Violações na mídia e as conquistas do movimento pelo direito à comunicação
Mídia brasileira segue violando direitos humanos, sobretudo por meio de programas policialescos, sob omissão do Estado e apesar das lutas e resistências. Confira no terceiro artigo do especial Violações e resistências: as faces do direito à comunicação no Brasil
“Já pensou em ter um filho viado e não poder matar?”. Esta frase foi dita no dia 18 de junho de 2021, em uma emissora de TV aberta, pelo apresentador Sikêra Júnior, no programa Alerta Nacional, transmitido pelas emissoras de TV A Crítica e Rede TV!, durante o quadro “Batalha das drags”, exibido pelo policialesco. Mesmo estando diante de duas drag queens, o apresentador sentiu-se à vontade para proferir seu discurso LGBTfóbico, incentivando o ódio e a violência contra essa comunidade. Uma postura grave e que se repete com frequência no Alerta Nacional.
O apresentador utiliza as plataformas digitais, como o YouTube, na qual tem mais de 5 milhões de inscritos, para transmitir os seus programas, ampliando a audiência. O que muita gente ainda não sabe é que esse discurso viola a legislação referente à radiodifusão no Brasil, a Constituição Federal e os tratados internacionais assinados pelo país, que determinam a garantia dos direitos humanos nos meios de comunicação.
Sikêra vem colecionando processos judiciais por conta de seus comentários, repletos de preconceito e discriminação, principalmente contra mulheres, população negra e comunidade LGBTQIA+. Em outra ocasião, em 2018, quando apresentava o Cidade em Ação na TV Arapuan, afiliada à Rede TV! na Paraíba, ao comentar uma reportagem que mostrava a prisão de uma jovem negra, suspeita de tráfico de drogas e que estava sob a custódia do Estado, o apresentador usou palavras de cunho racista e misógino, conforme foi constatado pelo Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado pela emissora Arapuan e o Fórum Interinstitucional pelo Direito à Comunicação (Findac) na Paraíba.
O não respeito à presunção de inocência foi outra violação cometida pelo apresentador, sendo, inclusive, uma das principais infrações praticadas pelos policialescos, conforme foi constatado pela pesquisa realizada pela Andi – Comunicação e Direitos, em 2015, que resultou em três volumes do Guia de Monitoramento sobre as Violações na Mídia Brasileira.
Ações e resistência
Mesmo com o TAC firmado entre as partes, Sikêra Jr. continuou atacando as mulheres em seu programa, principalmente as feministas. Por isso, após três anos da assinatura do Termo, em 2021, o Ministério Público Federal na Paraíba ajuizou uma Ação Civil Pública na Justiça Federal contra o apresentador, pedindo a sua condenação por discurso de ódio às mulheres e por dano moral coletivo e individual, com o pagamento de R$ 200 mil para a jovem negra que teve seus direitos violados, e R$ 2 milhões que devem ser revertidos para o movimento feminista ou outras entidades de promoção dos direitos humanos.
O Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social e o Movimento Feminista da Paraíba são litisconsorte nessa ação. As advogadas Nathálya Ananias e Carolina Rezende representam o Intervozes. “Ao proferir discursos misóginos e expor a imagem de uma mulher de forma vexatória, a própria função da liberdade de expressão e da mídia fica comprometida. Se os pedidos feitos pelo MPF forem acolhidos, o Poder Judiciário reforçará o reconhecimento de que a liberdade de expressão é garantida com respeito aos outros direitos fundamentais, e reconhecerá que discursos ofensivos, especialmente quando proferidos em uma plataforma midiática, impactam a sociedade civil em geral”, declararam.
A jornalista Elara Leite faz parte da Comissão de Mulheres da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) e desde 2018 vem acompanhando o processo contra o apresentador. “A comissão representante do Movimento de Mulheres na Paraíba tem a expectativa de que a Justiça reconheça as inúmeras violações de direitos humanos que o apresentador Sikêra veicula diariamente em programas televisivos, por meio da ação que está sendo movida. Esperamos que essa ação abra precedentes para outras ações na Justiça brasileira”, frisou.
