A Bolsa, onde tudo faz sentido
Negócio da dívida, controle de empresas privadas, especulação à velocidade da luz. A Bolsa não é apenas uma das engrenagens-chave do sistema capitalista − desde sua aparição, encarna um propulsor fundamental: a insaciável busca do poder de gerar cada vez mais dinheiro
Situada na confluência da racionalidade estatal com as lógicas de mercado, a Bolsa é, ao mesmo tempo, um lugar, um dispositivo de troca e um espaço social. No início, era o local de reunião e principal círculo de encontro de particulares, pessoas de negócios, intermediários legais e astutos. O acesso à Bolsa, em geral um edifício de prestígio distinguido em meio à paisagem urbana, foi por muito tempo objeto de conflito entre esses ocupantes. Ter um lugar garantido onde se realizavam as trocas comerciais era a melhor maneira de ter acesso a benefícios. O desenvolvimento das telecomunicações e da informática a partir da década de 1980 fez com que se especulasse sobre o fim da dimensão geográfica das atividades da Bolsa. Contudo, a localização desses estabelecimentos não se modificou na mesma medida que o progresso da técnica permitia imaginar. Ao contrário, suas atividades se concentraram ainda mais em algumas metrópoles, em estado de concorrência intensa e contínua: Londres, Paris, Frankfurt, Zurique e Genebra, na Europa; Nova York e Chicago, nos Estados Unidos; Tóquio, Hong Kong, Xangai e Cingapura, na Ásia Oriental. Instituições financeiras públicas e privadas, tanto concorrentes como complementares, se concentram nesse espaço que reúne mão de obra altamente especializada. A concentração física favorece o intercâmbio de informação cujo valor não se reduz ao seu conteúdo: nos negócios, a forma de trocar informação é tão importante quanto a própria informação, porque condiciona seu valor efêmero e seus usos possíveis. Enquanto as maiores instituições financeiras do mundo (bancos, fundos de investimentos, fundos especulativos) utilizam computadores e algoritmos cada vez mais poderosos e rápidos, as Bolsas se esforçam para manter seus servidores de informática o mais próximo possível de seus melhores clientes. Dessa forma, a Bolsa de Paris decidiu transferir seus computadores para a periferia de Londres e alugar espaços que protegem os financistas da cidade para que eles ganhem um punhado de nanossegundos na transmissão de suas ordens para a Bolsa.
Trocas comerciais
Dentro de uma Bolsa, seja ela um monumento arquitetônico ou um emaranhado de redes informáticas, materializa-se sua segunda dimensão: um dispositivo de trocas comerciais. A formação dos preços empíricos com os quais se realizam as transações resulta de duas confrontações pacíficas. De um lado, está o confronto entre compradores e vendedores de um ou mais tipos de títulos. A concorrência pela troca anima aqueles que estão prontos para comprar ou vender. De outro lado, entre os particulares ou as instituições que realizam trocas, se opõem o comprador e o vendedor: cada um quer fazer prevalecer seu interesse, contrário ao da contraparte. É a confrontação sobre os termos de troca.1 Se os dispositivos que permitem o desenrolar desse comércio variam segundo cada país e época, todos cristalizam, nas regras formais e informais, as relações de força entre as partes desiguais que concorrem à troca. A distribuição dos ganhos das operações da Bolsa entre essas partes e sua intermediação constituem o risco dessas lutas de “poder sobre o poder de definir as regras”.2
Intermediação
A Bolsa é, portanto, um espaço social atravessado por uma luta dupla: a troca e os termos dessa troca. A confrontação entre interesses dissonantes depende muito da intermediação. Agentes (hoje, os bancos) realizam, por meio de comissão, as transações dos que dão ordens de operações na Bolsa, mas que não querem ou não podem lutar diretamente pela troca e seus termos. Esses intermediários são concorrentes entre si e disputam as ordens de compra ou venda. Para fazer prevalecer suas posições, investem em estratégias particulares e coletivas inscritas nas relações de força que, para além da Bolsa propriamente dita, estruturam um espaço financeiro, subespaço do campo do poder nacional.3 Nesse espaço onde se disputa o poder sobre os diferentes poderes, definem-se as condições da autonomia e a capacidade de ganho dos financistas. Trata-se de um lugar financeiro que compreende de fato instituições e agentes públicos e privados (bancos, seguradoras, a empresa gestora da Bolsa, empresas cotizadas, gestores de ativos, autoridades de regulação, banco central e ministério das Finanças), ao mesmo tempo solidários – porque sempre estão em rivalidade com outros espaços na perpetuação das atividades financeiras, de investimento, intermediação ou gestão – e concorrentes em suas práticas profissionais e na definição de modos de funcionamento. A imposição de determinada organização de atividades em vez de outra é a forma de assentar uma posição, e a do ofício correspondente, contra as de outros interventores.
