Uma viagem vigiada
Conseguir o visto de jornalista para a República Popular Democrática da Coreia levou dois anos. Essa concessão, porém, não quer dizer liberdade de movimento nem escolha do programa, muito menos conversas espontâneas na rua. Com poucas exceções, as autoridades decidem o que você deve ver. Mas não conseguem esconder tudo
Um cruzamento movimentado, carros em todas as direções, buzinas furiosas… Poderia ser Paris ou Milão. Mas estamos em Pyongyang, na República Popular Democrática da Coreia, no meio da tarde. O alvoroço é por causa da Feira Internacional da Primavera, realizada no Parque das Três Revoluções (política, tecnológica e cultural, segundo a terminologia adotada desde o reinado de Kim Il-sung, entre 1948 e 1994). Em um grande salão de exposições, centenas de empresas norte-coreanas e sobretudo estrangeiras vendem seus produtos ao grande público: computadores de última geração e telas planas de Hong Kong e do Japão, cosméticos da Suíça, café da Malásia, geladeiras da China, motores para bombas da Nova Zelândia, calçados norte-coreanos, isso sem falar dos produtos vietnamitas, russos etc. Até a European Business Association está ali. Em um país sob embargo internacional por decisão da ONU,1 não é pouca coisa.
É muito difícil andar pelos corredores, de tanta gente. “É sua loja de departamentos”, resume a representante de uma empresa ocidental. Famílias inteiras, mulheres sozinhas (muito mais numerosas), além de jovens, com o celular na orelha, saem com uma infinidade de pacotes; alguns sentam nos pequenos quiosques que vendem espetinhos ou sorvete.
O lugar, a multidão e a agitação refletem a febre de consumo de parte dos moradores da capital. Embora inquestionavelmente privilegiados – é preciso pagar em yuan, euro etc. –, os que andam pela feira não estão entre os mais ricos. Estes frequentam lojas mais exclusivas – cerca de vinte, na capital –, como relatam muitas pessoas entrevistadas fora do país. Segundo meus dois anjos da guarda, que não se afastaram um palmo durante toda a semana que passei na Coreia do Norte – servindo tanto de tradutores como de guias (muito) políticos –, essas lojas de luxo não existem. Nem os mercados semioficiais e privados.
Os habitantes mais modestos de Pyongyang, desde que disponham de algum dinheiro, podem fazer suas compras de produtos coreanos e importados em alguns supermercados que, embora pouco numerosos, contam com todos os atributos do gênero: carrinhos, cestos, caixas, em que se pode pagar com cartão de crédito. No domingo, vemos o segundo andar de um desses supermercados e seu enorme restaurante cheio de famílias que vieram almoçar em uma atmosfera alegre.
No entanto, a capital não se transformou em um vasto espaço de consumo. Longe disso. Basta andar pela rua ou pelo metrô (apenas uma visita autorizada, com um único trajeto entre duas estações) para constatar a presença de homens e mulheres pobremente vestidos, às vezes com grandes carregamentos. A maioria das pessoas com quem cruzamos não exala essa grande prosperidade. E o que dizer dos jovens soldados onipresentes na cidade – sem nenhuma agressividade – e muitas vezes trabalhando em obras? “A missão do Exército não é apenas defender o país, mas também participar de sua construção”, explica um de meus guarda-costas. Muito prático, pois essa mão de obra não custa grande coisa.
Palavra de ordem atual: Speed Pyongyang
Politicamente, o regime reafirma suas convicções, não importa quão alucinadas sejam. O povo parece guiado por semideuses, líderes de uma capacidade de visão absoluta, objetos de veneração ilimitada: Kim Il-sung, o fundador, que expulsou os ocupantes japoneses, depois os norte-americanos, até se tornar “presidente para a eternidade”; seu filho Kim Jong-il, que consolidou o Exército e dotou o país de capacidades nucleares; e, por fim, o mais novo, Kim Jong-un, de 32 anos, que pretende modernizar o país. Monumentos, piscinas, escolas: não há um edifício público em que não se encontre o retrato de pelo menos uma dessas três sumidades, diante das quais todos se curvam como se estivessem na igreja. De acordo com as tábuas da lei local, a Coreia do Norte tem o melhor sistema político e social do mundo, protegendo seus cidadãos de um imperialismo agressivo e do capitalismo selvagem. Quem tiver alguma dúvida a esse respeito é enviado para um estágio de reeducação – a “escola do cérebro”, caçoam alguns no estrangeiro –, para os campos ou até para o fuzilamento.
