Violência de gênero na internet expressa misoginia da sociedade brasileira
Solução para o problema envolve regulação das mídias e o desenvolvimento de tecnologias baseadas em princípios feministas. Acompanhe no novo artigo do especial “Algo de novo sob o sol? Direito à Comunicação no primeiro ano do atual governo Lula”
Discriminação, doxxing, assédio, ameaças diretas ou indiretas de violência física e sexual, invasão de e-mail, compartilhamento de nudes. Esses são alguns tipos de violência que atingem mulheres de diversas idades, orientações sexuais, classes e raças/etnias nas plataformas digitais. De acordo com a Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos da SaferNet, as denúncias de misoginia na internet cresceram quase trinta vezes entre 2017 e 2022, sendo as mulheres as maiores vítimas, com 74,3 mil denúncias registradas no período.
O ambiente on-line tem sido um espaço hostil para as mulheres se expressarem, o que reflete, segundo análise do artigo “O permanente desafio da violência contra as mulheres na internet”, das pesquisadoras Bia Barbosa e Larissa Santiago, o sexismo, o racismo e a transfobia presentes na sociedade brasileira.
A violência de gênero pode vir também em forma de discursos de ódio e xingamentos. Foi o que aconteceu com a atriz e influencer Lívia La Gatto, em 2023. Ela ironizou o também influencer Thiago Schutz em suas redes sociais e recebeu uma mensagem (no privado) para que apagasse o vídeo. A ameaça foi explícita: “é processo ou bala”. Lívia registrou um boletim de ocorrência (BO) contra Thiago, que virou réu no processo.
Outra influencer digital, a cantora Bruna Volpi, também foi alvo de Thiago por se posicionar contra os conteúdos misóginos postados por ele, diariamente, no Instagram. Bruna registrou um BO contra o influenciador. No entanto, o Tribunal de Justiça de São Paulo arquivou por dois anos o processo contra ele, cujo objeto é a acusação de ameaça e violência psicológica contra a atriz e a cantora. Caso Schutz cometa nova infração no período, o processo poderá ser reaberto. Caso contrário, será extinto.
Mesmo após o desfecho ter sido favorável ao acusado, Bruna continuou postando vídeos ironizando os posts de Schutz que apresentam conteúdos machistas e misóginos. Em um desses vídeos, comentado por Bruna em seu perfil, o influenciador responde a outra mulher: “Alguns comportamentos que condeno nas mulheres está relacionado à promiscuidade, e a promiscuidade para a mulher está muito longe da promiscuidade para homem, uma mulher para ser promíscua, sabe o que ela tem que fazer? Só abrir a perna, pronto!” (sic).
Após a audiência na Justiça de São Paulo, Thiago Schutz retirou de seu perfil no Instagram a denominação Red Pills Brasil, corrente de grupos masculinistas com a qual se identifica. Os Red Pills têm origem nos Estados Unidos e ocuparam as plataformas digitais para propagar discurso de ódio contra as mulheres. O termo Red Pill foi cooptado do filme Matrix (1999) e apropriado pelos masculinistas com uma nova intenção: ao tomar a pílula vermelha, os homens “despertariam”, sairiam do “domínio feminino” e exerceriam a sua “virilidade e masculinidade hegemônica”. Na ótica do grupo, tais atributos estão sendo destruídos pelas mulheres.
No início, as páginas e perfis dos masculinistas ganhavam espaço na deep web (rede profunda), termo cunhado em 1994 por Jill Ellsworth. No entanto, com a ascensão ao poder de figuras masculinistas e misóginas, como Jair Bolsonaro, no Brasil, e Donald Trump, nos Estados Unidos, esses grupos se sentiram à vontade para ocupar as plataformas digitais. Além dos Red Pills, existem outras denominações de grupos masculinistas, como os MGTOW (Man Going Their Own Way – Homens fazendo seu próprio caminho) e os Incels (celibatários involuntários).
Quem pesquisou esses grupos em seu doutorado, pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), foi a cientista social Bruna Camilo Silva. O conceito de masculinismo é definido por ela como “uma ideologia extremamente patriarcal e misógina, que busca resgatar a prática violenta da dominação, na qual mulheres são vistas como aproveitadoras e inimigas dos direitos dos homens”. A pesquisadora entrou em alguns desses grupos masculinistas presentes em aplicativos de mensagens para poder conhecer qual conteúdo era produzido e o discurso adotado por aqueles homens em relação às mulheres.
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Bruna Camilo também entrevistou três mulheres que são atacadas quase diariamente por esses grupos. Uma delas foi a professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) e ativista feminista, Lola Aronovich. Um dos principais agressores de Lola, Marcelo Valle Silveira Melo, condenado a 41 anos de prisão, está preso há seis anos. Ele fazia parte de um grupo nazista que atacou Lola por sete anos consecutivos. As violências não cessaram, pois ela ainda recebe ameaças de morte.