Entender a Bolsa como um lugar específico, um dispositivo de mercado e um espaço social impede referir-se a ela como o mercado por excelência. A plena compreensão das atividades financeiras obriga a restituir as dimensões sociais – ou seja, conflituosas e irredutíveis à perseguição atemporal de ganhos monetários – das instituições, dos agentes e suas práticas. As condições de constituição e funcionamento de uma Bolsa são, portanto, produtos das histórias locais cujas camadas sedimentadas formam a base do solo financeiro onde repousa. A longa duração dessa instituição não quer dizer que ela siga igual; revela, antes, as forças contrárias que (des)constroem sua mobilidade.
Concorrência interna e externa
No princípio dessas dinâmicas, em geral centenárias, estão intricadas as relações de concorrência e de complementaridade no seio de cada espaço, por sua vez concorrentes de outros espaços financeiros nacionais ou estrangeiros. Essas relações de poder se imbricam em processos de disputa para a elaboração de regras que se repetem em diferentes escalas: formas comuns de servir às regulações oficiais, sejam ditadas nacionalmente ou, como é o caso atualmente do direito aplicado aos negócios, produzidas internacionalmente e em seguida transcritas localmente.4 Assim, as instituições financeiras e seus agentes, notadamente uma Bolsa e seus intermediários, possuem seus próprios ritmos em função de suas posições relativas em um ambiente financeiro e outros espaços sociais nos quais elas se inscrevem e com os quais interagem.
As tentativas recentes de fusão entre operadores de Bolsas nacionais – que a partir da década de 2000 passaram a ser oriundos principalmente de empresas privadas elas próprias cotizadas nos mercados geridos por elas – lembram como, apesar da desmaterialização das trocas financeiras, a localização das atividades da Bolsa ainda é um desafio crucial. Em 2011, a Bolsa de Londres tentou tomar o controle da de Toronto; e a de Cingapura falhou em tentar comprar a de Sydney, porque industriais canadenses e o governo australiano se opuseram, por medo de perder o controle de uma instituição organizadora da economia nacional. Quanto à New York Stock Exchange (NYSE), que possui, entre outras, a Bolsa de Paris desde 2007, ela não pôde se fundir com a Deutsche Börse: a direção-geral da concorrência da Comissão Europeia considerou que essa agrupação constituiria um grande monopólio na Europa, e o Land de Hesse (cujos poderes regulamentários se estendem à Deutsche Börse, localizada em Frankfurt) não quis aceitar uma fusão-aquisição transnacional que poderia afetar a fortaleza frankfurtiana de empregos qualificados.
Regulação
Se por um lado as Bolsas não são mais lugares de encontro físico entre compradores, intermediários e vendedores de títulos financeiros, por outro suas localizações constituem ainda hoje centros de poder: determinam suas jurisdições e, por consequência, a capacidade dos poderes públicos e das instituições financeiras privadas de determinado campo de poder nacional de promover seus interesses contra os de outras economias nacionais. Como dizia Max Weber em 1896: “A Bolsa não pode ser um clube de ‘cultura ética’. […] Os capitais dos grandes bancos já não são melhores que os fuzis e os canhões”.5
Antes de se perguntarem de qual país sairá a próxima “mega-Bolsa” (de que serve celebrar os sucessos capitalistas de empresas privadas que não param de praticar a arbitragem regulamentária entre países e de servir aos interesses “crematísticos” de seus acionários?), os poderes públicos (regionais, nacionais e inter ou transnacionais) deveriam recorrer aos meios dos quais dispõem apesar de tudo – a regulamentação estritae as pressões políticas – para que as Bolsas cumpram sua função histórica: conter e ordenar o comércio de capital em determinado território.
BOX
A Fifa dita sua lei
Por Olivier Pironet*
Fundada em 1904 na prestigiosa Rua Saint-Honoré, em Paris, depois transferida em 1932 para Zurique, após a crise financeira de 1929, a Fifa se tornou uma multinacional da bola. Apesar do estatuto de associação sem fins lucrativos, a instância máxima do futebol mundial abocanha mais riquezas que certos Estados: em 2010, seus negócios atingiram a soma de US$ 1,3 bilhão.
Ao agir como uma empresa comercial, suas preocupações são antes de tudo financeiras. E ela vende caro seu “carro-chefe”: a Copa do Mundo, cujos promotores se gabam das arrecadações cada vez mais positivas em termos de notoriedade e receita aos países-sede. Mas as condições para sediar uma Copa são as mais draconianas: exoneração fiscal e taxa de valor agregado (TVA) para a instância federal, seus empregadores e prestadores de serviços; liberdade total de exportação e conversão de divisas; acesso gratuito às telecomunicações; suspensão da obrigação de visto durante a competição etc.