Contudo, as condições materiais de vida melhoraram, e a capital se transforma. “Há dez anos”, conta um operador turístico vietnamita que veio identificar novos destinos, “tudo era cinzento, não havia praticamente nenhum carro. Hoje, a cor está em toda parte.” Nas roupas das mulheres.2 Nos imóveis também: uma floresta de torres de trinta ou quarenta andares, como em qualquer cidade asiática que se preze – algumas clássicas, outras com formas azuis arredondadas, outras parecendo um pincel verde e ocre –, vem colocar beleza ao lado dos edifícios austeros e maciços dos anos 1950, construídos no mais puro estilo soviético.
Às margens do Taedong, rio que atravessa a capital, abundam canteiros de obras: expansão da Universidade Kim Chek (de ponta em ciência e novas tecnologias), organização de uma orla turística. Um desejo inegável de modernizar a capital, conforme o atual slogan de Kim: “Speed Pyongyang”. É preciso “mostrar o alto nível civilizatório que desejamos para Pyongyang”, diz o Pyongyang Times(16 maio 2015). Não apenas para mudar a imagem da cidade, mas também para formar sua nova elite. Uma passagem pela biblioteca da Universidade Kim Il-sung, depois pela Kim Chek, revela diversas salas repletas de computadores, todos conectados à intranet local – muito rápidos e eficientes, segundo vários interlocutores. Os estudantes de mestrado têm acesso à rede mundial, sob certas condições, pois, diz o acompanhante da garota que nos faz as honras em Kim Chek, “também há coisas muito ruins na internet”. Os sites visitados por alunos e professores são devidamente listados. Difícil saber onde começa e onde termina o controle. Mas é certo que nenhum estudante tem endereço de e-mail para o exterior.
Os professores dessas instituições de prestígio parecem bem mimados. Prova disso é o edifício em construção às margens do Taedong, com vista para uma bela avenida, onde são alojados gratuitamente – uma antiga tradição, a crer na mulher que nos abre a porta de seu apartamento da década de 1990. O casal a quem fizemos uma visita devidamente preparada por meus anjos da guarda não tem nada de comum: marido professor na Universidade Kim Il-sung, sogro arquiteto que trabalhou com o “presidente para a eternidade”. O vasto apartamento – sete cômodos, dois banheiros – é perfeitamente projetado, com uma vista esplêndida para o Taedong. A dona da casa enfatiza que o mobiliário lhes foi dado “pelo grande líder Kim Jong-il”, como a todos os vizinhos nas torres gêmeas de quarenta andares. Para ela, não parece absurdo não ter podido escolher nada, nem que a uniformidade seja a regra. Será o mesmo para as próximas gerações, as que vemos hoje vestidas com roupas coloridas e diversificadas?
Precisamos notar que os quadros – atuais e futuros – contam com benefícios reais; a educação básica, na pura tradição dos países que reivindicam o comunismo, não é negligenciada. É verdade que as crianças estudam tudo o que se deve saber sobre a dinastia Kim, seus múltiplos feitos e os horrores do imperialismo norte-americano, mas também aprendem a ler e escrever: 99% dos homens e das mulheres são alfabetizados, e isso segundo as estatísticas do anuário da CIA, pouco suspeita de simpatias pró-norte-coreanas.3 É um resultado notável para um país em desenvolvimento.
