Vietnã, o polo industrial da vez
Em menos de quarenta anos, o Vietnã impulsionou um crescimento dinâmico que permitiu uma vida melhor para o conjunto da população. A fome desapareceu; os jovens se conectaram às redes sociais; as famílias assistem a séries sul-coreanas e japonesas na TV… Contudo, as condições de trabalho permanecem muito duras e a economia está cada vez mais dependente
Com os cabelos negros sobre a testa, 50 anos joviais e olhos atentos, Nguyen Van Thien conta que o Partido Comunista Vietnamita (PCV) recruta “soldados do tio Ho para a frente de economia” – em referência a Ho Chi Minh, herói da independência e fundador da República Democrática do Vietnã. Thien, orgulhoso de sua tarefa, lidera a frente das roupas, com multinacionais como a norte-americana Gap, a japonesa Uniqlo e a espanhola Zara – clientes mundialmente conhecidos.
Encontramos o vietnamita em uma de suas fábricas na periferia de Bac Giang, a uma hora e meia de carro da capital, Hanói. Nas quatro alamedas com enormes galpões, amontoam-se máquinas e trabalhadores – em sua maioria mulheres. Um edifício ligeiramente centralizado abriga alguns escritórios modestos. Também se vê um altar do gênio da fortuna, garantia de prosperidade segundo as crenças ancestrais, em todas as empresas visitadas – das mais às menos imponentes, na parte de fora ou no hall de entrada. Às vezes, um incenso queima no ambiente.
Nguyen Van Thien é o diretor-geral da Bac Giang Garment Corporation (BGGC), desconhecida do grande público vietnamita. Ali são fabricadas jaquetas, vestidos e calças destinados à exportação. Thien não pode vender as peças no mercado local para não banalizar as marcas e, portanto, desvalorizá-las: está nos contratos. Como se os assalariados, que ganham entre 3 milhões e 5 milhões de dongs (entre R$ 420 e R$ 700 por mês) por seis dias de trabalho na semana, pudessem pagar essas roupas.
Há dez anos, a BGGC contava com apenas uma fábrica, empregava 350 pessoas e seu diretor-geral era um simples chefe de controle técnico. Isso foi antes da privatização, palavra jamais pronunciada. Nem aqui nem em nenhum outro lugar. Fala-se, às vezes, em “socialização” ou “acionarização”, ou ainda em “nacionalização”. Sagrado desvio de linguagem para designar que as ações não pertencem mais ao Estado, e sim aos assalariados, que são preferenciais (se eles puderem comprá-las), e a todos aqueles que “quiserem”. A empresa se torna, assim, o “bem comum de todos os vietnamitas”, segundo a terminologia oficial. Se, no início, a divisão pode ser equitativa, aqueles que dispõem de capital social e recursos financeiros abocanham a maior parte. Na BGGC, Nguyen Huu Phay,1 ex-assalariado e membro do PCV, cuja fotografia decora a sala onde os visitantes são recebidos, detém 40% do capital, graças à revenda de ações e aumentos de capital. Pelo menos a empresa prosperou: agora são cinco fábricas, 14 mil assalariados e comandas de pedidos cheias.
Antes, em tempos de estatização generalizada, as ordens emanavam do comitê popular e do Departamento de Comércio, dirigidos pelo Partido. Desde 1987, com a “economia de mercado com orientação socialista”, segundo a denominação consagrada, são as grandes marcas ocidentais que controlam tudo, do desenho aos botões, passando pelos fios utilizados. Elas também impõem seu preço. Feliz de ter escapado do “espartilho estatal e sua burocracia”, Nguyen Van Thien afirma a moral da história: “ganhamos dinheiro”.
