreceram a desestabilização do Sahel, tendo como ponto culminante a divisão do Mali e um ano depois… uma nova operação militar ocidental.
Mais uma vez a segurança coletiva havia sido relegada a segundo plano, apesar dos esforços consideráveis da União Africana, que tentou várias mediações com Kadafi – todas abortadas sob a pressão das chancelarias europeias. No final de agosto de 2013, o drama chegou de novo ao auge, já que os crimes químicos cometidos na Síria enchem de desgosto os corações mais sensíveis.
Uma criança que chora, o corpo crivado de balas de uma jovem ou o cadáver de um camponês morto sob um monte de bombas levam facilmente à reflexão. “A preocupação”, explica, contudo, Françoise Bouchet-Saulnier, dos Médicos sem Fronteiras, “é que não há nada a descobrir na contemplação da violência”. Um cadáver não explica nada de sua triste sorte. E, desde o incidente de Mukden, em 1931, conhece-se a propensão dos regimes ansiosos para ir à guerra a organizar a precipitação dos acontecimentos.7 Durante o verão [do Hemisfério Norte] de 1994, em Ruanda, os meios de comunicação franceses se apiedaram de colonos refugiados antes de perceber que se tratava de genocidas em fuga…
Os Brics recusam-se a continuar de fora
Com o surgimento da “responsabilidade de proteger as populações”,8 o direito internacional mergulha um pouco mais profundamente no banho da emotividade, com cada um colocando sua “linha vermelha” no lugar que lhe convém, sem nem sequer fingir se preocupar com a “segurança coletiva”. Mas, mais uma vez na questão síria, os diplomatas parecem ter sido convencidos de que não poderiam “não fazer nada”, alguns se deixando levar por certo messianismo. Como se só houvesse a via armada.
Contrariamente à tradição que é sua há décadas, o governo francês assume assim um “absolutismo moral”, que não deixa de lembrar a atitude dos neoconservadores norte-americanos. Estes, na época de George W. Bush, tinham mergulhado a “comunidade internacional” em um clima de Velho Testamento, falando em “punições” e “castigos” do “Eixo do Mal” no Iraque ou no Afeganistão. Ao fazê-lo, Paris impede qualquer negociação séria, eliminando das discussões algumas facções da oposição síria.
Como assinalam alguns psicanalistas, a emotividade revela a imaturidade do sujeito que não resolveu alguns conflitos afetivos da infância. Estaria a sociedade internacional em plena regressão? A ideia de “ataques” mais ou menos “cirúrgicos”, que habilmente evitam os inocentes para atingir apenas os carrascos, apoia-se no pensamento mágico. As mortes de civis tornam-se, nessa visão, meros “danos colaterais”. E o uso de drones, dirigidos a distância, por soldados mantidos bem longe dos combates também participa da eufemização infantil da violência. Essa prática é certamente menos traumatizante para os militares que a realidade de um bombardeio, como os que a Europa conheceu entre 1939 e 1945, em Roterdã ou em Dresden.
Segundo a Anistia Internacional, 112 países torturaram seus cidadãos em 2012; em cinquenta, as forças de segurança são responsáveis por homicídios ilegais cometidos em tempos de paz; em 31, registraram-se desaparecimentos forçados. É provável que a Síria figure em todas essas “listas negras” – assim como outros Estados ditatoriais ou autoritários, cujas populações não têm, em sua desgraça, a chance de ser objeto da atenção diplomática e da mídia. Contam-se milhões de mortos na República do Congo desde 1997, e a repressão de tâmeis no Sri Lanka fez 40 mil vítimas em 2012.
Que buscam em última instância as grandes potências que, desde 1990, realizam intervenções militares “humanitárias”? O que elas têm a ganhar com a banalização do uso da força? Ao distorcer a Carta das Nações Unidas, não se abre a porta da ONU, já frágil, para os ventos tumultuosos das relações de forças desenfreadas? Deslegitimam-se as regras do jogo estabelecidas em 1945. Prenúncio dessas perturbações, a intervenção da Otan no Kosovo tinha justificado, aos olhos de Moscou, a repressão na Chechênia. Se o abuso da força é, em todos os momentos, o apanágio dos poderosos, por que facilitá-lo enfraquecendo aquilo que pode detê-lo?
A mobilização de Paris e Washington, perante a oposição dos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) no caso sírio, lança uma luz crepuscular sobre os equilíbrios internacionais herdados da Segunda Guerra Mundial. A justificativa para o uso da força, sem medo de violar a Carta das Nações Unidas, reavivou na memória dos países do Sul a lembrança de intervenções humanitárias. Brasília, Pretória e Nova Déli exigem o respeito a ela. Recusam-se a ser relegadas à sala de espera da “comunidade internacional”. Não são mais os países dependentes e submissos de outrora. Pensando justificar, com um ativismo militar desenfreado, seu prestígio internacional, não estaria a França preparando sua expulsão da história e, mais especificamente, a perda de um direito de veto que sua identificação com um Ocidente guerreiro não poderia mais justificar?
Anne-Cécile Robert é jornalista e autora, com Jean Christophe Servant, de Afriques, années zéro (Nantes, L’Atlante, 2008).