Camponeses ainda trabalham com as mãos
Pista de gelo, teatros, centro equestre, parque aquático com tobogãs gigantes onde os coreanos escorregam às dezenas para se divertir no domingo, parques de diversões com carros bate-bate, montanhas-russas e videogames: a cidade também deve ser alegre. Nas periferias, e ainda mais no campo, não se toca a mesma música. Não há dados estatísticos nem entrevistas; apenas impressões durante uma travessia de oeste para leste, entre Pyongyang e Wonsan, no Mar do Leste: 160 quilômetros e quase três horas de carro, um desafio para as costas, um deleite para os olhos. Com a estrada feita de placas de cimento mais ou menos unidas, sujeitas a uma grande amplitude térmica (acima de 30 ºC no verão e até –20 ºC no inverno), portanto, cheia de buracos, é impossível ir depressa, o que deixa tempo para ver os arrozais, os campos de cereais e as vilas.
Estamos em plena temporada de replantio do arroz e trabalho da terra. Apesar da extensão dos terrenos, os camponeses muitas vezes trabalham manualmente, com instrumentos improvisados: pás, forquilhas. Às vezes, um arado é puxado por um boi magro ou, ainda mais raramente, por um pequeno trator – duas ou três vezes durante nossa viagem. De tempos em tempos, veem-se no meio dos campos manchas coloridas: são estudantes que deixaram a escola ou a universidade por dez ou quinze dias para vir replantar arroz ou semear cereais (trigo, milho). Trata-se de uma atividade obrigatória duas vezes por ano, durante a semeadura e o plantio, e depois a colheita. Além disso, vimos um monte de bandeirinhas vermelhas, de dezenas de soldados que também participam da atividade. Alguns, o ano inteiro.
Desde maio de 2012, os camponeses têm seus próprios lotes de terra. Eles são autorizados a gerir, em pequenas unidades de quatro ou cinco pessoas, uma parte dos campos, e até a vender os produtos obtidos. Combinada com a chegada de fertilizantes e uma ligeira melhoria dos métodos de cultura,4 a reforma permitiu um crescimento das colheitas. A fome desapareceu, segundo ONGs que ali se encontram5 e o Programa Alimentar Mundial. Mas, de acordo com um relatório da ONU publicado em março de 2013, quase três em cada dez coreanos (27,9%) ainda sofrem de desnutrição crônica.
No caminho de volta, nosso carro quebrou na entrada de uma vila, ligeiramente afastada da estrada. Estávamos a 40 quilômetros de Pyongyang.Antes que alguém viesse nos procurar, tivemos bastante tempo para atravessar a ponte e caminhar até as primeiras casas. Mas a simples ideia dessa caminhada enlouqueceu meus anjos da guarda, que apresentaram todos os argumentos do mundo para evitar esse passeio rural – como todos os outros.
Eles e seus colegas sabem perfeitamente que a palavra “proibição” tem um efeito devastador sobre a imagem de seu país. Assim, tentam mais ou menos ingenuamente fornecer uma explicação: a segurança, a falta de interesse do lugar, a possível hostilidade dos camponeses em relação a estranhos… Meus acompanhantes não são apparatchiksobtusos: eles dão seu melhor para atender a meus pedidos e aplicam as ordens com a maior flexibilidade possível. Sem se desviar, porém, de sua regra de ouro: nada é proibido, mas tudo o que não está no programa é vetado.
Nesse caso, a situação é tanto mais absurda pelo fato de que as casas da vila que vemos da estrada são bastante atraentes; há até um edifício abastado, recém-pintado – uma sala de reuniões públicas? Os coreanos que passam no final de tarde, carregando sacos mais ou menos pesados, a pé ou de bicicleta, têm uma aparência cansada e pobre. Mas quem iria pensar que o campo, mesmo em torno da capital, é rico?
Se é para sair de Pyongyang, meus anjos da guarda preferem que eu vá apreciar a elegante estação de esqui do Monte Masik (1.528 metros), construída pelo Exército e inaugurada em dezembro de 2013. É uma vista de tirar o fôlego, com equipamentos como os que encontramos no Ocidente: três teleféricos – logo haverá um quarto –, dez faixas em um campo de esqui de 1,4 mil hectares, um café no topo e, embaixo, um hotel “superluxo”: 92 quartos (dez deles suítes), com piscina de 25 metros, sauna, sala de ginástica, salão de cabeleireiro, boate, karaokê, salão de jogos, em breve um campo de golfe e até internet nos quartos. Tudo de primeira linha, construído apenas “com nossas próprias forças”, garante Ri Su Bom, o gerente, “por causa do boicote norte-americano”, que impede a colaboração de empresas ocidentais. Mesmo assim, no dia de nossa visita, dois técnicos estrangeiros – um alemão e um chinês – estavam fazendo a manutenção dos elevadores.