A Fifa se reserva igualmente o direito de escolher as propagandas que podem ser exibidas em um raio de 10 quilômetros dos estádios – essa área delimitada constitui, segundo a terminologia da federação, uma “zona de comércio exclusivo”, da qual são banidas as marcas concorrentes de seus parceiros e os vendedores ambulantes. A federação exige, ademais, a instalação de uma “cidade de patrocinadores” de pelo menos 35 mil metros quadrados. Tudo isso implica um custo (exorbitante) de segurança que deve ser inteiramente coberto pelo país organizador.1No Brasil, onde será realizada a edição de 2014, vozes se levantam desde já para denunciar os “mandamentos” da Fifa e a intromissão de seus representantes nos negócios do país. Além de suas exigências habituais, a federação solicita a inscrição de novos delitos no código penal brasileiro, a possibilidade de vender bebidas alcoólicas nos estádios – proibidashá dez anos –, a revisão da lei que garante entradas por metade do preço a maiores de 60 anos e estudantes, assim como a condenação de dois anos de prisão para aquele que atentar contra a imagem dos patrocinadores. São tantas as medidas extras solicitadas, que, segundo a revista semanal IstoÉ, constituiriam um Estado paralelo se rigorosamente aplicadas” e “colocariam em risco a soberania nacional”.2
*Olivier Pironet é jornalista.
1 Durante a Copa do Mundo na África do Sul (2010), a cidade de Pretória teve de desembolsar cerca de US$ 200 milhões somente para assegurar a ordem pública durante um mês; 200 mil policiais foram mobilizados com os impostos dos contribuintes.
2 “A Fifa atacada por Dilma Rousseff”, Courrier International, Paris, 27 out.-2 nov. 2011.
BOX 2:
Politécnicos em estágio de “contatos humanos”
Em estágio de “contatos humanos” em uma fábrica de aço Sacilor, em janeiro de 1974, um politécnico apresentou suas análises sobre “Relações de trabalhadores entre eles mesmos, e dos trabalhadores com seu trabalho”. O responsável da empresa o acusaria de ser manipulado pela Confederação Geral do Trabalho (CGT).
– De forma geral, os antigos operários não são respeitados. São tratados como crianças, como pessoas que devem ser toleradas, que estão ali para ganhar a vida de forma medíocre. Escutei um universitário falar de um senhor em sua presença: “E esse aí, feliz imbecil, passou a vida toda fazendo esse trabalho idiota”.
– O lugar das pessoas em uma empresa tem importância extrema. O trabalho de gabinete parece conferir uma responsabilidade soberana, é uma promoção, e logo essa pessoa é considerada importante. Os capatazessão amáveis, pois são conscientes de sua posição de ex-funcionário, pelo qual agora é responsável.
– O engajamento político de um indivíduo não o afasta do grupo a menos que seja sindicalizado. É considerado um animal curioso: “Ele é cheio de ideias”.
– Por fim, os velhos solteiros (com mais de 30 anos) são malvistos. Chegaram a afirmar que um deles não tinha “bolas, e sim nozes!”.
Anedotas à parte, comento o que diz o operário sobre seu trabalho. No fim das contas, é essa opinião comum que cimenta a unidade e fraternidade dos trabalhadores. Duas frases situam bem o problema: “Nossa vida é uma vida de escravos”; “O acidente é sempre culpa do trabalhador”.
– A escravidão em questão está mal definida. Ele tem a sensação profunda de estar na base da pirâmide. Ninguém ignora que a etiqueta de um trabalhador especializado esconde a de simples mão de obra. Atrás deles, não há ninguém. E talvez esses imigrantes que eles acolhem tão mal tomem suas dores: “Como aceitar trabalhar a vida inteira prostrado [a aposentadoria aqui é aos 65 anos], quando sabemos que um OS [operário especializado] ganha, aos 55-60 anos, 1.800 a 2 mil francos por mês e que em três de cada quatro domingos por mês é obrigado a vir à fábrica?”.
– Não se fala muito sobre segurança na fábrica. Nesse ofício, usamos máquinas extremamente potentes. Os acidentes, menos frequentes que antes, permanecem numerosos e muitas vezes são graves, porque o trabalho é perigoso. Fui testemunha de um drama. Um garoto, de 30 anos, permaneceu um ano no hospital e perdeu parte do movimento de uma perna. Quem é responsável? O trabalhador tem consciência de que não está seguindo as regras de segurança. Mas existe uma cadência a respeitar, que a aplicação estrita dos conselhos comprometeria (parada das máquinas, deslocamentos mais longos de um lugar a outro). Também há a questão do hábito: o operário que, por centenas de vezes, não respeitou uma diretriz de segurança e, um dia, distraído, viu-se nas garras da máquina. Então se trata de certo acordo tácito. Toleram-se as infrações dos subordinados, mas quando acontece um acidente as acusações se transmitem no sentido inverso.
É preciso, finalmente, mencionar o acidente inevitável, quase premeditado: “Como aceitar trabalhar oito horas seguidas, sob um barulho que depois de quatro anos de presença no mesmo lugar nos torna surdos, pelo menos parcialmente?”.
Fonte: Serge Bonnet, L’homme du fer. Mineurs de fer et ouvriers sidérurgistes lorrains[O homem de ferro. Mineiros de ferro e operários siderúrgicos de Lorraine], Presses Universitaires de Nancy/Éditions Serpenoise, Nancy-Metz, 1985.