Valorize seu autocrata local
A valorização do local na confecção de redes de poder extremistas de direita
O que Ronaldo Caiado, Cleta Mitchell e Vladimir Putin têm em comum? Essa bem poderia ser uma piada sem graça do tio do pavê na contagem regressiva para o Natal. Em ano eleitoral no Brasil, nos Estados Unidos e na Rússia, porém, não podemos nos dar ao luxo da permanência no descabimento. A troça extravagante deve ceder lugar ao questionamento sério.
Ronaldo Caiado, governador de Goiás atualmente filiado ao União Brasil, emplacou seu candidato Sandro Mabel (União) à prefeitura de Goiânia à custa das lágrimas presenciais de Jair Bolsonaro, que foi à cidade para acompanhar a derrota de Fred Rodrigues (PL) no segundo turno. Primeiro nome a já se lançar candidato à presidência em 2026, o governador vem concedendo uma série de entrevistas sobre o esgotamento do “modo Bolsonaro” de fazer política.
Alguns dias depois do segundo turno, Caiado concedeu uma entrevista à Folha de S. Paulo dizendo que a maior lição para Bolsonaro nessas eleições seria “respeitar as lideranças estaduais, municipais e saber construir acordos”. Criticou o atropelo do ex-presidente, hoje inelegível, e sua arrogância diante de lideranças locais. Em vez de entubar um candidato de seu partido goela abaixo dos estados, ele deveria ter tentado compor com figuras já presentes em nível local.
Cleta Mitchell, por sua vez, ajudou Donald Trump nos seus esforços para fabricar votos na Geórgia depois da derrota eleitoral em 2020. Advogada filiada ao Partido Republicano dos Estados Unidos, ela também rodou o podcast “Who’s counting”, ou “quem está contando?” para semear dúvidas sobre a contagem de votos nas eleições. Num país que não tem o privilégio de contar com uma Justiça Eleitoral unificada, como o Brasil, imaginem só a bagunça que a certificação dos votos, que começa em âmbito local, pode causar. Os dois últimos episódios do podcast, por exemplo, discutiam estratégias para “cidadãos patriotas” no metiê da contagem e táticas para a luta contra a “propaganda de Estado”.
Mitchell, que também fez carreira como consultora externa da Associação Nacional de Rifles (NRA) dos Estados Unidos, fundou o grupo Election Integrity Network para encorajar cidadãos comuns a se infiltrar em comissões eleitorais locais. A organização serve como um manual de mãos-à-obra para “patriotas”, compartilhando também notícias de como a esquerda teria manipulado o processo eleitoral norte-americano. Do alto dessa rede, Mitchell chegou a falar que todo cidadão que quer mudar as coisas no país precisa “apoiar o que é local”; só assim é possível fazer a diferença.
Vladimir Putin, o manda-chuva da Rússia, dispensa muitas apresentações. Reeleito para seu quinto mandato neste ano, o presidente se meteu até a colocar urnas nas áreas ocupadas da Ucrânia para lhe garantir mais votos. Seus desígnios autocráticos o levaram a espraiar máquinas de propaganda em calibre astronômico pelo mundo. Empresas russas de factoides e fazendas de trolls se espalham pela África Central e América Latina, com grande pervasividade em redes locais de compartilhamento de notícias.
O que todas essas desventuras ilustram é uma nova tática de ação autocrática: a valorização do local na confecção de redes de poder extremistas de direita ou bastante voláteis ideologicamente. Tais líderes de níveis federativos e partes do globo tão diferentes, cortando do hemisfério norte ao sul, do ocidente ao oriente, mostram a ambição por capilarização de estratégias autoritárias – por mais diferentes que sejam entre si. Não há um pacote único do autoritarismo, mas é certo que há afinidades do centrão brasileiro à extrema direita tropical e a outras pontas do Atlântico. Uma tal expertise está longe de ser banal em um mundo democrático que mergulhou em crises de representação duradouras e sofre da falta de alternativas progressistas para animar as bases eleitorais.
Se nossas conversas sobre crise de representação já aniversariam mais de década – e não só aqui no Brasil, onde as Jornadas de Junho foram insígnia maior –, cabe nos perguntarmos o que criamos de mecanismos para debelá-la. Partidos políticos mancos, líderes populistas incendiários, máquinas digitais de desinformação e outras tantas crises contribuíram para essa conjuntura. Se a esquerda achou saídas como mandatos coletivos e outros experimentos participativos, elas ainda estão muito aquém da média das invectivas autoritárias do outro lado.
Muitos experts de democracia sinalizam para a mesma direção dos diagnósticos feitos pela extrema direita ao propor soluções para problemas de representação. É preciso engajar-se em redes menores, em bairros, municípios, regiões; chamar à ação os cidadãos comuns. Em outras palavras, fazer com que os habitantes dos distritos eleitorais, por menores que eles sejam, sintam seu impacto nas escolhas dos representantes.
Se as forças progressistas não revolucionarem o modo de fazer política e criarem comunidades de informação – de modo cada vez mais local, nas bases que dela tanto se desprenderam –, o futuro que nos aguarda não promete muitas vitórias. Valorize seu democrata local.
Marina Slhessarenko Barreto é pesquisadora do Núcleo Direito e Democracia no Cebrap, bolsista da Fundação Rosa Luxemburgo e doutoranda em Teoria Política pela Universidade de São Paulo.