Vencer o protofascismo e fazer o acerto de contas com a democracia
Aqueles divergentes que seguem na campanha desde esse segundo turno, e que estão mais para antagônicos em termos de pautas sociais, sabem bem que Lula é o único no país que pode aglutinar mentes e corações contra o protofascismo e seu representante.
Todos que estão focados em tirar o país da onda de ódio, dos sinais de milicianização da política – e tantos outros horrores trazidos com a ascensão da extrema-direita em 2018 – veem como urgente a recuperação da nossa democracia, ainda que saibamos que essa já se encontrava longe do procedimentalmente ideal. Hoje sabemos também que seus valores não estão claros, quiçá enraizados. Ainda assim, qualquer cidadão que não tenha sido hipnotizada pelo discurso protofascista percebe que para o Brasil sair da beira do precipício precisamos vencer o Inominável Capitão Pró-ditadura-e-tortura.
Há, porém, pelo menos mais dois elementos que complexificam nosso cenário. Em primeiro lugar, será preciso derrotar outro adversário declarado e antagônicos à democracia: a cultura de valores antissociais e protofascistas que o Inominável despertou e protagonizou, organizando paralelamente uma parte da sociedade, fechada em si mesma e orientada a não interagir com o espaço público e tampouco adquirir informações divergentes. Em lugar disso, para sua “proteção”, essa parcela grande da sociedade é orientada a seguir se alimentando do que a máquina de falsas notícias produz, gerando uma massa que pensa, sente e age odiosamente como uma horda hipnotizada que dá forma a uma antipolítica protofascista no país. Antipolítica porque nega e se aparta da polis, do espaço público de debates e ingerências sobre os rumos do país, além de atentar contra ele. Protofascista porque se alimenta e reproduz uma estrutura de pensamento formado por valores antissociais, estigmatizas e caricaturas de um suposto inimigo a ser perseguido e eliminado. Tudo muito bem nutrido com desinformação e calúnias. No seu interior encontram-se pessoas vitimadas pelos discursos e fakenews que conduzem seus votos na direção contrária a suas próprias necessidades. Em termos futebolísticos: são verdadeiros artilheiros de gols contra. Ainda que outra parte dessa horda saiba bem alguns dos privilégios e interesses que estão defendendo.
É nesse contexto pavoroso, de uma antipolítica protofascista em curso, que surge uma aliança obstinada em recuperar parâmetros básicos da nossa democracia. E como informação é critério incontornável de qualquer democracia, a esquerda que antes penava isoladamente para problematizar o papel que a grande mídia, representante da elite dominante, exerce na manipulação da opinião pública, agora se vê acompanhada de vários outros segmentos políticos, até mesmo dessa mass media, na tentativa de desmontar por vias legais o aparato insidioso, criminoso e organizado de fakenews a serviço do desmonte da democracia.
Na contramão da cultura fascista, que toma adversários políticos como inimigos a serem eliminados, Luiz Inácio Lula da Silva vem conclamando a militância do Partido dos Trabalhadores, e à esquerda em geral, para o entendimento segundo o qual a conjuntura política exige aliança entre “divergentes para vencer antagônicos”, em menção a análise de Paulo Freire em Pedagogia da Esperança. Frente ao risco de continuidade do governo do Messias, a situação exigiu mais que isso: a esquerda precisou se lançar na delicada tarefa de alargar o critério extraído de Paulo Freire para incluir não somente divergentes, mas alguns consideravelmente antagônicos nas pautas sociais defendidas pelo PT. O desespero é tão grande que o critério básico é não ser fascistas. E neste momento não há como ser diferente. Aqui se encontra nosso segundo elemento complexificador da conjuntura atual e futura. O compromisso constitucional pelo país se mostra de tal forma prioritário, e base para qualquer outro passo, que mesmo torcendo o nariz e amargando uma boa dose de preocupação, muitos, sobretudo a militância orgânica do PT, adia a preocupação com o atual e demasiadamente alargado leque de alianças focando-se apenas em levar Lula de volta ao Palácio do Planalto: todos/as “Juntos pelo Brasil”! Não bastasse a preocupação com a parte fascistóide e fisiológica eleita para a Câmera Federal, para o Senado e para o Executivo de alguns Estados, assim como o orçamento aprovado pelo atual desgoverno, essa outra questão paira no ar e na cabeça de muitos: o quanto da qualidade desse futuro governo pode ser comprometida pelos interesses privatistas representados na parte mais à direita da aliança?
