Uma utopia ao alcance das mãos
Inventar uma outra vida, com outras relações sociais, pode parecer fora de propósito em um período de crise como o atual. No entanto, fazer esse exercício nunca foi tão necessário. Na Europa, na América Latina e na Ásia, a ideia do direito a uma renda mínima incondicional avançaMona Chollet
Trabalhamos e, graças ao trabalho, recebemos dinheiro. Essa lógica está tão arraigada na mente das pessoas que sugerir uma inversão da ordem das coisas inevitavelmente levanta dúvidas sobre a saúde mental de quem o fez. A perspectiva de instaurar uma renda incondicional, ou seja, prover cada um com uma quantia mensal suficiente para lhe permitir viver, independentemente de sua atividade assalariada, aparece como uma aberração. Ainda estamos convencidos de ter de arrancar de uma natureza árida e ingrata os meios de nossa subsistência individual; mas a realidade é bem diferente.
Bolsas de estudo, licença-maternidade, pensões, bolsa família, indenizações por demissão: muitos benefícios que têm em comum o fato de dissociar renda e trabalho. Por mais insuficientes que sejam e por mais atacados que possam se revelar todos esses dispositivos, eles mostram que, se a renda mínima incondicional é uma utopia, trata-se de uma utopia que “já existe”. Na França, em 2005, a renda da população dependia 30% da redistribuição: “Apesar de todos os discursos ideológicos e da liquidação do Estado social, vilipendiado pelos neoliberais, a parcela da transferência de renda aumentou inexoravelmente sob os presidentes Mitterrand, Chirac e Sarkozy”.1 E não seria muito difícil mover novamente o cursor para garantir que todos estejam ao abrigo da necessidade (veja artigo na pág. 32).
Tendo em mente que a primeira consequência de uma renda básica é eliminar o desemprego como um problema – tanto como questão social quanto como fonte de ansiedade do indivíduo –, seria possível economizar, de início, as somas envolvidas na busca do objetivo oficial do pleno emprego. Nada mais justificaria os presentes dados às empresas para incentivá-las a contratar. Além disso, por ser a renda garantida universal e incondicional – ela é concedida a todos, pobres e ricos, estes últimos a recebendo como reembolso por meio do imposto –, as economias seriam realizadas eliminando todo o trabalho administrativo relacionado ao acompanhamento de beneficiários da assistência social, questionável por seu caráter humilhante, intrusivo e moralizador.2
Mas antes de prosseguir, e já que começamos, é importante definir bem do que exatamente estamos falando. Uma medida defendida nos anos 1960 por economistas tão diferentes como James Tobin – também por trás da proposta de taxação das transações financeiras – e o liberal Milton Friedman tem de fato motivos para inspirar perplexidade. Essa grande lacuna permanece até hoje: na França, a renda garantida defendida por Christine Boutin (Partido Cristão-Democrata) não é a mesma que a apoiada por Yves Cochet (Verdes) ou pelo Movimento Utopia, transversal aos Verdes e ao Partido de Esquerda.
Com um montante muito inexpressivo para que se possa dispensar o emprego, a renda básica propagada pelos liberais funciona como um subsídio para as empresas e se inscreve em uma lógica de desmantelamento da proteção social: é a perspectiva do imposto negativo de Friedman. Em suas versões de esquerda, ao contrário, ela deve ser suficiente para viver – mesmo que a definição de “suficiente”, suspeitamos, dê margem a perguntas espinhosas. E não a concebemos sem uma defesa conjunta dos serviços públicos e dos seguros sociais (pensões, auxílio-desemprego ou doença), bem como alguns benefícios sociais. Há também acordo sobre algumas outras características: ela deveria ser paga mensalmente a cada indivíduo, do nascimento até a morte (os menores recebendo uma quantia mais reduzida que a dos adultos), e não a cada lar; nenhuma condição ou contrapartida seria exigida; e seria acumulável com os rendimentos do trabalho.
Assim, cada um poderia escolher o que deseja fazer da vida: continuar a trabalhar, ou seguir desfrutando seu tempo contentando-se com um nível de consumo modesto, ou, ainda, alternar entre os dois. Os períodos fora do emprego não seriam mais suspeitos, uma vez que o trabalho remunerado deixaria de ser a única forma reconhecida de atividade. Aqueles que escolhessem viver da renda garantida poderiam se dedicar inteiramente às tarefas pelas quais são apaixonados e/ou que lhes pareçam socialmente úteis, sozinhos ou com outros, pois o projeto se baseia fortemente nas possibilidades de livre associação que abriria.
