A arrogância do general
Se os generais que fizeram campanha em 2018 por Bolsonaro, destruíram a candidatura Lula, ocuparam cargos chave no novo governo e ficaram ao lado do tresloucado capitão até o final de seu período presidencial formassem uma seleção, Sérgio Westphalen Etchegoyen seria o técnico
Sérgio Westphalen Etchegoyen nasceu em Cruz Alta (RS) em 1952 e formou-se na Aman em 1974. Foi o homem forte do governo Temer (2016-2018), ocupando a chefia do recriado GSI, o Gabinete de Segurança Institucional, extinto pela presidenta Dilma. Filho do general de Brigada Leo Guedes Etchegoyen e neto do general Alcides Etchegoyen, faz parte de longa, conhecida e extensa família militar. Ex-comandante da Escola de Comando e Estado Maior do Exército (ECEME), chefiou o Estado Maior dessa força.[1] Se os generais que fizeram campanha em 2018 por Bolsonaro, destruíram a candidatura Lula, ocuparam cargos chave no novo governo e ficaram ao lado do tresloucado capitão até o final de seu período presidencial formassem uma seleção, Etchegoyen seria o técnico. Ele dominou o plano do jogo, reforçou o espírito de equipe, ensinou estratégia e táticas, sempre fingindo que a responsabilidade era da comissão técnica. Falsa modéstia.
Como os técnicos de seleção, Etchegoyen dá longas entrevistas. Uma delas foi transmitida ao vivo pela Rádio Gaúcha, em 4 de maio de 2020.[2] No dia anterior, o presidente Bolsonaro tinha comparecido, pela segunda vez, a uma “manifestação pública antidemocrática e anticonstitucional”, como anunciou o Jornal Nacional. A primeira vez foi em frente ao quartel-general do Exército; esta última, diante do Palácio do Planalto. Nas duas, o mandatário se dirigiu à multidão. Na segunda, um repórter fotográfico do Estado de S.Paulo e seu auxiliar tinham sido agredidos a socos e pontapés. O general via o fato com preocupação? – começou a entrevista. Ele respondeu que não acompanhara os episódios do domingo, porque passara o fim de semana escrevendo um artigo. Ainda assim, sem mencionar que a manifestação, além de ilegal, violava as mais básicas recomendações sanitárias, em plena crise da Covid-19, tergiversou:
“A agressão ao repórter é um episódio a mais dessa lógica de confrontação até física que nós estamos vivendo. (…) o repórter representou naquele momento um objetivo, um elemento de insatisfação das pessoas e (as pessoas) acharam que valia a pena a violência. No momento em que a disputa política permitir a violência é a barbárie.”
Em seguida, explicou o que tinha sido o protesto do domingo, aquele que não pudera acompanhar:
“Eu entendi que foi uma manifestação de apoio ao presidente e, ao mesmo tempo, de repúdio a outras autoridades. Manifestações de apoio, manifestações de repúdio são legítimas (…), mas tem alguns limites que não podem ser ultrapassados. (…) (Um deles), que constitui um crime na minha opinião, é a turma que vai lá para apoiar um eventual ato de exceção, o AI-5, de intervenção militar. Mas em última análise as pessoas têm o direito de se manifestar. (…) É uma manifestação disparatada, descabida, anacrônica, mas tem muita coisa anacrônica no país também, não?”
Os entrevistadores pediram então que ele opinasse sobre uma frase de Bolsonaro do dia anterior, “Eu rezo para que esta semana seja uma semana mais calma porque eu já estou no limite. Eu conto com o apoio do povo, dos militares”. Etchegoyen achava a fala preocupante? Dessa vez, a resposta foi não. Para ele, o chefe de Estado tinha “uma retórica em que ele é um especialista em andar no fio da navalha (…): o presidente não disse que as Forças Armadas estavam ao lado dele, ele disse que elas estavam ao lado da lei, o que é uma obviedade (…)”. O resto era um “esgrimismo de palavras e expressões” que podiam ser interpretadas de várias formas. Mas “daí, as pessoas acharem (…) que as Forças Armadas estariam envolvidas numa aventura para preservar um mandato presidencial, ou para desapoiar ou apoiar alguém a cometer um crime (…) a distância é enorme” (referia-se à sugestão do mandatário de que não cumpriria uma decisão de um ministro do Supremo, que mencionaremos a seguir).