Nem todas as experiências que escaparam do sistema anterior, porém, foram exitosas. “A maior parte dos grandes grupos públicos, ‘acionarizada’ ou não, perde dinheiro”, assegura um advogado renomado que preferiu permanecer no anonimato. Hoje, esse ex-alto funcionário do Estado dirige um grande escritório especializado em direito empresarial – trajetória que coincide perfeitamente com a evolução do Vietnã. Não há dúvida de que, desde o lançamento da política dita de “renovação” (Doi Moi), em 1986, algumas empresas se destacaram, como a Vingroup – cujo CEO, Pham Nhat Vuong, é o único vietnamita a figurar na longa lista de bilionários da revista Forbes –, a número um da telefonia, VietTel, ou ainda o grupo lácteo Vinamilk. Mas essa projeção se deve a circunstâncias particulares. A primeira se beneficia de subsídios nos mercados públicos e concessões imobiliárias, que lhe permitiram obter enormes lucros. A segunda dispõe de acesso privilegiado a satélites e frequências; e a terceira faz parte de um grupo de empresas estrangeiras, entre elas um fundo de Cingapura.
Investidores jogam Pequim contra Hanói
As outras companhias abriram timidamente seus capitais apenas para escapar ao controle do Estado e amargam perdas gigantescas – “uma mistura de incompetência e corrupção”, assegura o advogado. O exemplo mais contundente é a PetroVietnam, na qual a maioria dos dirigentes renunciou após perdas abissais e contratos fraudulentos. Esse processo também é fruto do poder do secretário-geral do partido, Nguyen Phu Trong, que visivelmente decidiu partir em cruzada contra a corrupção entranhada na vida cotidiana dos vietnamitas e termina por fragilizar uma economia cada vez mais aberta aos movimentos globais de capital. “Os empreendedores vietnamitas sempre nadaram em maré baixa”, explica nosso advogado francófilo. “Contudo, é o oceano que os espera”, completa. O oceano tempestuoso do livre-comércio e da concorrência implacável.
A têxtil BGGC sabe disso: “Para pressionar os preços, alguns grandes clientes jogam o Vietnã contra a China, e vice-versa”, conta o diretor-geral da empresa. Assim, segundo ele, são obrigados a “cortar custos em tudo”, sem definir o que esse “tudo” significa. A Uniqlo, por exemplo, congelou seus fornecedores do Império do Meio e migrou para os do Vietnã. A Leverstyle, outra fornecedora da marca japonesa, reduziu seus efetivos chineses e fabricará desse lado da fronteira 40% dos seus produtos até 2020 – de onde estava ausente há cinco anos.2 Desde o início da década, as grandes marcas e seus fornecedores estão progressivamente abandonando o território chinês, como a taiwanesa PouChen (Nike, Adidas, Puma, Lacoste), que investiu mais de US$ 2 bilhões nos parques industriais ao redor da cidade de Ho Chi Minh, no sul do Vietnã.
De acordo com Truong Van Cam, vice-presidente da Associação de Empresas do Setor Têxtil para Vestimentas (organização patronal conhecida como Vitas), “65% das exportações vietnamitas do setor têxtil são realizadas por empresas de capital ou donos estrangeiros”. É um fato positivo, segundo o dirigente, que parece mais um burocrata soviético dos anos 1970 que um jovem empresário americanizado como se vê pelo Vietnã. Van Cam ressalta que as primeiras reivindicações de mudança vieram da Vitas para responder às diversas necessidades de uma população jovem que rejeita a uniformização do sistema e “a quem devemos oferecer oportunidades de trabalho, pois é nossa única riqueza”. Sua organização, portanto, foi pioneira nesse processo.
Para ele, “a economia mundial caminha por ondas que se deslocam: partiram da Europa em direção ao Japão e Coreia do Sul, depois em direção à China. Agora, com o aumento dos salários chineses, deslocaram-se para o Vietnã, Bangladesh e Birmânia. É a lei natural; o objetivo das empresas é lucrar. São ciclos de dez a quinze anos, o que nos dá tempo para qualificar os trabalhadores e melhorar suas performances”, analisa. Parece que estamos escutando Pascal Lamy, “socialista” francês e ex-diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC).
