Venezuela e Colômbia se aproximam
De olho no comércio com a Venezuela, o presidente colombiano decidiu “congelar” o acordo de bases militares com os Estados Unidos, buscando alternativas para dar continuidade ao convênio com o parceiro do norte sem prejudicar as relações na vizinhançaClaudia Jardim
O controvertido acordo militar entre Colômbia e Estados Unidos, que gerou preocupação e crise na América do Sul, pode permanecer “congelado”, tal como está. Considerado peça fundamental para a manutenção da “lua-de-mel” em que vivem os governos dos presidentes da Venezuela, Hugo Chávez, e do colombiano, Juan Manuel Santos, o convênio, que foi tido como inconstitucional pela Justiça, ganhou um papel secundário na pauta de prioridades da administração Santos. O objetivo desta passou a ser recuperar o comércio com a Venezuela, sacrificado durante a ruptura de relações entre Caracas e Bogotá.
O convênio militar desenhado durante a administração dos ex-presidentes da Colômbia, Álvaro Uribe, e dos Estados Unidos, George W. Bush, permitia a tropas norte-americanas o uso de sete bases militares na Colômbia.
Pivô de mal-estar diplomático no âmbito da União de Nações Sul-Americanas (UNASUL) e que levou o governo Chávez a romper relações com a administração do então presidente Álvaro Uribe, o convênio não pôde entrar em vigor porque parte de seu texto foi considerado inconstitucional pela Corte Constitucional da Colômbia. Esse organismo recordou, entre outras coisas, que a Constituição colombiana estabelece como função especial do Senado “permitir a passagem de tropas estrangeiras pelo território” colombiano.
Negociado diretamente por Santos quando era então ministro de Defesa de Uribe, o convênio foi referendado somente pela Presidência. O Executivo argumentou na época que o tratado consistia na extensão de um acordo anterior, assinado em 1950 entre os dois governos. A Justiça, no entanto, discordou desse parecer e, segundo sua determinação, o convênio militar, que já foi aprovado pelo Congresso dos Estados Unidos, só poderá entrar em vigor se Juan Manuel Santos submetê-lo à aprovação do Parlamento colombiano.
Segundo o especialista em assuntos militares, Alfredo Rangel, diretor da Fundação Segurança e Democracia, isso não deverá ocorrer, pelo menos no curto prazo. A seu ver, o risco de submeter o acordo à aprovação do Parlamento – mesmo sendo controlado por uma bancada de maioria governista – é porque parte de seu conteúdo poderia ser modificado.
“Isso significa um risco maior porque essas modificações obrigariam que esse acordo, que já foi aprovado nos Estados Unidos, também fosse submetido à nova consideração do Congresso norte-americano”, afirmou Rangel ao Diplomatique. “Isso geraria muito ruído interno e internacional, que não beneficiaria o governo”, acrescentou.
Por enquanto, o governo colombiano tem mostrado uma postura ambígua em relação ao tema. No final de outubro, a vice-presidente do Senado colombiano, Alexandra Moreno, anunciou que Santos não levaria o convênio à aprovação do Parlamento, o que, na prática, deixaria o acordo sem efeito.
Essa posição, que chegou a ser comemorada por Chávez, no entanto, foi desmentida pelo governo. De acordo com o ministro de Defesa, Rodrigo Rivera, a Casa de Nariño deve esperar o relatório final da Corte Constitucional, que determina quais claúsulas do convênio são inconstitucionais para, a partir daí, “tomar uma decisão”.
“Essa é uma forma de ganhar tempo para não gerar ruído na normalização das relações com a Venezuela”, afirma Alfredo Rangel. “Isso não implica em que a cooperação com os Estados Unidos deixe de se desenvolver. Com certeza, alguns dos elementos do acordo que não foram aprovados podem ser incluídos nos acordos já existentes.”
Para a analista internacional estadunidense Arlene Tickner, professora da Universidade de Los Andes, em Bogotá, o governo deixou o acordo em uma “hibernação diplomática”, enquanto busca alternativas para dar continuidade ao convênio.