Quanto ao resto, não havia com que se preocupar. O país passara por crises muitos mais graves que essa nas últimas quatro décadas. Mas o importante era perceber que “as FFAA jamais foram, nesses 40 anos, uma fonte de inquietude, de instabilidade ou de questionamento das decisões políticas (ou) judiciais. (…) Não tem por que ser agora (…). De 2014 para cá (…) vivemos um rosário de crises intermináveis, graves, amplas e profundas (…) E ultrapassamos todas elas como país (…), sem nenhum solavanco no plano institucional, sem nenhum momento em que as FFAA tenham tido um comportamento minimamente afastado dos limites constitucionais e legais do seu papel”. E arrematou: “por que isso aconteceria agora?”.
Para o general, a verdadeira ameaça vinha do campo civil: citando “bons articulistas, bons pensadores, bons teóricos, que se manifestaram neste fim de semana”, disse que o STF fizera no passado o que chamou de “coisas muito questionáveis do ponto de vista da institucionalidade, (…) do ponto de vista dos limites de competência de cada poder”. O problema não eram os militares. O que o entristecia era como, no Brasil, havia pouca confiança na força da democracia: “As cabeças estão grudadas no século XX e não têm um apreço efetivo pela democracia. Se tivessem, essas coisas estavam sendo perfeitamente entendidas e explicadas”.
Voltando à suprema corte, passou a se referir à decisão, tomada alguns dias antes pelo ministro Alexandre de Moraes (cujo nome não citou), que suspendeu a nomeação do delegado Ramagem para diretor da PF. “Quando a gente vê (…) decisões pessoais da Justiça ou do Congresso avançarem sobre competências presidenciais (…) a decisão do presidente foi política, ele tem todos os elementos políticos para escolher. (…) A decisão dele é política e é legítima, do ponto de vista de quem foi eleito e está lá para isso”. Isso constituía “ativismo judicial”, “ao arrepio da lei, da Constituição”, recebido “com aplauso, ou pelo menos com a omissão do Congresso”. “Por que a gente não discute isso, que é fato real, que é concreto? (…) por que a sociedade não denuncia isso?”. O que adiantava o Executivo, o presidente, as Forças Armadas se manterem leais à Constituição, “enquanto essas restrições ao seu papel, que doutrinadores do Direito, teóricos do Direito, muito conhecidos e muito respeitados, acham ilegítimas” e configuram ingerência de outro poder? Isso tudo iria contra a Constituição, onde a harmonia e a independência dos poderes, nessa ordem, estavam bem estabelecidas. Embora falasse no plural, parece claro que Etchegoyen se referia aqui a Ives Gandra Martins. A opinião desse jurista, no entanto, foi contestada publicamente por centenas de especialistas em Direito.[3]
Os jornalistas esboçaram uma reação, insistindo nos recentes atos contra a democracia. O general saberia explicar por que as pessoas iam para a frente de um quartel? Por que criticavam o STF? Por que queriam uma ditadura apoiada pelas FFAA? “A gente tem um limite um pouquinho tênue entre a liberdade de expressão e a expressão de ataque à democracia”, respondeu Etchegoyen. As pessoas iam à frente do quartel porque achavam “que as FFAA não entenderam, não evoluíram politicamente com a Nação e ainda que seria possível a participação das FFAA como uma força moderadora, como um elemento capaz de salvar a pátria num momento desse e não funciona assim”.
Como se vê, na entrevista, o general se esforça por parecer ponderado, apresentando-se como uma espécie de oposto do general Augusto Heleno, que o substituiu na chefia do GSI. É difícil imaginá-lo falando palavrões ou declarando ódio a Lula. Mas cada palavra sua é sopesada, para não criar dificuldades para o governo Bolsonaro ou jogar água no moinho da oposição. Do começo até quase o fim do período presidencial do ex-capitão rebelde, Etchegoyen manteve essa posição. A esquerda, para ele, é “o outro lado”. Bolsonaro é ruim de jogo, parece dizer, mas joga no meu time.
Àquela altura, alguns acontecimentos estavam fugindo ao script que os chefes militares delinearam para o governo ao qual se associaram. Em novembro de 2019, o STF mandou libertar Lula; logo, julgou viciados os processos que o puseram na cadeia, abrindo caminho para a volta do ex-presidente à política, à sua candidatura, à sua liderança nas pesquisas e finalmente à vitória na eleição de outubro. Eleito Lula, o general deixou de lado a ponderação. No artigo “Transição para o passado”, o ex-chefe do GSI expressou seu desconsolo com o novo quadro político.[4] Esquecendo-se que Bolsonaro alimentou desde o primeiro dia de seu governo a polarização do país, culpou a campanha eleitoral por ter fraturado famílias, abalado amizades e culminado num “futuro de incertezas e inseguranças”. Olvidando que já em 2020 criticara o STF, atribuiu ao clima das eleições a “profunda e preocupante desconfiança nas cortes superiores do país”. E arriscou um vaticínio sombrio: “Chegamos até aqui divididos e parece que seguiremos assim, infelizmente”.
