Washington analisa cenários para uma “guerra aberta”
Política do fato consumado no Mar da China, grandes operações na Crimeia, construção de um sistema antimísseis na Europa: as potências nucleares exibem os músculos. Nos círculos dirigentes russo, chinês e norte-americano, os falcões retomam espaço. Instalando quatro batalhões na fronteira russa, a Otan eleva a tensãoMichael Klare
Enquanto a corrida presidencial norte-americana atinge seu ápice e os líderes europeus estudam as consequências do Brexit, os debates públicos sobre a segurança se concentram na luta contra o terrorismo internacional. Mas, se esse tema satura o espaço midiático e político, ele desempenha um papel relativamente secundário nas trocas entre generais, almirantes e ministros da Defesa. Porque não são os conflitos de baixa intensidade que chamam a atenção, e sim aqueles que eles denominam “guerras abertas”: conflitos significativos contra potências nucleares como a Rússia e a China. Os estrategistas ocidentais vislumbram um novo choque desse tipo, como no auge da Guerra Fria.
Essa evolução, negligenciada pelos meios de comunicação, envolve pesadas consequências, a começar pelo aumento das tensões nas relações entre a Rússia e o Ocidente, cada um observando o outro na espera de um enfrentamento. Mais preocupante: muitos líderes políticos estimam não apenas que uma guerra seria possível, mas que ela poderia explodir a qualquer momento – percepção que, ao longo da história, precipitou respostas militares em que uma solução diplomática poderia ter intervindo.
Esse humor geral belicoso transparece nos relatórios e nos comentários dos altos quadros militares ocidentais durante os vários encontros e conferências dos quais eles participam. “Em Bruxelas, como em Washington, durante muitos anos a Rússia deixou de ser uma prioridade nos programas de defesa. Mas esse não será mais o caso no futuro”, podemos ler num relatório que resume os pontos de vista trocados em um seminário organizado em 2015 pelo Instituto de Estudos Estratégicos dos Estados Unidos (Institute of National Strategic Studies, INSS). Ainda é possível ler que, na sequência das ações russas na Crimeia e no leste da Ucrânia, vários especialistas “podem a partir de agora vislumbrar uma degradação capaz de desembocar numa guerra […]. Por isso, [eles] estimam que é preciso concentrar novamente as preocupações na eventualidade de um confronto com Moscou”.1
O conflito vislumbrado teria mais chances de ocorrer na frente leste da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), englobando a Polônia e os países bálticos, com armas convencionais de alta tecnologia. Mas poderia se estender até a Escandinávia e os entornos do Mar do Norte, e levar ao recurso de armas nucleares. Os estrategistas norte-americanos e europeus recomendam, portanto, um reforço das capacidades em todas essas regiões e desejam consolidar o crédito da opção nuclear da Otan.2 Um artigo recente da revista da Otan preconiza, por exemplo, aumentar o número de aviões com capacidade nuclear nos exercícios da organização a fim de dissuadir Moscou de qualquer avanço na frente leste, deixando-lhe entrever a possibilidade de uma resposta nuclear.3
Há pouco tempo, esse tipo de cenário teria atraído o interesse apenas das academias militares e dos grupos de reflexão estratégica. Não é mais o caso. Testemunha disso são o novo orçamento da defesa norte-americana,4 as decisões tomadas na cúpula da Otan dos dias 8 e 9 de julho de 2016 e o anúncio, feito por Londres, em 18 de julho, de sua intenção de modernizar o programa de mísseis nucleares Trident.
O secretário de Defesa norte-americano, Ashton Carter, reconhece que o novo orçamento militar de seu país “marca uma mudança de orientação principal”.5 Enquanto, nos últimos anos, os Estados Unidos davam prioridade às “operações anti-insurrecionais em grande escala”, eles devem agora se preparar para um “retorno da rivalidade entre grandes potências”, sem descartar a possibilidade de um conflito aberto com um “inimigo de envergadura”, como a Rússia ou a China. Carter vê nesses dois países seus “principais rivais”, porque eles possuem armas muito sofisticadas para neutralizar algumas das vantagens dos norte-americanos. “Nós precisamos”, prossegue, “ter – e mostrar que temos – a capacidade de causar perdas intoleráveis a um agressor bem equipado, para dissuadi-lo de executar manobras provocadoras ou fazê-lo se arrepender amargamente caso venha a lançá-las.”