Como a maior parte dos dirigentes econômicos, Truong Van Cam contava entusiasmado com o Acordo de Parceria Transpacífica (conhecido em inglês como Trans-Pacific Partnership, TPP, e cancelado pelo presidente Donald Trump menos de uma semana após assumir a Casa Branca) entre os Estados Unidos e onze países, que traria mundos e fundos. Lírico, Barack Obama chamava-a de o “acordo comercial mais progressista da história”.3 Pelos cálculos do Banco Mundial, os patrões do setor têxtil esperavam um crescimento vertiginoso de sua fatia no mercado mundial – dos atuais 4% para 11% em 2025. Os do setor eletrônico, uma guinada nas exportações na ordem de 18%, enquanto os dirigentes vietnamitas contavam com um crescimento de 0,8% a 2% por ano na próxima década.4
Essa promessa sedutora contribuiu muito para a fulgurante ascensão de instalações estrangeiras na região nos últimos anos. Sem dúvida, a lógica do dumping salarial motivou mais de um investidor, como explicam em palavras cifradas Shimizu Tatsuji e La Van Tranh, dupla nipo-vietnamita à frente da empresa japonesa Foster Electric que nos recebe em sua fábrica de microfones (para iPhones da Apple) e alto-falantes (para automóveis estrangeiros). “Os trabalhadores vietnamitas são muito competitivos. Podem ser mais mal formados, mas aprendem rápido. Aqui, empregamos 30 mil pessoas, e o salário-base gira em torno de US$ 150 a US$ 200 por mês, contra US$ 650 médios na China. Economizamos muito dinheiro”, explicam. De fato, economizam uma pequena fortuna. Não apenas para a Foster, que reduziu suas instalações chinesas, mas também para a Samsung, que investiu US$ 15 bilhões e emprega 46 mil pessoas. Ou ainda Foxconn, Apple, Canon.
No entanto, essa não é a única motivação. O boom dos últimos anos se deve amplamente à queda das taxas e impostos alfandegários nos Estados Unidos e em onze países do Pacífico,5 e que caminhariam para o desaparecimento completo no horizonte de 2025, no âmbito do TPP. Os negociadores norte-americanos ditaram uma regra restritiva “de origem”, impondo que os produtos exportados sejam inteiramente fabricados no Vietnã ou com elementos oriundos dos países-membros da parceria, da qual a China está excluída. Não é preciso se preocupar mais em montar aqui elementos fabricados lá, esforço constatado no início da década.
Trunfo para o capital externo
Com o auxílio de Washington e do TPP, o Vietnã já se vê como o segundo polo industrial do mundo, pronto para abocanhar o lugar da privilegiada e também detestada China: seu principal fornecedor e cliente, mas também adversário no Mar da China (chamado de “Mar do Leste” no Vietnã). Esse tratado de livre-comércio tinha um aspecto tanto político quanto econômico,6 mas a hostilidade de Donald Trump compromete sua aplicação. Certo dia de novembro de 2016, um painel azul invadiu a tela da televisão interrompendo o jornal do canal americano CNN “por conteúdo inapropriado”. Mais tarde, soube-se que o presidente eleito havia se declarado contra os “produtos vietnamitas a baixo custo”, que ameaçavam invadir os Estados Unidos. Era preciso poupar os ouvidos castos dos vietnamitas, supondo que eles assistem à CNN.
No momento, os dirigentes do país esperam que Walmart, Nike, Apple, Microsoft e outras grandes transnacionais possam restituir a razão do excêntrico presidente. Enquanto isso, o primeiro-ministro, Nguyen Xuan Phuc, declarou, na Assembleia Nacional, no dia 18 de novembro, que o Vietnã “já assinou doze acordos de livre-comércio” e pretende “perseguir a integração econômica, com o TPP ou não”. Atualmente, os investimentos estrangeiros provêm principalmente da Ásia (na seguinte ordem: Japão, Taiwan, Cingapura, Coreia do Sul, China). O chefe do governo mencionou também o acordo firmado com a União Europeia e ratificado – sem grandes debates – pelo Parlamento francês em junho de 2016.