Sua impaciência voltou-se contra o próprio presidente derrotado: “Jair Bolsonaro, escolhido por 49,10% dos eleitores para liderá-los na oposição, abdicou da tarefa, por ter sumido depois das eleições e se recolheu a incompreensível silêncio”. A frase é imprecisa, pois os apoiadores do presidente votaram para reelegê-lo, não para fazer dele chefe da oposição. Pela primeira vez desde a criação da reeleição presidencial, um presidente, por sua própria falta de virtú, não conseguia se reeleger.
A partir daí, os dois curtos parágrafos dedicados à derrota eleitoral da chapa capitão Bolsonaro/general Braga Netto são seguidos por cinco sobre a nova situação. “O sumiço do governo que termina abriu espaço para que o que chega domine sozinho a cena política, lidere negociações e avance no Congresso com afagos aos supostamente eleitos para fazer oposição”, esquecendo-se mais uma vez que os bolsonaristas elegeram parlamentares na crença de que apoiariam a situação.
O difícil, complexo e atribulado processo de transição, no quadro de destruição social, econômica, sanitária, internacional e política herdada de Bolsonaro e sua equipe é descrito pejorativamente, para quem a “densa e barulhenta polvadeira levantada pelas mais de quatro centenas de pessoas designadas para a equipe de transição não apontam nenhuma novidade”. Nele “sobressaem rostos desgastados pelos escândalos de corrupção nas administrações passadas do PT”. O general parece nessas linhas decididamente partidário: “impossível elaborar diagnósticos e recomendações confiáveis no exíguo prazo proposto e nesse ambiente de assembleia estudantil”. E um pouco esquecido: no governo Bolsonaro, a governabilidade foi garantida pelo orçamento secreto e pela aliança com o Centrão, arquitetada, não custa lembrar, pelo chefe da Casa Civil, o general Ramos.[5]
Para Etchegoyen, a emenda constitucional articulada por Lula, para permitir o cumprimento de promessas sociais muito parecidas às defendidas pelo candidato à reeleição, resume-se a uma “gastança que beira os 200 bilhões de reais”, “um macabro dejá vu”, “sem o menor risco de dar certo”. Em contraste, com o avanço das negociações, no momento em que escrevíamos este artigo mesmo a imprensa mais conservadora parabenizava Lula pela capacidade de negociação num processo que poderia garantir a governabilidade de seu governo.[6]
O artigo termina com o tema predileto do general, a incompreensão civil sobre as reais intenções dos fardados: “o desconhecimento do ethos militar criou um falso impasse na chamada transição”. Para o autor, no caso das Forças Armadas, alicerçadas na disciplina e na hierarquia, não se pode falar em transição, pois “nelas existe substituição”. As “rígidas normas éticas que sustentam os fundamentos constitucionais” não admitem, conclui o ex-chefe do Estado-Maior do Exército, “a existência de dois comandantes em paralelo, tampouco dão liberdade para que os substitutos, mesmo quando já indicados, movam-se ou se manifestem fora de suas áreas de atribuição”.
Essas frases são eivadas de equívocos. Em primeiro lugar, disciplina, hierarquia e rígidas normas éticas de respeito aos ditames constitucionais deveriam afastar os militares da política, e não levar a uma associação estreita e atribulada com governantes, por maior que seja a identidade ideológica, como ocorreu no governo que se encerra. Em segundo, quem colocou a questão de adiantamento da escolha dos chefes militares foram os próprios chefes castrenses, ao anunciar que deixariam seus cargos antes da posse do novo presidente, o que foi condenado mesmo por um general que serviu por seis meses no governo do ex-capitão.[7] Enfim, em várias ocasiões depois de 2019, ministros da Defesa e comandantes das forças emitiram notas públicas completamente fora de “suas áreas de atribuição”, voltadas para ataques velados ou explícitos ao Poder Judiciário ou para as manifestações realizadas diante de unidades militares, pedindo intervenção militar depois da eleição de Lula.[8]
Algumas dessas notas foram emitidas pelos comandantes de força, o que é inusitado, pois cabe ao Ministério da Defesa falar pelas Forças Armadas. Uma delas foi seguida por uma declaração absurda do comandante da Aeronáutica, o brigadeiro Baptista Junior, considerado o mais bolsonarista dos três: “homem armado não precisa ameaçar. Não existe isso. Nós não vamos ficar aqui ameaçando”, disse no contexto das repercussões negativas de uma nota militar em resposta a declarações do senador Omar Aziz na CPI da Covid, sobre o risco de desprestígio das Forças Armadas ao se associar à política sanitária de Bolsonaro.[9]
Numa coisa, porém, talvez por um ato falho, o general Sergio Etchegoyen tocou no ponto, a menção ao “passado” define bem a situação que nos trouxe até aqui. Durante o governo do ex-capitão, voltaram as comemorações do 31 de março de 1964, emergiram elogios a notórios torturadores, não faltaram ameaças de oficiais generais à democracia e criou-se um clima de retrocesso institucional que colocou no centro das decisões as Forças Armadas, culminando na sua pretensa “fiscalização” do processo eleitoral.