De acordo com especialistas, Santos poderia optar por estender a cooperação militar com Washington por meio dos convênios que já estão em vigor, manobra que tem como argumento “a luta contra o narcotráfico” e que pode permitir uma espécie de “maquiagem” do controvertido convênio com Washington. Esta medida, porém, tende a limitar o alcance do convênio e não poderia permitir, pelo menos legalmente, o livre trânsito de tropas e aeronaves estadunidenses em território colombiano.
“Dessa maneira, o governo fica com o veneno, mas sem o pecado”, afirma Alfredo Rangel.
Ao declarar inconstitucional a vigência do acordo, a Corte Constitucional colombiana, destacou, entre outros aspectos, que o projeto concede “imunidade” às tropas estrangeiras perante a legislação colombiana e prevê “cláusulas indeterminadas sobre a extensão e prorrogação do acordo das bases militares”. Este último ponto foi alvo de duras críticas entre líderes sul-americanos, por não determinar se as ações das tropas estrangeiras poderiam extrapolar, ou não, as fronteiras colombianas.
Crise
De acordo com analistas locais, a Colômbia costurou o acordo militar com os Estados Unidos para atender a dois objetivos principais.
Um deles era criar um novo mecanismo de cooperação com Washington, capaz de corrigir a redução paulatina que vem sofrendo o financiamento dos Estados Unidos ao Plano Colômbia. Esse acordo, implementado a partir da chegada de Uribe ao poder, em 2002, acentuou a estreita relação entre os dois países, em detrimento de alianças com a América do Sul.
Outro objetivo do acordo das bases militares era criar um mecanismo de “dissuasão” contra o presidente venezuelano Hugo Chávez, com quem as relações diplomáticas vinham em processo de deterioração. “Uribe queria fazer contrapeso a Hugo Chávez como resposta às recentes compras de armamentos e à troca de agressões verbais” entre os mandatários, afirmou Arlene Tickner à reportagem.
Do lado estadunidense, a crise entre os vizinhos, alimentada pelo “fantasma” de um enfrentamento militar entre Colômbia e Venezuela, foi utilizada pelo governo do então presidente George W. Bush para solucionar um problema geopolítico para Washington criado por outro país andino: o Equador. Cumprindo uma promessa de campanha, o governo de Rafael Correa, amparado na Constituição, obrigou os Estados Unidos a deixar a base militar de Manta, no território equatoriano, ponto estratégico para o controle militar estadunidense na América do Sul.
Em substituição de Manta, os militares estadunidenses viram na base militar de Palanquero, na Colômbia, a saída para manter o controle regional. Em um relatório das Forças Aéreas dos Estados Unidos, essa instituição afirmou que “o Comando Sul dos Estados Unidos está interessado em estabelecer uma posição na América do Sul para usá-la na luta contra o narcotráfico e missões de mobilizações”, afirma o documento intitulado “Plano de Construção Militar”.
O documento aponta que o desenvolvimento de um “lugar de cooperação de segurança” em Palanquero significaria uma “oportunidade única” para operações na sub-região, “onde a segurança e a estabilidade estão sob ameaça constante de insurgentes terroristas financiados pelo narcotráfico” e “por governos antiEstados Unidos”. A proposta da Força Aérea estadunidense incluiu o investimento de US$ 46 milhões nessa base colombiana.
Diante desse cenário, na esteira das demonstrações de “preocupação” de Brasil, Argentina e Chile, a Venezuela disse que o acordo militar era um “plano de guerra” contra o seu governo e a paz regional.
“Sabendo que se está preparando uma guerra contra a Venezuela, que querem os ianques, que quer a burguesia colombiana (…) querem que eu fique de braços cruzados? Não ficarei de braços cruzados”, disse Chávez, em novembro de 2009, diante de dezenas de milhares de pessoas em uma manifestação em Caracas contra as bases militares na Colômbia.
A decisão de assinar o convênio militar se converteu no pivô que gerou uma das piores crises da história recente entre Caracas e Bogotá. Em resposta, o presidente venezuelano Hugo Chávez rompeu relações, em 2009, com o governo de Álvaro Uribe e ordenou levar a “zero” o frenético comércio bilateral com a Colômbia.