Hanói deposita sua esperança de crescimento nas exportações e na atração de capital estrangeiro, ao qual oferece um trunfo: exoneração total de taxas e impostos durante quatro anos, e de 50% durante os nove anos seguintes, além de facilitar acesso à terra (em detrimento da agricultura local) e a benefícios suplementares com governos locais, bem como simplificações administrativas. Tudo isso faz a máquina girar – 6,5% de crescimento em 2016 (com um ritmo de 5,5% a 7,6% desde 2000) – e enche a região de expectativas.
A estratégia, contudo, tem um preço: a dependência. As empresas estrangeiras são responsáveis por mais de dois terços das exportações do país. A Samsung, por exemplo, concentra 60% das vendas de eletrônicos ao exterior. Se a gigante sul-coreana sofrer qualquer revés (como o caso de seu Galaxy Note 7, cujas baterias explodiam), quem sofre as consequências é o Vietnã.
Aumento das preocupações ecológicas
Em encontro no Instituto Central para a Gestão (Ciem), centro de pesquisa vinculado ao poderoso Ministério do Planejamento, Nguyen Anh Duong não negou os perigos. Se por um lado critica a “nova camada de ricos e empreendedores vietnamitas que querem apenas garantir seus privilégios”, por outro esse jovem diretor adjunto do Departamento de Política Econômica explica sem rodeios: “As empresas estrangeiras têm capital, e nós não. Mais vale que invistam na produção do que no setor imobiliário. Além disso, isso gera concorrência com as empresas locais, o que as estimula a melhorar sua gestão”. E resume o pensamento dominante: “Esses investimentos estrangeiros diretos constituem de fato uma aposta no futuro. Com eles, temos uma chance de que as coisas funcionem. Sem eles, certamente não poderemos nos desenvolver”.
Como, efetivamente, sair do subdesenvolvimento sem capital ou tecnologia, porém com uma população jovem e numerosa (metade tem menos de 30 anos, 53,8 milhões está em idade produtiva e 98% sabe ler e escrever)? As autoridades vietnamitas se valem do dogma arriscado que empoderou Cingapura, Taiwan e a China: o baixo custo da mão de obra. Mas há uma diferença, nota Erwin Schweisshelm, diretor da Fundação Friedrich Ebert no Vietnã: “Esses países protegeram seus mercados e impuseram normas regulatórias. Ainda hoje, é impossível ser 100% proprietário de uma empresa chinesa, e certos investimentos devem comportar transferências de tecnologia. O Vietnã, por outro lado, está totalmente aberto. Não há nenhuma exigência em relação à instalação ou utilização de recursos naturais, nenhuma recomendação”. E, visivelmente, o país também controla pouco as infrações aos direitos trabalhistas, que suscitaram inúmeros conflitos dentro das empresas (ver boxe).
A fiscalização não é maior em relação a normas ambientais, como mostra o caso Formosa, nome da empresa taiwanesa instalada na província de Ha Tinh, no centro do país, e que despejou produtos tóxicos de sua siderúrgica no mar: 200 quilômetros de costa poluídos, toneladas de peixes mortos, mais de 40 mil pescadores sem trabalho, turismo ameaçado. Em um primeiro momento, o representante da Formosa em Hanói, Chou Chun Fan, sentiu-se suficientemente protegido para poder declarar: “Não se pode ter tudo. É preciso escolher entre os peixes, os camarões e uma siderúrgica”.7 Isso sem levar em conta os pescadores, que sobrevivem desses cursos – e entraram com um processo. Ou ainda sem considerar as camadas médias urbanas preocupadas com a qualidade da alimentação, que se manifestaram em massa em Ho Chi Minh. O governo prendeu um ou dois supostos líderes do movimento e deteve dezenas de manifestantes durante algumas horas; por outro lado, investigou o ocorrido e indenizou os pescadores, e Chou Chun Fan teve de deixar o cargo.
Alguns anos antes, em 2009, a exploração de uma mina de bauxita pela empresa chinesa Chinalco mobilizou multidões, que pressionaram até o general Vo Nguyen Giap, herói da guerra, tomar alguma providência em relação aos “riscos sérios de danos ecológicos”.8 Em vão. O apetite de crescimento primou sobre qualquer outra premissa.