O preço de uma noite no hotel varia de US$ 100 a US$ 220 dólares, o que é pouco diante do que se oferece, mas, naturalmente, inacessível para a maioria dos norte-coreanos – o PIB per capita é de apenas US$ 135 por mês. Também está fora de alcance a prática de esqui, já que é preciso desembolsar US$ 28 pelo aluguel dos equipamentos e teleférico. Não muito democrático para um país que defende a igualdade total e reivindica uma sociedade sem classes. Mas é por uma boa causa: trazer divisas por meio de clientes estrangeiros – principalmente da Ásia e da Rússia, até seduzir os outros.
O novo rumo econômico do país foi definido no dia 30 de maio de 2014, em um comitê do Partido dos Trabalhadores liderado por Kim: reduzir (ligeiramente) o controle do Estado, dar liberdade às empresas semioficiais que lubrificam as engrenagens e colocam mercadorias nas prateleiras, e ampliar as zonas econômicas especiais (ZEE) abertas ao mercado e às empresas estrangeiras. Conhecidas como “medidas de 30 de maio”, as decisões penam para se traduzir em atos. Contudo, “nossa determinação é total”, afirma Ri Chol Sok, vice-presidente da Associação para o Desenvolvimento Econômico da Coreia, criada pelo Ministério das Relações Econômicas Estrangeiras. Como todas as autoridades encontradas, ele foi até o hotel.
Ri, que tenta ser convincente, não se restringe às frases feitas. “Aprendemos com nossas experiências e nossos erros, e também com as experiências de países estrangeiros. Queremos criar um ambiente favorável para que os investidores tenham condições melhores, podendo trabalhar sem obstáculos e lucrar.” Foram estabelecidas 26 ZEE. A lista de investimentos desejados ainda não está fechada, mas já inclui turismo, eletrônicos para o grande público, mecânica e agroindústria. Precisão útil, as taxas e impostos sobre o rendimento líquido não passarão de 14%, podendo chegar a 10% nos setores prioritários (contra 25% atualmente).
“É a primeira vez que criamos essas zonas, e nos falta pessoal experiente”, reconhece Ri. “É por isso que introduzimos treinamentos para entender e aprender a gerir as ZEE. No ano passado, abrimos um departamento de economia sobre essas questões na Universidade Kim Il-sung, a fim de nos iniciarmos na cultura da gestão e da empresa.” Multiplicam-se conferências, seminários com parceiros estrangeiros e viagens de estudo a outros países. Em janeiro de 2013, a visita do líder da Google, Eric Schmidt, deu o que falar.
Uma ponte que termina em um terreno baldio
Ri admite que o jogo não está ganho. Soma-se às dificuldades das primeiras experiências a “péssima imagem de nosso país” no exterior, que ele atribui unicamente à campanha hostil dos Estados Unidos. Obviamente, não entram no quadro os testes nucleares e de mísseis, as declarações estrondosas do grande líder e sua rejeição a qualquer diálogo – o que se evidencia por sua recusa em autorizar a visita a Kaesong do secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, no dia 21 de maio –, nem a repressão, denunciada em fevereiro de 2014 por um estarrecedor relatório da comissão de investigação do Conselho de Direitos Humanos da ONU.