Os masculinistas não fazem ameaças somente a Lola. “Às vezes, eles ameaçam escolas e universidades que não têm nada a ver comigo e mandam e-mail com cópia para mim. Eles enviaram e-mails para Sâmia Bonfim [deputada federal pelo PSOL], depois do assassinato do irmão dela no Rio, com cópia para mim, prometendo sequestrar, estuprar e matar o bebê dela”, conta Lola.
A violência contra lésbicas e mulheres trans nas redes sociais
Viviane Lira é uma mulher lésbica e negra que não expõe mais sua orientação sexual nas redes sociais por causa dos ataques machistas e lesbofóbicos que sofreu há alguns anos. “O último que eu sofri foi no Facebook, em 2022. Uma figura que nem conheço deixou um comentário horroroso para mim que eu só excluí. Não fui na página dele, não denunciei porque foi muito agressivo, nem fiz print. Depois, me arrependi porque podia tê-lo processado. Mas [esse tipo de violência] quebra nossas forças de imediato, afeta nosso emocional”, conta Viviane.
Karina Guedes é uma mulher trans e ativista do movimento LGBTQIAP+, em João Pessoa, Paraíba. Em dezembro de 2023, ela foi alvo de ataques transfóbicos nas redes apenas por comentar em um post do Instagram sobre a decisão do Conselho Universitário da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) de permitir que as pessoas usassem o banheiro do campus de acordo com sua identidade de gênero. Karina não prestou queixa na delegacia nem denunciou os comentários transfóbicos nos canais de denúncias das plataformas.
Viviane e Karina integram a parte da população brasileira que mais é atingida pela violência de gênero no ambiente digital: as mulheres negras e transgêneras. A pesquisadora e professora Mariana Valente, em seu livro Misoginia na internet, traz dados do estudo do Centre for International Governance Innovation (CIGI), que apontam a raça e a orientação sexual como fatores que impulsionam as práticas de violência de gênero on-line.
Para a professora do Departamento de Jornalismo da UFPB, Glória Rabay, na internet os agressores se sentem protegidos pelo anonimato. Dessa forma, ela reforça que é importante que as mulheres denunciem as violências que sofreram nas plataformas digitais às delegacias especializadas em crimes cibernéticos, à delegacia da mulher e às próprias plataformas digitais.
A pesquisadora chama a atenção para a prática dessas violências no mundo on-line, que podem vir a se concretizar no mundo off-line. “A internet não é uma rede que acontece apenas virtualmente. Ela é alimentada por seres reais, se articulando. Não tenho dúvida que as violências propagadas nas redes sociais tanto refletem o mundo material, concreto, como interferem nesse comportamento, alimentando práticas violentas”, pontua. Algumas leis foram criadas para proteger as mulheres dessas violências no mundo virtual, como a Lei Carolina Dieckmann (Lei nº 12.737/2012) e a Lei Rose Leonel (Lei nº 13.718/2018).
Violência política de gênero
Uma outra face das agressões no mundo virtual é a violência política de gênero. No Espírito Santo, em 2021, o então vereador de Vitória, Gilvan da Federal (PL), hoje deputado federal, protagonizou uma cena que ganhou repercussão nacional. Ele mandou, aos gritos, sua colega de parlamento e atual deputada estadual, Camila Valadão (Psol), calar a boca, e a chamou de “satanista” e “assassina de crianças e bebês”. Essa foi apenas uma das muitas violências cometidas por ele contra a parlamentar, que não era seu único alvo, pois ele fazia o mesmo com a vereadora Karla Coser (PT), ou seja, com as duas únicas mulheres a ocuparem vagas no legislativo municipal.
Assim como a violência praticada no mundo on-line pode desencadear agressões no off-line, o contrário pode ocorrer. Após tomar posse como deputada estadual em 2023, Camila afirma que as violências dirigidas a ela nas redes sociais diminuíram por não ter mais, na casa legislativa onde agora atua, um desrespeito ao regimento interno. “Essa violência que a gente sofre no plenário é reproduzida com xingamentos e palavras ofensivas nas redes sociais. Quando estava na Câmara [de Vereadores], recebi comentários me chamando de ‘vagabunda’, por exemplo, principalmente em momentos nos quais os temas debatidos eram mais tensionadores, a exemplo das pautas da comunidade LGBTQIA+”, diz a deputada.