A sede de consumo satura as cidades de carros e motos em um vaivém sem precedentes, tornando o ato de atravessar a rua incerto e o ar totalmente irrespirável. Entretanto, associações ou organizações que lutam contra a poluição e pela segurança alimentar começam a aparecer. Em 2016, os habitantes de Hanói se mobilizaram para impedir o corte de dezenas de árvores centenárias – e tiveram sucesso. Luong Ngoc Khue, jovem empreendedor especialista em softwares, nascido no delta do Rio Mekong, espera reunir “citadinos e camponeses” contra a possível chegada de milho ou arroz dos norte-americanos por meio dos acordos de livre-comércio, “certamente geneticamente modificados, certamente da Monsanto” – empresa com uma história sinistra no Vietnã. Por enquanto, seu grupo nas redes sociais reúne apenas algumas dezenas de seguidores. “Sabemos nos reunir por questões pontuais, como o caso da Formosa”, observa o documentarista Dao Thanh Huyen, coautor de um livro sobre a batalha de Dien Bien Phu.9 “Mas ainda somos pouco capazes de refletir sobre algumas questões: como buscar o desenvolvimento e fazer parte da globalização e ainda assim preservar nossa cultura milenar, nossos valores de solidariedade, respeito aos mais velhos, laços entre as gerações, ética?”, questiona.
O Partido Comunista escolheu adiar as respostas a esse tipo de questionamento. Há, porém, muitas divergências de opinião, como mostrou o XII Congresso, que em janeiro de 2016 viu o primeiro-ministro promotor de privatizações ser deposto, enquanto o secretário-geral ganhou autoridade. Mas o debate não acontece no mesmo ritmo das reformas, pelo menos não no conteúdo: alguns defendem utilizar os acordos de livre-comércio para pressionar e acelerar as mudanças nas normas e práticas (com o TPP, sessenta leis sobre questões econômicas e sociais já foram modificadas); outros acreditam que é preciso diminuir o ritmo para manter o controle das mudanças. A escolha se resume a uma economia de mercado descomplicada ou a uma economia de mercado moderada. E sob orientação socialista…
GREVES SEM SINDICATO
Depois dos 30 anos não é possível seguir com esse trabalho, o corpo não aguenta”, assegura Phan Duyen. Aos 32 anos, funcionária de uma fábrica japonesa de álcool de arroz, ela está feliz de ter deixado seu posto de trabalho no chão da fábrica e ter sido promovida ao controle de qualidade. Encontramo-nos com ela e o marido, além de sete colegas de trabalho, em uma pequena casa charmosa nos fundos de uma ruela, em uma área bem popular do 7º distrito da cidade de Ho Chi Minh (ex-Saigon). Todos confirmam a penúria do trabalho para manter a fábrica funcionando 24 horas (três turnos de oito horas), com apenas uma folga por semana – pouco tempo para voltar ao interior (de onde eles vêm) para visitar a família. É pouco tempo até para recobrar as energias.
Contudo, ninguém reclama. Sob a imagem de uma sociedade que mantém seu dinamismo a qualquer preço, esses jovens olham para o futuro. Eles querem “guardar dinheiro” e um dia voltar ao povoado onde nasceram para “abrir um comércio”, “construir uma casa e alugá-la” ou ainda “ampliar o sítio ou a fazenda da família”. Apenas duas jovens não pretendem voltar ao local de origem. A primeira faz aulas de inglês à noite, em um centro de idiomas a cerca de uma hora de moto da pensão onde vive, com a esperança de um dia conseguir um emprego em um escritório da cidade. A segunda pagou 90 milhões de dongs (um ano e meio de salário), graças a economias e empréstimos da família, para se formar em um instituto que lhe garantiu um emprego no Japão durante três anos. O Vietnã assinou convenções com diversos países a fim de se lançar em uma curiosa experiência: exportação de mão de obra (115 mil pessoas em 2016).1
Esperando que seus sonhos se realizassem, todos esses jovens, que recebem baixos salários (menos de 2 milhões de dongs, ou R$ 280 euros por mês), trabalham horas extras, pagas a 150%. Impossível saber quantas, mas não podem ultrapassar 200 horas anuais, 300 horas em casos excepcionais; ou seja, de quatro a seis horas por semana além das 48 horas legais por semana. Ao que parece, esses jovens trabalham para além das horas regulares mais as suplementares, porém não ganham para isso. Mais adiante na conversa, saberemos que apenas algumas horas extras são pagas, as outras são transformadas em “horas de recuperação”, um tipo de banco de horas, que podem ser usadas apenas quando a direção decidir. “Gostaríamos de guardá-las para a festa de ano-novo [em que, de forma geral, todos se juntam com a família no início do ano], mas não é possível”, explica um dos jovens. “A direção nos obriga a gastá-las em meias jornadas, durante as quais não podemos fazer muita coisa”. A jovem Phan Duye completa: “Com esse sistema, não nos beneficiamos trabalhando horas extras. Perdemos, e a empresa ganha”. E o sindicato? A pergunta parece incongruente. Ele existe, sem dúvida, mas não para apoiar reivindicações.