Sikêra Jr. é aliado do presidente da República, Jair Bolsonaro, o qual, junto com dois dos seus filhos, Flávio e Eduardo, participa frequentemente do programa Alerta Nacional. No policialesco, o apresentador não hesita em propagar, diariamente, a cartilha contra os direitos humanos e a disseminação de desinformação da família Bolsonaro.
Quando a rede de lanchonetes Burguer King lançou, em 28 de junho de 2021, uma campanha publicitária em alusão ao Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+, com crianças ao lado de seus pais e mães conversando sobre relações homoafetivas, Sikêra Jr. usou o espaço no seu programa para referir-se a essa comunidade como “raça desgraçada” e “raça do cão”. Em diversos programas buscou relacionar LGBTQIA+ à pedofilia e ao uso de drogas – discurso que pudemos assistir de maneira intensa em 2018 durante o pleito eleitoral, quando a campanha de Bolsonaro criou a farsa do “kit gay” para atacar o seu adversário político, o professor Fernando Haddad (PT), insinuando que o mesmo estimulava a homossexualidade entre as crianças.
Por causa dos inúmeros ataques de ódio à comunidade LGBTQIA+, organizações que representam este público, como a Aliança LGBTQIA+, Nuances e o Grupo Dignidade, estão processando o apresentador. Ações civis públicas foram ajuizadas no Ministério Público Federal no Rio Grande do Sul por discurso de ódio, discriminação e LGBTfobia. O ativista e suplente de deputado estadual por São Paulo, Agripino Magalhães, tem quatro processos contra Sikêra Jr.
Toni Reis, que é presidente da Aliança LGBTI+, pontuou que a bancada de advogados e advogadas que representa a entidade está preparada em todos os recantos do Brasil para acionar o Judiciário caso Sikêra ou qualquer outro apresentador discrimine gays, lésbicas, travestis e transgêneros. “A televisão é uma concessão pública e precisa respeitar a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que diz que todos nós nascemos livres e iguais em direitos e dignidade, e a Constituição Federal diz, em seu artigo 5°, que todos nós somos iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. O programa do Sikêra, visto por uma classe popular importante no nosso país, não pode ser usado como discurso de ódio nem com desinformações. Sikêra não matou ninguém, nem uma pessoa LGBTQIA+, mas, a partir de seu discurso, ele afia a faca para que assassinos o façam”, ressaltou.
Toni Reis informou que, em 2021, foram registradas trezentas mortes na comunidade LGBTQIA+. “Essas mortes começam com discurso de ódio, desumanizando as pessoas. Espero, sinceramente, que ele aprenda; enquanto não aprender, que seja tirado do ar, desmonetizado, e se não aprender, acionaremos o Judiciário”, afirmou.
A advogada Amanda Souto Baliza, que representa a Aliança LGBTI+ e o Grupo Dignidade, informou que já houve uma Audiência de Conciliação com o apresentador e a Rede TV! e foi retirado do ar um dos vídeos em que Sikêra ataca a comunidade LGBTQIA+. Na Ação Civil Pública, ajuizada na Justiça Federal de Porto Alegre, segundo a advogada, foi pedida indenização por danos morais coletivos. “Na primeira ação, pedimos R$ 5 milhões; na segunda, feita em parceria com o MPF, pedimos R$ 10 milhões. Há, ainda, uma terceira ação tramitando, proposta pelo MPF, em relação ao caso do Burguer King, que também pede R$ 10 milhões de indenização por danos morais coletivos”, informa a advogada.
Outra frente de luta contra as violações dos direitos humanos na mídia veio do movimento net-ativista Sleeping Giants, que promoveu a campanha #desmonetizasikêra em suas redes sociais, contando com a adesão imediata de seguidores. A campanha foi realizada em parceria com a Aliança LGBTI+, o portal gay Põe na Roda e a AllOut, movimento que atua em prol do público LGBTQIA+, e consistia em conscientizar as marcas que patrocinavam o programa Alerta Nacional, tanto com merchandising na TV A Crítica quanto na plataforma YouTube, a retirar seu apoio financeiro do programa.