A promessa do presidente venezuelano só não foi cumprida em sua totalidade porque o mandato de Uribe terminou antes que as portas do comércio bilateral estivessem definitivamente fechadas. De acordo com o Banco Central da Colômbia, o país deve fechar o ano de 2010 com uma queda de 80% nas exportações para a Venezuela, em relação a 2008, quando teve um superávit de US$ 6 bilhões no comércio com o país.
“A suspensão (do convênio), feita pela Corte Constitucional, abriu uma saída digna a um problema gigantesco que o governo anterior havia criado, principalmente na relação com os vizinhos”, afirmou Arlene Tickner, para acrescentar. “Foi a melhor coisa que aconteceu para Santos.”
Em 2009, quando a crise começou a se aprofundar, a queda já foi significativa e o comércio binacional ficou em US$ 3,5 milhões. Para este ano, a previsão do Banco Central colombiano é de que o comércio com Caracas não ultrapasse US$ 1,2 bilhão.
Lua-de-mel
Enquanto dura a lua-de-mel, a Colômbia costura um tratado de livre-comércio com a Venezuela, cujo projeto deve estar pronto em abril de 2011. A data coincide com a saída formal da Venezuela da Comunidade Andina de Nações (CAN).
De acordo com o último relatório do Centro de Pesquisas Políticas e Econômicas (CEPR, na sigla em inglês), com sede em Washington, a perda de mercados “não substituíveis” na Venezuela, “evidentemente influenciou a decisão de Santos de tentar uma nova estratégia para a Venezuela”.
Segundo o CEPR, esta estratégia também visa incrementar as exportações colombianas ao Brasil, ao mesmo tempo em que o governo brasileiro dá sinais de interesse em investir no mercado colombiano. “Aumentar o comércio com outros vizinhos no momento em que os países da América do Sul pactuaram aprofundar a integração regional criou ainda mais incentivos para que a Colômbia volte a priorizar suas relações com a América do Sul, em vez de depender tanto dos Estados Unidos”, diz o CEPR.
Para o codiretor do CERP, Mark Weisbrot, Santos tende a manter o pragmatismo nas relações entre Caracas e Bogotá. “Um ambiente de instabilidade na Venezuela afetaria os interesses econômicos da Colômbia”, afirmou ao Diplomatique. Weisbrot acredita que o pragmatismo colombiano está baseado em estruturas concretas. “Ainda que a Colômbia firme o TLC com os Estados Unidos, onde sua indústria têxtil e sua agropecuária terão maior penetração? Na Venezuela, claro.”
Há interesses econômicos também do lado venezuelano para manter a lua-de-mel com Santos. Ainda que Brasil e Argentina tenham aproveitado parte do vácuo deixado pelas exportações da Colombia à Venezuela, para o governo venezuelano a necessidade de importar quase 70% de sua alimentação provocou o incremento de gastos no setor e de corrupção na compra e venda desses produtos. Isso por ter de substituir um elo considerado “histórico” e acessível – a Colômbia – por fornecedores não tão próximos, como São Paulo e Buenos Aires.
Além disso, para o analista político venezuelano, Javier Biardeau, professor da Universidade Central da Venezuela, o governo da Venezuela considera estratégica a continuidade do projeto de construção do gasoduto transguajiro entre Venezuela, Colômbia e Panamá, cujo último trecho da obra poderá abrir à Venezuela uma saída ao Pacífico.
“Não interessa a Chávez uma nova crise com a Colômbia agora”, disse. “A Venezuela quer acelerar a construção do gasoduto, que permitirá ao país a saída ao pacífico e incrementar as exportações para a China. Esta é uma das prioridades.”
As promessas de cooperação binacional em política de Segurança e Defesa, ponto central do reestabelecimento de relações entre Caracas e Bogotá, começam a dar os primeiros sinais de avanço em assuntos absolutamente sensíveis durante a administração de Uribe, como a suposta presença de guerrilheiros na Venezuela. No dia 18 de novembro, o governo venezuelano deportou à Colômbia três supostos guerrilheiros que foram presos em território venezuelano. O gesto foi interpretado pela imprensa colombiana como uma “mudança de era” nas relações entre os dois países, segundo reportagem do jornal colombiano El Tiempo.