Mesmo assim, 5.722 greves aconteceram entre 1995 e 2015, segundo Do Quynh Chi, que dirige o Centro de Pesquisa sobre as Relações de Trabalho, uma espécie de escritório de consultoria com sede no centro da cidade. Mas nenhuma delas foi convocada pela Confederação Geral do Trabalho do Vietnã (CGTV) – o que gera prejuízo aos trabalhadores, porque, apesar de o direito à greve figurar na Constituição, ele só pode ser exercido sob responsabilidade do sindicato único, e, se não é ele que convoca, esses movimentos são considerados “paralisações de trabalho”. Seja qual for o nome adotado, os assalariados fazem cada vez mais greves: uma centena em 2000; cerca de quinhentas em 2016. Em 70% dos casos, ocorrem em empresas estrangeiras, onde a concentração de trabalhadores é maior (três quartos das empresas vietnamitas são pequenas ou médias). Principais motivos: salários, condições de trabalho e qualidade da alimentação nas lanchonetes das fábricas. “O mais frequente é que um grupo de trabalhadores leve as reivindicações à direção ou às vezes a um sindicato oficial, mas não obtém respostas. E então desencadeia a greve”, conta Do Quynh Chi. Essas ocasiões tornam-se quedas de braço. A CGTV se mobiliza e faz a intermediação entre trabalhadores e direção.
Na maior parte do tempo, observa Do Quynh Chi, as demandas são atendidas e as greves acabam. Raramente duram muito tempo. Quando se trata de aumento de salário, as greves atingem em geral todas as empresas do parque industrial onde está instalado o grupo e todos os que possuem a mesma nacionalidade – os funcionários se organizam por origem geográfica.
Em alguns casos, as “paralisações de trabalho” têm como objetivo questionar o próprio governo. Em março de 2015, 90 mil trabalhadores da fábrica Yue Yuen (do grupo taiwanês Pou Chen), no parque industrial de Binh Tan, em Ho Chi Minh, desligaram as máquinas e bloquearam a estrada para protestar contra uma lei que reduzia seus direitos à aposentadoria. O governo precisou fazer uma emenda no projeto, algo jamais visto.
Tanto nesse caso como em outros, a CGTV não tem nenhuma participação. É necessário mencionar que os dirigentes sindicais são pagos pelas próprias empresas. A eleição de representantes dos assalariados permanece puramente formal. “A vontade de reforma existe. Os dirigentes têm consciência de que, com uma ‘economia de mercado de orientação socialista’, o sistema não pode ser o mesmo que na época do socialismo”, assegura Erwin Schweisshelm, diretor da Fundação Friedrich Ebert. Mas o processo é árduo. (M.B.)
1 “L’exportation de main-d’œuvre augmente au fil des années” [A exportação de mão de obra aumenta ao longo dos anos], Le Courrier du Vietnam, 14 dez. 2016.
*Martine Bulard é jornalista do Le Monde Diplomatique.
{Le Monde Diplomatique Brasil – edição 115 – fevereiro de 2017}