A campanha foi uma reação ao discurso de ódio do apresentador contra a propaganda do Burguer King. Ao todo, mais de duzentos patrocinadores deixaram de veicular as suas marcas no Alerta Nacional. Mais uma vez, a Rede TV! foi omissa em relação ao caso, não tomando nenhuma medida contra o apresentador. Os deputados federais Natália Bonavides, do PT, e David Miranda, do PDT, também acionaram o MPF e entraram com representações contra Sikêra, a Rede TV! e a TV A Crítica. Atingir o bolso dos apresentadores e emissoras que violam direitos humanos na TV tem sido uma ação importante de resistência.
De acordo com Humberto Ribeiro, diretor jurídico do Sleeping Giants Brasil e da Aliança LGBTI+, a desmonetização do programa Alerta Nacional foi uma estratégia eficiente que mostra a importância da atuação da sociedade civil. “Nossa ação causou um impacto muito grande no programa dele, que teve seu horário de exibição reduzido em 30%”, pontuou Humberto.
Omissão e conivência do Estado
Atualmente, de acordo com o próprio Sikêra Jr., ele fatura mais de R$ 500 mil por mês, acrescentando a esse valor a quantia que ele ganha ao fazer merchandisings, no Alerta Nacional ou em outros espaços para os quais é contratado. Do governo federal, o apresentador recebeu um cachê de R$ 120 mil por participar de campanhas publicitárias, dentre elas, sobre o tratamento precoce para o novo coronavírus, comprovado como ineficiente e que oferece riscos à saúde da população.
Tanto a Rede TV! como a TV A Crítica, sediada em Manaus e de propriedade da Rede Calderaro de Comunicação, segundo a legislação da radiodifusão no Brasil, também são responsáveis por essas violações e têm sido omissas em coibir tais agressões cometidas pelo seu funcionário. A Constituição Federal afirma no capítulo V que os programas de TV no Brasil precisam ter caráter educativo, informativo e cultural, o que vai na contramão da proposta dos programas policialescos. Além disso, mesmo sendo emissoras comerciais, elas dependem de autorização do Estado para funcionar e precisam cumprir regras para continuar no ar. Dentre elas, não violar direitos humanos, não incitar o crime e a violência, respeitar as leis e determinações judiciais e não propagar discurso de ódio.
No entanto, nada disso tem sido respeitado e a ausência de atuação por parte do Ministério das Comunicações (Minicom), órgão responsável por fiscalizar e punir essas violações, inclusive com a cassação da concessão, possibilita que apresentadores como Sikêra Jr. tenham salvo conduto para continuar cometendo agressões e incentivando a violência em uma emissora de TV. O Minicom foi recriado no governo atual e a sua gestão foi concedida a um radiodifusor, o deputado federal pelo Rio Grande do Norte, Fabio Faria, que tem feito vistas grossas em relação às violações, assim como a ex-ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves.
O Intervozes produziu, em parceria com o Instituto Alana e a Andi, um novo monitoramento, em 2021, sobre os programas policialescos na TV. Dessa vez, o alvo foram as violações contra os direitos das crianças e adolescentes. O programa Alerta Nacional figurou entre os que mais cometeram violações. Uma das reportagens monitoradas mostra duas adolescentes cavando a cova onde seriam enterradas. As entidades entregaram o relatório ao MPF, que se reuniu com o Ministério das Comunicações. No entanto, como informou Enrico Rodrigues, procurador Regional dos Direitos do Cidadão do MPF, em Porto Alegre, não há disponibilidade efetiva do Ministério para resolver as inúmeras violações apresentadas no relatório.
“O papel do Ministério das Comunicações e do Estado brasileiro é de duas ordens, de orientação e de indicação, dentro da legalidade, que as atividades de televisão devem respeitar direitos humanos, não podem veicular discurso de ódio, racista, de intolerância; e a outra ordem é de fiscalização, tanto para punir eventuais excessos como para elaborar relatórios de eventual renovação dessas concessões. Isso não é censura. Houve um excesso, tem que fiscalizar, sancionar e punir administrativamente”, afirmou o procurador.