O gesto não foi casual. Dias antes, o presidente colombiano havia prometido a seu colega venezuelano extraditar à Venezuela o narcotraficante venezuelano Walid Makled, que foi preso na Colômbia. “Dei minha palavra (a Chávez) e uma vez ocorram os trâmites jurídicos, se fará a extradição à Venezuela”, afirmou Santos em 16 de novembro. Makled acusa altos generais e membros do governo Chávez de terem sido seus colaboradores. O governo venezuelano nega.
Para o especialista em assuntos militares, Alfredo Rangel, diretor da Fundação Segurança e Democracia, o governo colombiano está dando sinais de “boa vontade” à Venezuela. “Com essa medida, a Colômbia terá argumentos para reclamar reciprocidade de parte do governo da Venezuela em relação ao assunto de segurança e extradição de narcotraficantes ou guerrilheiros”, afirmou.
Preocupação estadunidense
Essa política da boa vizinhança “preocupa” os Estados Unidos, que na avaliação de Weisbrot, continua apostando na “mudança de regime” na Venezuela. Esse economista recorda que os conflitos entre Colômbia e Venezuela no ano passado afetaram também os venezuelanos que vivem na gigantesca zona fronteiriça, que se estende por três Estados. A crise fronteiriça teria sido um dos fatores que ajudou a minar parte do eleitorado chavista do estado de Zulia, onde o governo pretendia eleger pelo menos seis deputados. No local, um dos bastiões opositores, a coalizão antichavista ficou com 12 cadeiras do Parlamento e os governistas, com apenas três.
A relação entre os mais novos “melhores amigos” da região, como Santos definiu a relação com Chávez, incomoda também os setores mais radicais do uribismo, sobre os quais a influência dos setores republicanos dos Estados Unidos têm mais peso. “Eles falam que faltou dignidade ao governo colombiano frente à Venezuela, porque para esses setores, dignididade significa manter a confrontação”, afirma ao Diplomatique o analista político colombiano Maurício Romero. A seu ver, há um “claro distanciamento de Santos dessa posição ideológica”.
Se o governo Santos mudará de posição em 2011, depois de restabelecidas as bases comerciais com a Venezuela, ninguém arrisca antecipar. Os analistas políticos concordam, no entanto, que caso o governo colombiano decida reeditar o acordo das bases militares, a conjuntura pré-eleitoral venezuelana permitirá pouca margem de manobra para uma nova reação de protesto por parte da Venezuela. Em 2012, está em jogo a reeleição presidencial de Chávez e as eleições anteriores provaram que a briga com o vizinho não favoreceu a política interna. “Não queremos um novo conflito com a Colômbia e evitaremos isso, com ou sem acordo”, disse uma fonte do governo venezuelano.
Por enquanto, Chávez e Santos prometem dar continuidade ao pacto de cooperação e convivência firmado dois dias depois da posse do presidente colombiano na casa onde morreu o líder independentista da América Latina hispânica, Simón Bolívar, em Santa Marta, na Colômbia.
Em outubro, durante a visita de Santos a Caracas, ambos presidentes prometeram não deixar o trem da cooperação binacional “descarrilar”. No encontro, Chávez frisou diversas vezes que “apesar das diferenças políticas”, eles estão dispostos a manter relações de respeito e integração. “Isso é farinha de outro saco”, disse. “O mundo deve saber que Santos e Chávez estão dispostos a que nada nem ninguém nos descarrile”, afirmou Chávez na sede do governo, no Palácio de Miraflores.
O tempo dirá quanto o governo Santos poderá resistir às pressões de Washington e do uribismo. Para o diretor da Fundação Segurança e Democracia, Alfredo Rangel, “essa amizade (entre Santos e Chávez) é como o amor: eterna até que acabe”.
Claudia Jardim é jornalista, correspondente em Caracas (Venezuela).