Tal objetivo exige reforço da capacidade norte-americana de se contrapor a um hipotético ataque russo às posições da Otan no Leste Europeu. No quadro da European Reassurance Initiative (Iniciativa para Tranquilizar a Europa), o Pentágono prevê em 2017 uma quantia de US$ 3,4 bilhões destinada à instalação de uma brigada blindada suplementar na Europa, assim como ao “pré-posicionamento” dos equipamentos de uma brigada similar a mais. Num prazo mais longo, o aumento das despesas com armas convencionais de alta tecnologia seria igualmente necessário para vencer um “inimigo de envergadura”: aviões de combate sofisticados, navios de superfície, submarinos. Para coroar, Carter deseja “investir na modernização da dissuasão nuclear”.6
Outra reminiscência da Guerra Fria: o comunicado emitido pelos chefes de Estado e de governo na última cúpula da Otan, em julho, em Varsóvia.7 Enquanto o Brexit ainda estava fresco, o texto parece só se preocupar com Moscou: “As atividades recentes da Rússia diminuíram a estabilidade e a segurança, aumentaram a imprevisibilidade e modificaram o ambiente da segurança”. Por conseguinte, a Otan se diz “aberta ao diálogo”, reafirmando a suspensão de “toda cooperação civil e militar prática” e o reforço de sua “postura de dissuasão e defesa, que inclui uma presença avançada na parte oriental da Aliança Atlântica”.8
Medo do rebaixamento
A instalação de quatro batalhões na Polônia e nos países bálticos é ainda mais notável quando se pensa que será a primeira guarnição semipermanente de forças multinacionais da Otan no território da ex-União Soviética. Os Estados Unidos, o Reino Unido, o Canadá e a Alemanha vão assegurar seu comando num sistema de rodízio. Essa reaproximação das tropas favorece o risco de um acirramento, uma escaramuça com forças russas que poderia desencadear uma guerra em grande escala, talvez com um componente nuclear.
Apenas dez dias após a cúpula atlântica, Theresa May, nova primeira-ministra britânica, obteve o aval de seu Parlamento para a preservação e o desenvolvimento do programa de mísseis nucleares Trident. Afirmando que “a ameaça nuclear não desapareceu, pelo contrário, acentuou-se”,9 ela propôs um plano de 41 bilhões de libras esterlinas (R$ 175 bilhões) destinado à manutenção e modernização da frota nacional de submarinos lançadores de mísseis atômicos.
Para justificarem a preparação de um conflito maior contra um “inimigo de envergadura”, os analistas norte-americanos e europeus invocam quase sempre a agressão russa na Ucrânia e o expansionismo de Pequim no Mar da China Meridional.10 As manobras ocidentais passam assim a ser um mal necessário, uma simples reação às provocações do outro campo. Mas a explicação não é suficiente nem convincente. Na realidade, os quadros dos exércitos temem mais que as vantagens estratégicas do Ocidente percam vigor em razão das turbulências mundiais, enquanto outros países ganham em potência militar e geopolítica. Nessa nova era de “rivalidade entre as grandes potências”, para retomar os termos de Carter, a força de ataque norte-americana parece menos temível do que antes, enquanto a capacidade das potências rivais não para de aumentar.
Assim, quando se trata das manobras de Moscou na Crimeia e no leste da Ucrânia, os analistas ocidentais invocam a ilegalidade da intervenção russa. Mas sua verdadeira preocupação tem a ver com o fato de que esta demonstrou a eficácia do investimento militar feito por Vladimir Putin. Os observadores atlânticos olhavam com desdém os recursos russos empregados nas guerras da Chechênia (1999-2000) e da Geórgia (2008); as forças ativas na Crimeia e na Síria são, em contrapartida, bem equipadas e têm bom desempenho. O relatório do INSS citado observa, aliás, que “a Rússia deu passos de gigante no desenvolvimento de sua capacidade de utilizar sua força de maneira eficaz”.