A resposta ocidental – o embargo – não é capaz de mudar isso. Sua principal consequência é, ao contrário, cerrar as fileiras em torno do dirigente supremo, que forja para si uma imagem de protetor do povo. Do mesmo modo, é preciso ignorar as realidades da história e o trauma causado pelo dilúvio de bombas sofrido durante o confronto com o Sul6 para não entender que a instalação dos exércitos norte-americano e sul-coreano (27 mil militares) perto da fronteira, para exercícios anuais de simulação de desembarque, pode gerar reações imprudentes. Comparando o destino do Iraque e do Irã, Kim e sua comitiva estão convencidos de que apenas a ameaça de aquisição de armas nucleares preservou Teerã de uma intervenção armada. Portanto, veem nela uma segurança para seu país. “Há tantas provocações no Norte quanto no Sul. Os norte-americanos induzem ao erro”, comenta um diplomata ocidental em Pyongyang. Ele expressa saudade do período de reaproximação entre as duas Coreias, a “política do raio de sol” (Sunshine Policy), lançada pelo então presidente sul-coreano, Kim Dae-jung, e continuada por seu sucessor, Roh Moo-hyun, entre 1998 e 2007.
Por enquanto, estão presentes apenas investidores chineses (os mais numerosos e menos amados), sul-coreanos (na zona de Kaesong, perto da linha de demarcação) e egípcios (Orascom, na telefonia móvel). Esse baixo número explica-se pelo embargo, mas também pela burocracia e pela relutância dos dirigentes norte-coreanos. Assim, o projeto de ZEE em Sinuiju, às margens do Rio Yalu, que faz fronteira com a China, em frente ao porto de Dandong, parece estagnado. A soberba ponte suspensa construída por Pequim há quase um ano termina, do lado coreano, em… um enorme terreno baldio.
Contra todas as expectativas, meus acompanhantes deixaram-me sozinha durante as nove horas de trem entre Pyongyang e Dandong (China). Sem muito risco, de fato: a maioria dos viajantes era composta por coreanos que não falam nenhuma outra língua além da sua e não se mostram muito receptivos a estrangeiros. Apenas um homem de negócios de Xangai, elegante e falante, entabulou uma conversa durante a parada de duas horas na fronteira de Sinuiju. Ele conta que exerce a singular profissão de labor exporter (exportador de mão de obra). Sua função é negociar – “não diretamente com o poder, mas com organismos ligados a ele” – contratos de trabalho na China para trabalhadores norte-coreanos que, visivelmente, viajam no compartimento ao lado. Para onde eles vão? Como são pagos? Impossível saber mais. O homem volta para seu vagão de primeira classe.
Em contraste com a travessia do campo norte-coreano, e até com os edifícios vistos em Sinuiju, a chegada a Dandong produz um choque: a cidade-porto parece uma mini-Hong Kong. E não deixa de revelar aspectos secretos de uma sociedade norte-coreana em pleno movimento, pois ali se encontram os comerciantes das duas margens do rio.
Recebendo os viajantes que saem da estação, a enorme estátua de Mao Tsé-tung, com o dedo apontado para o futuro, continua imponente, mesmo cercada pelos edifícios que brotaram como cogumelos. Dandong não escapou à febre imobiliária que tomou conta de toda a China nos últimos anos. Bairros inteiros de residências de luxo, magnificamente situados às margens do Yalu (Amnok, em coreano), parecem vazios, tão inúteis como a ponte suspensa. O novo porto do leste, que transborda atividade, não trabalha apenas com a Coreia do Norte; mas Dandong concentra todos que negociam com Pyongyang.
Dono chinês de uma pequena fábrica de montagem de micro-ônibus situada nos arredores da capital, Wang Yuangang é um deles. Em 2010, ele se associou a uma empresa norte-coreana para criar uma joint ventureda qual detém 54%. Enquanto prepara o chá de acordo com o ritual tradicional, explica: “Com o desenvolvimento dos transportes, achamos que era um bom mercado. Os trabalhadores são disciplinados e permanecem em seus postos – não são como os chineses, que mudam de fábrica como querem”. Eles recebem “o equivalente a 30 euros por mês, mais 7 euros de seguro”, para oito horas de trabalho, seis dias por semana – quase dez vezes menos que um trabalhador chinês na fábrica Huanghai, um dos fabricantes de Dandong do qual ele compra peças para sua fábrica norte-coreana. Também é preciso, diz o empresário, somar a distribuição obrigatória de alimentos (arroz, óleo de cozinha…). O negócio é rentável, embora, por sua narrativa, possamos entender que essa cooperação, “saudada por Kim Jong-un”, não é um mar de rosas. Ele está à procura de parceiros para expandir, mas os candidatos parecem raros. Entendemos de passagem que ele serve de ponte para empresas estrangeiras que não podem trabalhar com Pyongyang por causa do boicote.