Cientes de que há interesses e entendimentos dispares sobre o quanto se deve mudar em favor do povo, e tendo a memória da recente História ocorrida entre 2016 e 2018, quem hoje se preocupa em ganhar está também preocupado em levar. O único encaminhamento publicamente consensual para essas preocupações políticas segue em convergência com um lema popular de alta sabedoria para tempos difíceis: tratar de um problema de cada vez. A esperança, todos sabem, é que ao formar maioria vitoriosa nas urnas, o país tenha condições de respirar melhor para caminhar rumo aos avanços das pautas interrompidas em entre meado de 2016 e início de 2018. Há muito tempo o grosso do Brasil profundo, sobretudo as famílias matrifocais, sobrevive com esses dois componentes: esperança e fracionamento dos problemas e desafios. E para tratar deles nesses termos, Lula é mestre imbatível: sua experiência consequencialista de sindicalista o permite entender a prioridade de negociar a melhor proposta possível para o Trabalho frente ao poder do Capital e calcular a redução de danos e possibilidade de avanços. Além disso, ter a experiência de quem lidou familiarmente com tantas adversidades para sobreviver desde a infância fornece-lhe ainda a resiliência necessária para apostar na possibilidade de vitória e dialogar para construí-la. Sua experiência como o Presidente da República mais comprometido com o país também somou-se à sua expertise de como pensar a economia na dinâmica de suas relações de produção, sempre associadas às necessidades sociais e visando, o quanto possível, distensionar a relação Capital-Trabalho. Nas mãos e na cabeça de Lula o lema popular “um problema de cada vez” pode ser convertido facilmente em metodologia política, se ele não se apartar dos ensinamentos de 2016 para cá.
Revolução pacífica com amor e cuidado sem dar a cara à tapa novamente
Aqueles divergentes que seguem na campanha desde esse segundo turno, e que estão mais para antagônicos em termos de pautas sociais, sabem bem que Lula é o único no país que pode aglutinar mentes e corações contra o protofascismo e seu representante. Pela origem social e pelas habilidades mais acima mencionadas, o brasiliano Luiz Inácio Lula da Silva representa a um só tempo, o cidadão das camadas populares, a liderança sindical maior da classe trabalhadora, a figura de um presidente sindicalista ou, em uma palavra: um estadista, que emergiu das camadas populares. E se a elite dominante mal dorme com esse incômodo visceral: por que a partir de 2023 haveria de afrouxar as cordas que laçam o Estado ao Capital? Por Lula ter vencido o adversário abominável por todos e para todos? A esquerda põe tudo a perder se vier a trabalhar demasiadamente com tal expectativa. Esperança, como nos diz Paulo Freire, é revolucionária, já sobre a ilusão e cegueira frente aos antagonismos de classe não podemos dizer a mesma coisa.