Da mesma forma, ao transformar recifes e atóis do Mar da China Meridional em ilhotas suscetíveis de abrigar instalações importantes, Pequim provocou surpresa e preocupação nos Estados Unidos, que por muito tempo consideraram essa zona um “lago norte-americano”. Os ocidentais estão impressionados com a potência crescente do Exército chinês. É verdade que Washington desfruta hoje uma superioridade naval e aérea na região, mas a audácia das manobras chinesas sugere que Pequim se tornou um rival que não pode ser negligenciado. Os estrategistas não enxergam nenhum outro recurso senão preservar uma ampla superioridade a fim de impedir futuros concorrentes potenciais de prejudicar os interesses norte-americanos. Daí as ameaças insistentes de um conflito maior, que justificariam as despesas suplementares no armamento hipersofisticado que um “inimigo de envergadura” exige.
Dos US$ 583 bilhões do orçamento da defesa revelado por Carter em fevereiro, US$ 71,4 bilhões irão para pesquisa e desenvolvimento dessas armas – a título de comparação, o orçamento militar francês atingiu R$ 36 bilhões em 2016. Carter explica: “Devemos fazer isso para nos adiantarmos às ameaças, num momento em que outros países ensaiam ter acesso a vantagens que desfrutamos durante décadas em campos como as munições guiadas com precisão ou a tecnologia antirradar, cibernética e espacial”.11
Somas fabulosas serão igualmente consagradas à aquisição de equipamentos de ponta aptos a ultrapassar os sistemas russos e chineses de defesa e a reforçar as capacidades norte-americanas nas zonas potenciais de conflito, como o Mar Báltico ou a região oeste do Pacífico. Assim, ao longo dos cinco próximos anos, algo como US$ 12 bilhões serão consagrados ao bombardeiro de longa distância B-21, um avião antirradar capaz de transportar armas termonucleares e fazer frente à defesa aérea russa. O Pentágono também vai comprar submarinos (da classe Virginia) e destróieres (Burke) suplementares para enfrentar os avanços chineses no Pacífico. Ele começou a implantar seu sistema antimíssil de última geração, o Thaad (Terminal High Altitude Area Defense), na Coreia do Sul. Oficialmente, trata-se de enfrentar a Coreia do Norte, mas também é possível enxergar aí uma ameaça contra a China.
É altamente improvável que o futuro presidente norte-americano, seja Hillary Clinton ou Donald Trump, renuncie à preparação de um conflito com a China ou a Rússia. Hillary já obteve o apoio de vários pensadores neoconservadores, que a julgam mais confiável que seu adversário republicano e mais belicista que Barack Obama. Trump repetiu várias vezes que pretende reconstruir as capacidades militares “esgotadas” do país. Porém, ele concentrou suas declarações na luta contra a Organização do Estado Islâmico (OEI) e afirmou ter sérias dúvidas sobre a utilidade de manter a Otan, que considera “obsoleta”. Em 31 de julho, ele declarou na rede ABC: “Se nosso país se entendesse bem com a Rússia, seria uma coisa boa”. E acrescentou, de maneira mais desconcertante para seus adversários: “O povo da Crimeia, pelo que entendi, prefere ficar com a Rússia”. Mas ele também ficou preocupado em ver Pequim “construir uma fortaleza no Mar da China” e insistiu na necessidade de investir em novos sistemas de armamento, mais do que o fizeram Obama e Hillary em sua passagem pelo governo.12
A intimidação e os treinamentos militares em zonas sensíveis como o Leste Europeu e o Mar da China Meridional podem se tornar a nova norma, com os riscos de escalada involuntária que isso implica. Washington, Moscou e Pequim, de qualquer forma, anunciaram que instalariam nessas regiões forças suplementares e conduziriam exercícios ali. A abordagem ocidental desse tipo de conflito maior conta igualmente com numerosos apoiadores na Rússia e na China. O problema não se resume, portanto, a uma oposição Leste-Oeste: a eventualidade de uma guerra aberta entre grandes potências se espalha nas mentes e leva os tomadores de decisão a se prepararem para ela.
Michael Klare é professor de estudos sobre paz e segurança mundiais no Hampshire College, em Amherst, Masachusetts, e autor do recém lançado Rising powers, shrinking planet; the new geopolitics of energy, publicado nos Estados Unidos pela Metropolitan Books, e no Reino Unido pela One World Publications.