Ao contrário do que diz o general, a “transição ao passado” já ocorreu; a necessária “transição ao futuro” deve livrar-nos do mal já feito, operando a difícil reconstrução das instituições, o retorno da democracia e a volta dos militares aos quartéis. Tarefas árduas, mas não impossíveis. Mas não nos iludamos, por muito tempo ainda teremos que suportar eclosões de eloquência militar, como a mais recente do general Etchegoyen. Esperemos que sejam apenas manifestações inócuas do “Jus Esperneandi”.
O que não se pode fazer é permitir que os militares se coloquem como uma espécie de espada de Dâmocles pairando sobre a cabeça de Lula, a começar pelo uso da imprensa para defender a existência de condições “pétreas” para a obediência militar (não revisão da anistia, intocabilidade dos currículos das escolas e não interferência civil nas promoções). É inacreditável que os generais, depois de escalar a seleção de Bolsonaro, também queiram dar pitacos na escolha do time de Lula. Não foi o que fizeram ao praticamente impor o nome de José Mucio para o Ministério da Defesa? Enfim, o jogo continua.
João Roberto Martins Filho é pesquisador das Forças Armadas no Brasil e professor titular da Universidade Federal de São Carlos.
[1] Ricardo Costa de Oliveira, “Hereditariedade e família militar”, in João Roberto Martins Filho (org.), Os militares e a crise brasileira, São Paulo, Alameda Editorial, p.196.
[2] Os próximos parágrafos reproduzem ideias que desenvolvi no artigo “O que pensam os militares”, in www.boletimluanova.org.
[3] No final do mesmo mês de maio de 2020, 600 juristas publicaram documento em página inteira nos jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo¸ com o título “Basta”, onde afirmaram que “o Brasil, suas instituições, seu povo não podem continuar a ser agredidos por alguém que, ungido democraticamente ao cargo de Presidente da República, exerce o nobre mandato que lhe foi conferido para arruinar com os alicerces de nosso sistema democrático, atentando, a um só tempo, contra os Poderes Legislativo e Judiciário, contra o Estado de Direito, contra a saúde dos brasileiros, agindo despudoradamente, à luz do dia, incapaz de demonstrar qualquer espírito cívico, ou de compaixão para com o sofrimento de tantos”. Ver “Em manifesto, 600 juristas dizem ‘Basta!’ a ataques de Bolsonaro”, Rede Brasil Atual, 31-5-2020.
[4] Publicado em 3-12-2022 na página do Jornal NH (jornalnh.com.br) e em 5-12-2022 na do IREE, Instituto para a Reforma das Relações entre Estado e Empresa, que se apresenta como “organização independente cuja missão é promover o debate democrático e pluralista para aperfeiçoar a interação entre os setores público e privado no Brasil”. O general é presidente do Conselho de Administração do IREE Defesa & Segurança. Ver iree.org.br.
[5] Reinaldo Azevedo, “General Ramos diz que ‘não se envergonha’ por articulações com Centrão”, UOL, 9-2-2021.
[6] “Lula ganha a primeira”, editorial do Estado de S.Paulo, 8-12-2002.
[7] Guilherme Amado, “Santos Cruz critica saída de comandantes devido a Lula: ‘tem que prestar honras’”, Metrópoles, 6, 12-2002.
[8] Para um exemplo recente, ver Reinaldo Azevedo, “Nota pró-arruaça de militares revive AI-5 fora de época e remete a poema”, UOL, 12-11-2002.
[9] “’Homem armado não ameaça’, diz chefe da Aeronáutica sobre golpe”, Carta Capital, 8-7-2021.