Na Assembleia Legislativa, a lógica de funcionamento diferente, segundo Camila, resulta em um cuidado maior do ponto de vista do decoro. A parlamentar narra que já aconteceu, por exemplo, de o deputado Capitão Assumção (PL) interromper a sua fala e ter o microfone desligado pelo presidente da Casa. Portanto, a quebra de decoro e a omissão dos parlamentares diante das violências cometidas contra as mulheres acabam estimulando que outras pessoas as cometam, inclusive no mundo virtual. “A manutenção do regimento é fundamental para coibir a violência política de gênero nas redes sociais”, defende Camila.
Sua ex-colega de parlamento, a vereadora Karla Coser, recebe várias mensagens agressivas pelas redes sociais. Em uma das mais recentes, enviada por mensagem direta do Instagram, um homem escreveu: “você não tem vergonha na cara, não? Fascista dissimulada! Vou acabar com a sua carreira”. A vereadora também já recebeu em suas redes sociais comentários como “vagabunda maconheira”, “só fala merda”, “vai se catar, gazela”, “bosta petista”, “merda da vaca”, “o inferno é o seu lugar”, e tantos outros.
Karla afirma não ter tomado a iniciativa de processar o agressor ainda por causa do desgaste emocional que isso pode causar, pois nos trâmites do processo terá que reviver as ofensas, e isso, conforme aponta, é cansativo. Karla lamenta o fato de a violência política de gênero ser naturalizada tanto no mundo on-line quanto no off-line. “Quando a mulher que sofreu a violência questiona, se posiciona, as pessoas falam que é ‘mimimi’. Falam que na política é assim, que os homens brigam. A profundidade das violências contra as mulheres é muito maior porque acham que somos frágeis e que estamos em um lugar que não deveria ser ocupado por nós. Isso, infelizmente, afasta muitas mulheres da política e isso é um problema para a democracia”, diz Karla.
A pesquisadora Graciela Natansohn, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), aponta que não consegue separar a violência digital das previstas na Lei Maria da Penha: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. “O cara que controla o GPS para monitorar uma mulher é o mesmo que bate na namorada. A rede social, por exemplo, é somente um instrumento. O virtual é real e junta todas essas formas de violência”, diz.
De acordo com Graciela, para coibir a violência contra a mulher no mundo digital é preciso a regulação das mídias, a educação midiática e projetos alternativos às cinco grandes empresas que controlam o tráfego comercial de informações na internet.
Essas alternativas, como ressalta Mônica Mourão, em artigo para o blog do Intervozes na Carta Capital, passam pela construção de tecnologias e infraestruturas feministas. Ela cita como exemplo, entre outras, a rede autônoma feminista Fuxico, desenvolvida pela MariaLab.
A Associação para o Progresso das Comunicações (APC) resume o que seriam tecnologias feministas no documento “Princípios feministas para a internet”, recém traduzido para o português. Entre eles estão: o acesso à internet, à informação e ao desenvolvimento de tecnologias por e para mulheres e população LGBTQIAP+; a inserção da perspectiva de gênero na governança da internet; o controle e a agência das mulheres e da população LGBTQIAP+ em relação à privacidade e aos dados pessoais; a luta contra a violência de gênero on-line; e o incentivo a uma economia digital baseada na cooperação, na solidariedade, nos bens comuns e na justiça socioambiental.
Lei Maria da Penha
Tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei (PL) 116/2020, de autoria da senadora Leila Barros (Cidadania/DF), que inclui, na Lei Maria da Penha, a previsão de que a violência doméstica e familiar contra a mulher também se expressa por meios eletrônicos. A proposta acrescenta um dispositivo ao art. 7° da Lei Maria da Penha, que define as formas de violência doméstica e familiar contra a mulher: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral.
Caso o PL seja aprovado, será acrescentado ao texto que as violências previstas na Lei podem ser perpetuadas por meios eletrônicos, como redes sociais e mensagens de celular. A militante do Fórum de Mulheres do Espírito Santo (Fomes), Emily Marques, explica que as violências previstas na Lei Maria da Penha são domésticas e familiares, e que os ataques no meio digital extrapolam esses campos, partindo também de desconhecidos. Contudo, Emily afirma que isso não invalida o PL. “A violência doméstica e familiar pode se expressar de diversas formas. Muitas das vítimas utilizam como prova o que acontece nas redes, quando parte de pessoas com quem têm relação de afeto”, diz.
Para acessar canais de orientação às mulheres vítimas de violência, entre no endereço: https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/denuncie-violencia-contra-a-mulher/violencia-contra-a-mulher.
Elaine Dal Gobbo é jornalista, especialista em Gestão Estratégica de Marketing e mestra em Comunicação & Territorialidades (UFES). É associada do Coletivo Intervozes.
Mabel Dias é jornalista, mestra em Comunicação (UFPB) e doutoranda em Comunicação (UFPE). Integra o Observatório Paraibano de Jornalismo e é associada do Coletivo Intervozes.