Em 2004, dois pesquisadores da Universidade Católica de Louvain tentaram adivinhar os efeitos produzidos pela renda básica, enfocando os vencedores do jogo televisivo Win for life, que oferece uma renda mensal para seus ganhadores. Entre as notáveis diferenças entre as duas situações, que obrigam a relativizar suas conclusões, Baptiste Mylondo destaca uma que eles negligenciaram: “Enquanto o beneficiário da renda incondicional está cercado por outros beneficiários, o vencedor do sorteio está totalmente isolado. Ora, o valor do tempo livre aumenta com o número de pessoas com quem é possível compartilhá-lo”.3 Portanto, para um grande número de pessoas a renda garantida mudaria consideravelmente ao mesmo tempo a relação com o trabalho, a relação com o tempo, a relação com o consumo e a relação com os outros – aí incluídos, por contágio, aqueles que optassem pelo emprego assalariado. No entanto, é verdade que ela imporia a criação de novos modos de socialização, sem o que poderia também favorecer o recolhimento, especialmente entre as mulheres, que correriam o risco de ser confinadas ao lar.
Na França, a reivindicação de uma renda garantida se cristalizou durante a revolta estudantil contra o projeto de contrato de inserção profissional (CIP) do governo de Édouard Balladur, em 1994, com a criação, em Paris, do Coletivo de Agitação por uma Renda Garantida Ideal (Cargo), logo integrado ao movimento Agir em Conjunto contra o Desemprego (AC!). Ela ressurgiu durante o movimento de desempregados, na virada de 1997 para 1998. Na mesma época, o filósofo ambientalista André Gorz se uniu à ideia,4 que encontrou eco no movimento antiglobalização que estava sendo formado.5 Alain Caillé, fundador do movimento antiutilitarista nas ciências sociais (Mauss), também foi partidário da proposta.
Finalmente, em resposta aos ataques de que seu regime de indenização foi objeto a partir de 2003, certos militantes defenderam não somente a manutenção do dispositivo, mas sua extensão ao conjunto da população, de modo a normalizar a alternância de períodos de folga e de períodos trabalhados, sabendo que estes últimos se alimentam dos primeiros e não poderiam existir sem eles. Sua proximidade com essa luta levaria Christophe Girard, prefeito socialista do quarto distrito de Paris, a pleitear na véspera do congresso de seu partido, em outubro de 2012, o estabelecimento gradual de uma renda universal.6
Antes, e mesmo que não tenha restado muita coisa da medida finalmente votada, a ideia de que a sociedade deve a seus membros os meios de sua subsistência tinha assombrado os debates parlamentares em torno da criação da renda mínima de inserção (RMI) pelo governo de Michel Rocard, em 1988. À esquerda, alguns, a começar pelo relator do texto, Jean-Michel Belorgey, contestavam o condicionamento da RMI a “esforços de inclusão”. E eles se perguntaram: podemos falar de um “direito” a uma renda cuja obtenção é suspensa a partir de uma passagem por uma comissão e para a qual uma contrapartida é exigida?7 Esse é também o significado do slogan sem floreios das manifestações de desempregados, “Dinheiro para viver!”: em uma sociedade que não é ameaçada por nenhuma penúria, todos deveriam ter direito a uma vida digna, sem para isso ter de se esforçar.