Por outro lado, a esquerda tampouco poderia ser irresponsável e inconsequente de fazer a classe trabalhadora padecer mais do que já suportou da conjuntura criada desde o “pós2016”. Assim, se “Vamos Juntos pelo Brasil” como primeira meta negociada e indispensável, é preciso também ter em mente as táticas e dinâmicas já sofridas quando em 2014 a direita buscava uma saída para o fato de que não conseguiria vencer o PT nas urnas em 2018, mesmo com os boicotes ao segundo governo de Dilma Rousseff. Lembrar de como a elite dominante foi capaz de agir não é amargar mágoas passadas, mas manter fresca a lição dada pelo Capital para não cair no mesmo lugar de vulnerabilização que nos levou ao atual cenário. Senão, relembremos a conversa do ex-senador Romero Jucá com o empresário Sérgio Machado da Transpetro, cujos áudios foram interceptados e publicizados, sem deixar dúvida de que a então presidenta Dilma Rousseff era empecilho por já ter avisado que não pararia ou interferiria nas investigações sobre a corrupção para proteger absolutamente ninguém. Aqueles que tivessem de ser investigados seriam, como também havia deixado claro a bancada do PT ao ser procurada pelo senhor Eduardo Cunha, que, desde então passou a organizar os trâmites de Golpe-impeachment para conter a sangria que as tais investigações fariam. A solução? A conversa entre Jucá e Machado não deixa dúvida: se tratava de afastar a presidente e dar posse ao vice. Ou como falava Jucá: “botar o Michel” em “grande acordo nacional”, “com Supremo, com tudo”. No que complementa o empresário: “Com tudo, aí parava tudo”. E como a necessidade da direita não era somente essa, mas deixar o espaço livre para seus quadros, com pouca expressão, se tornarem a única opção nas eleições de 2018, a direita conclui que teria vitória eleitoral. Ela só não contava que a criminalização do PT como inimigo da sociedade, por meio da lavagem cerebral de parte da opinião pública, à base de discursos inverossímeis cheios de “convicção”, power points e recortes da realidade, seria o terreno fértil para outro campo político entrar em cena. O desfecho todos sabemos: a direita ganha, no jogo golpista, mas perde nas urnas para o Inominável.
Embora o fenômeno de ascensão da extrema-direita protofascista protagonizada pelo Capitão Inominável, que hoje a direita e a esquerda precisam derrubar, tenha sua estrutura de pensamento alimentada pela base da Colonialidade (mental) – racista, misógina e elitista – que nunca examinamos em nossa cultura, e que permanecia até então envergonhadamente escondida nas cabeças e corações de muitos, sua vitória eleitoral e uso da máquina pública para criação de fakenews, como mostram evidencias, não teria ocorrido sem a configuração de um falso inimigo nos discursos de combate à corrupção diuturnamente dirigidos pela grande mídia, parte do parlamento e do judiciário ao povo brasileiro. A caricatura do inimigo a ser perseguido é indispensável para movimentos protofascistas se erguerem. Aliás não esqueçamos que desde 2018 o Inominável já fazia publicamente discursos de misóginos, homofóbicos, racistas, de ameaças de perseguição à esquerda, assim como apologia à ditadura, à tortura, sem que qualquer providência jurídica e eleitoral fosse tomada. Por quê? Apesar desse perfil de candidatura antidemocrática não estar coberta pela “liberdade de expressão” por razões constitucionais, naquele momento as Instituições se mantiveram em conveniente silêncio. Nesse sentido, esquerda e direita têm expectativas diametralmente opostas, apesar de sua aliança pontual em favor da recuperação do velho embate dentro das normas do jogo democrático.
Nesse cenário presumo que o esquecimento tem boa função político-terapêutica, porém não é boa conselheira tática. A condição para que a atual aliança entre o cardume de peixes aguerridos e o tubarão seja proveitosa para o povo brasileiro é que a esquerda – sobretudo, o Partido dos Trabalhadores – siga sem alimentar ilusões sobre uma suposta docilização do Capital. Ou alguém acredita que a elite/classe dominante deixaria o país seguir rumo ao pleno caminho de justiça social, abdicando da maximização dos lucros e da mais-valia?
Para retomar o terreno de disputas dentro das regras minimamente procedimentais da democracia a direita e a esquerda seguem juntas. Mas a última não pode esquerda que há grandes chances da primeira nutrir fortes expectativas de inverter o jogo ganhar-levar que se deu em 2016-2018: agora ela perdeu eleitoralmente no primeiro turno, mas possivelmente espera de alguma forma levar, durante o próximo governo, ou por ocasião desse.
De onde muitos de nós, intelectuais-militantes e cidadãos lemos o cenário, para não sucumbirmos às alianças, ganhando, sem levar, parece imprescindível que o Partido dos Trabalhadores volte a ocupar um dos seus espaços de nascimentos: o campo popular. O trabalho institucional se sustentará se o povo for alçado a governar junto, sendo-lhe explicado minimamente a natureza dos impasses para que possa ser mobilizado a favor do país. Por outro lado, se precisamos vencer juntos com esse leque de alianças, que seja bem mais que a eleição presidencial: vencer o ódio e a base colonialista que alimenta o protofascismo a curto, médio e longo prazo talvez seja o maior dos desafios.