O histórico combate às violações na mídia
Os movimentos que atuam pela efetivação do direito humano à comunicação no Brasil vêm, há mais de vinte anos, combatendo violações na mídia. Um caso histórico foi o “Direitos de Resposta”, em 2005, contra o programa do humorista e apresentador João Kleber, por discriminação e ofensas às mulheres, aos LGBTQIA+, às/aos idosas/os, pessoas com deficiência e crianças. Por meio de uma Ação Civil Pública, entidades como Intervozes acionaram o MPF, que solicitou à Justiça um direito de resposta coletivo. A emissora foi obrigada a veicular 30 horas de programação organizada pelos movimentos da sociedade civil envolvidos na ação judicial.
Outro programa policialesco, o Cidade Alerta, exibido pela RecordTV e apresentado por Luiz Bacci, recebeu algumas condenações. Em um dos casos, a emissora e o apresentador foram condenados a pagar R$ 50 mil a um homem, após acusá-lo, sem provas, de ter matado a enteada. O laudo concluiu que a criança havia morrido por causa de uma infecção pulmonar. Em 2022, o programa e a Rede Record sofreram uma nova condenação. A juíza Marisa Claudia Gonçalves Cucio determinou que a emissora pagaria o valor de R$ 1.097.700 relativo a comentários do então apresentador Marcelo Rezende – já falecido – sobre uma perseguição policial a dois homens, atingidos por tiros, quando já estavam caídos no chão.
Iara Moura, da coordenação executiva do Intervozes, avalia que nos últimos dez anos os movimentos que atuam pelo direito à comunicação no Brasil têm obtido conquistas importantes no combate à violação dos direitos humanos na mídia, através da atuação conjunta com o MPF e as defensorias públicas. A jornalista lamenta a omissão do Estado nesse sentido e considera que ainda há um longo caminho pela frente para a consolidação de uma mídia que respeite os direitos humanos.
“A atuação da sociedade civil com o MPF e a Defensoria Pública vem resultando em vitórias importantes e aberto precedentes de litigância estratégica no combate a essas violações, como os termos de ajustamento de condutas e protocolos de ação policial que tem buscado conscientizar agentes públicos em não serem cúmplices desse tipo de programa, não veicularem imagem de pessoas que estejam ou em privação de liberdade ou sob a custódia do Estado. Também tem crescido a compreensão nos operadores de direito e na sociedade em geral sobre como esses programas atuam no desrespeito às leis brasileiras, na incitação do crime e da violência. Ainda temos muito a avançar, como em relação às multas, que têm valores irrisórios comparados ao impacto das violações”, ressalta.
As violações acontecem tanto no modo offline como no online. Por ser transmitido também pelas plataformas digitais, o Alerta Nacional propaga as violações no ambiente digital. Mas, se a radiodifusão tem uma legislação que a regula, na internet isso ainda está engatinhando. Raquel Saraiva, presidenta do Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife (IP.REC), frisa que, apesar de não haver uma lei específica que trate da violação de direitos humanos no meio digital, o arcabouço legislativo do Brasil dá conta de promover a reparação nesses casos.
“A Constituição Federal protege a dignidade da pessoa humana como seu próprio fundamento, no artigo 1º. Além disso, no artigo 5º, a CF diz que ‘a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais’, o que coloca quaisquer atos discriminatórios como passíveis de punição. Ao mesmo tempo, qualquer conteúdo abusivo pode ser passível de remoção das plataformas digitais. Isso pode se dar mediante atos da própria plataforma ou através de pedido judicial com base no artigo 19 do Marco Civil da Internet”, explicou Saraiva.
A professora de Comunicação Social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e integrante do Observatório de Mídia, Ana Veloso, considera de fundamental importância a ação dos movimentos sociais contra as violações de direitos humanos na mídia. “É uma luta muito difícil, mas a gente tem que continuar insistindo, com a sociedade civil, Ministério Público, os observatórios e os movimentos sociais, pois já obtivemos algumas conquistas importantes. Precisamos investir em educação para a mídia nas escolas, se quisermos mudar essa cultura e fazer com que a população também compreenda seu direito humano à comunicação”, reforçou.
Mabel Dias é jornalista, mestranda em Comunicação na Universidade Federal da Paraíba, associada ao Intervozes e integrante do Observatório Paraibano de Jornalismo.