A renda básica visa de início fornecer a todos o mínimo vital, seja no Norte ou no Sul, onde também tem seus defensores. Acredita-se em geral que teria como efeito estimular a atividade econômica nos países em desenvolvimento e reduzi-la ligeiramente em outros lugares – razão pela qual ela interessa aos ecologistas. Nas sociedades ocidentais, ela ofereceria a oportunidade de escapar do desemprego, da precariedade, das más condições de habitação e pobreza, ou, para alguns assalariados, do sofrimento físico e mental experimentado durante o trabalho. Mas ela não colocaria por terra o capitalismo, e, ainda que alguns a associem a um projeto de renda máxima,8 não eliminaria as desigualdades. E é isso que muitos não deixam de censurar nela. Assim, o comunista libertário Claude Guillon, por considerar o programa muito tímido, satirizou em um livro aquilo que chama de “garantismo”. Ele admite, no entanto, que se fala melhor de política com a barriga cheia…9
Confiar nos indivíduos
Em vez de derrubar uma ordem injusta para substituí-la por uma ordem justa, a renda básica daria “um impulso cultural”. Ela traria ao mesmo tempo reconhecimento e incentivo para as atividades fora do mercado, de maneira a começar uma transição que ninguém pode prever aonde levaria. É precisamente o abandono dessa lógica que seduziu o ativista suíço Oliver Seeger, coautor da versão francesa do filme A renda básica.Antigo membro da Longo Maï, cooperativa agrícola comunitária estabelecida após 1968 nos Alpes da Haute-Provence, ele rejeita, em retrospectiva, “esse pressuposto implícito de que éramos uma vanguarda revolucionária, uma pequena elite que estava se preparando para o dia D”. A renda garantida, ao contrário, permite “deixar as pessoas livres. Não pensar por elas, não lhes passar uma ideologia já mastigada que seriam condenadas a seguir”. Essa mudança de paradigma seria tudo menos fácil: “Eu espero que as pessoas tenham dor de cabeça, de coração, de estômago, que todo o seu metabolismo seja desarranjado, se elas tiverem de pensar sobre o que realmente sentem vontade de fazer! Como poderia ser de outra forma, quando, durante anos, fomos trabalhar sem fazer perguntas? Mas eu realmente gostaria de ter a chance de ver o que isso poderia proporcionar”.10
Outra importante crítica dirigida à renda garantida tem a ver com seu questionamento da norma de emprego assalariado. Historicamente, o movimento dos trabalhadores se organizou entre os assalariados. Ali ele forjou todas as suas ferramentas de resistência à exploração e obteve todas as suas conquistas, dos feriados e fins de semana remunerados à proteção social, a ponto de às vezes esquecer que o “desaparecimento do emprego assalariado” era uma das metas estabelecidas pela Confederação Geral do Trabalho (CGT) na Carta de Amiens, em 1906… Para o mundo sindical e as correntes políticas que lhe são próximas, dissociar trabalho e renda soa, portanto, como um passo perigoso ou herético. Economista membro da Associação para a Taxação das Transações Financeiras para Ajuda aos Cidadãos (Attac), Jean-Marie Harribey escreve que o trabalho constitui, “quer gostemos ou não”, um “vetor essencial de integração social”, porque confere ao indivíduo “sua qualidade de homem completo, produtor e cidadão”.11
Em contrapartida, promotores da ideia da renda garantida formulam uma crítica do trabalho assalariado. A maioria dos empregos, argumentam, não traz aos que os desempenham a autoestima nem o sentimento de servir ao interesse público – isso quando não lhes proporcionam um sentimento totalmente oposto. E, mesmo que fosse esse o caso, os ganhos de produtividade ligados ao progresso técnico de qualquer maneira não permitiriam garantir trabalho para todos. Favorável a um salário vitalício incondicional financiado pela extensão do sistema de cotização, Bernard Friot compartilha essa análise: “É melhor não fazer nada do que ser um trabalhador que produz sementes estéreis para a Monsanto”.12
Já a corrente inspirada na autonomia operária italiana sustenta sua crítica do salário no conceito de general intellect, emprestado de Karl Marx. NosGrundrisse, Marx previa que chegaria um momento em que o conhecimento acumulado ao longo da história pelo conjunto da sociedade seria o cerne da criação de valor. Com o advento da economia do intangível, chegamos a isso, afirmam seus leitores. E, portanto, o capitalismo só pode se tornar cada vez mais parasita. O essencial da produção de riqueza se desenharia, portanto, fora do emprego. Entre as figuras da cigarra despreocupada e da formiga trabalhadora, [Yann] Moulier-Boutang interpõe uma terceira, a da abelha: seu trabalho de polinização não cria valor direto, mas nenhuma produção poderia existir sem ele. Da mesma forma, cada pessoa, com as mais simples atividades diárias, participa indiretamente da economia.
O argumento tem a vantagem de combater as alegações, agitadas pelos demagogos, de “assistidos” inúteis e preguiçosos vivendo do trabalho dos outros. Mas fazer disso a justificativa da renda garantida é uma armadilha que André Gorz percebeu muito bem: “Permanecemos assim no plano do valor do trabalho e da produtividade”. Ora, “a renda de existência só faz sentido se não exige nem remunera nada”: ela deve, pelo contrário, permitir a criação “de riquezas não negociáveis”.13
Não há necessidade, de qualquer maneira, de passar pelo general intellectpara fundamentar na teoria a instauração de uma renda garantida. Em La justice agraire[A justiça agrária], de 1796, um dos primeiros promotores da ideia, o revolucionário anglo-americano Thomas Paine, viu nisso uma justa indenização para a apropriação da terra por parte de alguns, ainda que supostamente pertencente a todos…