Bem em frente a seu escritório vê-se uma fileira de agências de viagens que podem organizar idas e vindas para o outro lado com grande facilidade para obter visto. São principalmente as empresas de importação-exportação que se estabeleceram em Dandong. Aqui se encontram negociantes de todos os matizes: autoridades norte-coreanas que se instalaram na cidade, que negociam enquanto vigiam seu mundinho e principalmente as moças que trabalham como garçonetes nos restaurantes; sino-coreanos que se entendem mais ou menos com os primeiros e têm a vantagem de falar sua língua; pequenos comerciantes chineses dispostos a tudo para atingir esse mercado considerado promissor.
A chefe de uma empresa de importação-exportação pede para manter o anonimato: “Lá, eles são sensíveis e se aborrecem rapidamente”, diz apontando o dedo para a Coreia do Norte. Segundo ela, os interlocutores multiplicaram-se nos últimos quatro ou cinco anos. Em atividade há vinte anos, ela acha que tudo mudou: “Antes, não era fácil, mas havia uma única pessoa dando as ordens. Era alguém confiável, embora às vezes desaparecesse [morto ou caído em desgraça]. Hoje é mais confuso. Acontece com cada vez mais frequência que alguém se recuse a pagar após a entrega ou exija prazos de pagamento inacreditáveis”. Ela diz ter 70 milhões de euros em contas não pagas e está convencida de que o dinheiro vai para o bolso dos políticos e empresários: corrupção em grande escala. Inverificável, obviamente.
Tráfico de todos os tipos
O que se sabe é que existem pequenos tráficos em todos os níveis. Para obterem vistos rapidamente, as agências pagam funcionários da aduana e policiais. No ponto onde o Rio Yalu se estreita, soldados e camponeses norte-coreanos melhoram a vida fazendo pequenos negócios. A 15 quilômetros do centro de Dandong, na Bin Jiang Dong Lu (a via costeira), foi improvisado um porto com dois ou três barcos, alguns hectares de cais cimentado, pequenos quiosques. Por 100 yuans (R$ 54), os chineses e os turistas podem visitar o solo norte-coreano, onde os militares vendem ovos frescos de fazendas próximas (2 yuans cada), cigarros, bebidas e lembranças oficiais (wons, selos…), como vemos em Pyongyang. Encontramos as mesmas quinquilharias no cais, ou pelo menos a mesma agitação. Os comerciantes pagam uma porcentagem de suas vendas aos militares norte-coreanos que traficam e aos militares chineses que fingem não ver – “em partes iguais”, esclarece uma vendedora.
Todo mundo fecha os olhos. Na China, onde a corrupção é um esporte nacional, apesar da campanha do presidente Xi Jinping, essas práticas não têm nada de surpreendente. Na Coreia do Norte, o jogo desses militares e de seus superiores permite ao Exército viver um pouco melhor e serve de válvula de escape.
Mais uma prova de que o dinheiro – um tabu em Pyongyang – imiscui-se na vida cotidiana. Uma “classe mercantil” está se constituindo, avalia Andrei Lankov, professor da Universidade Kookmin, em Seul, e grande especialista na Coreia do Norte: “Ela irá cada vez mais afirmar seus próprios interesses políticos, que, apesar dos clichês, não necessariamente contradizem os do governo e da velha nomenklatura do partido-Estado”.7 Em plena mutação econômica, sob o pesado ambiente político, a Coreia do Norte não corresponde à caricatura frequentemente veiculada no Ocidente, muito menos à visão de uma sociedade sem classes que tentam transmitir as autoridades norte-coreanas.
Martine Bulard é redatora-chefe adjunta de Le Monde Diplomatique (França).