A conversão do marginal em inimigo: recortes de uma genealogia da violência
Precisamos discutir a segurança pública brasileira a partir da exclusão social e do autoritarismo expresso pelo protagonismo político do Exército durante a República, que culminou na Doutrina de Segurança Nacional.
A palavra “guerra” aparece regularmente nos noticiários e no debate público para definir o problema da violência nas metrópoles brasileiras. Estamos em “guerra”? E que sentidos o uso dessa palavra traduz?
Em primeiro lugar, não estamos em guerra. Porém, também não estamos em paz. Se, ontologicamente, a guerra é distinta da segurança pública, na prática, a violência brasileira as tem aproximado originando um terreno que Derghougassian (2008) denomina como “processo de ‘intermesticação’, cujo resultado consiste na militarização das forças policiais e na ‘policialização’ dos militares”. Assim, a segurança pública brasileira tem sido conduzida e vivida pela sociedade com um tipo de emprego da violência incondizente com a natureza que lhe é própria em condições normais.
Qualquer sociedade precisa ter normatizados claramente os limites da aplicação do uso da força. Os instrumentos do Estado para esta finalidade surgiram e foram preparados “com base em uma determinada concepção acerca do tipo de violência que pode ser empregado em determinada situação” (FINNEMORE, 2004). É a partir do propósito que se pode definir o limite da força, a extensão da resposta.
Compreendidos esses limites, “o emprego da força estatal tendo como objetivo a segurança pública vincula-se à prevenção, investigação e repressão das diferentes formas de criminalidade, em consonância com os marcos jurídicos estabelecidos” (SUCCI JR., 2018, p. 46). Nessa medida, é preciso “garantir o livre exercício da cidadania, dos direitos e deveres de seus cidadãos, além da integridade física e moral tanto dos perpetradores quanto das vítimas da criminalidade” (ibidem, p. 49).
A partir da década de 1980, a agenda de securitização para o combate ao tráfico deu continuidade à DSN dos tempos da Ditadura Militar, que se reorientou do combate ao comunismo para o combate a outro inimigo interno.
Racismo estrutural, exclusão social e a constituição do primeiro inimigo interno
O problema do racismo está diretamente ligado ao da exclusão social no Brasil e à constituição do primeiro inimigo da ordem nacional, isto é, o bandido, o criminoso pobre e negro das periferias. É preciso entender como se dá a conversão desse marginal em inimigo. O primeiro passo desse exame é o legado da escravidão.
A violência brasileira vitima muito mais negros e pobres, duas categorias que, não por acaso, costumam estar juntas. A criminalização da pobreza, ancorada no racismo, aparece escancarada nas estatísticas da violência e do encarceramento que explodiram nas últimas décadas. De onde vem isso?
Após a abolição, as elites brasileiras tentaram implementar um projeto de modernização que não incluía as populações negras. Vejamos as principais leis adotadas para lidar com a questão abolicionista:
1837 – Primeira lei de educação: negros não podem ir à escola.
1850 – Lei das terras: negros não podem ser proprietários.
1871 – Lei do Ventre Livre: negros nascidos de libertos são livres. Mas as condições sociais raramente permitiam que essa liberdade se convertesse em real emancipação.
1885 – Lei do Sexagenário: escravizados se tornavam livres aos 60 anos. Mas eram poucos os que, submetidos aos rigores da escravidão, alcançavam essa faixa etária.
1888 – Abolição, após 388 anos de escravidão.
1890 – Lei dos vadios e capoeiras: aqueles que perambulavam pelas ruas, sem trabalho ou residência comprovada, iriam para cadeia.
1988 – Nasce nossa atual constituição, que garante pela primeira vez o voto aos analfabetos e, pela primeira vez, institui o crime de racismo.
Essas leis faziam parte de um processo de “embranquecimento” promovido pelo Estado, que observou duas dimensões centrais: a primeira, histórica, a partir da reconstrução da narrativa do passado da escravidão, recorrendo-se até mesmo à destruição de documentos e evidências desse passado; e a segunda, na eliminação física dos negros:
Procurou-se, num primeiro momento, e como vimos, defender que o Brasil seria, no futuro, naturalmente mais branco, fosse pela seleção natural, fosse pela entrada de imigrantes brancos. Além de João Batista Lacerda, também Oliveira Vianna, em Populações Meridionais do Brasil e Raça e Assimilação, defenderia que no país a cor branca se imporia, fazendo dessa uma civilização dada ao ‘progresso’. O suposto era que a civilização era branca, e que povos mestiços não apresentavam bons prognósticos nesse sentido. (SCHWARCZ, 2019, p. 42)
Não espanta que hoje os negros sofram com o racismo estrutural e estejam constantemente sob risco maior de perderem suas vidas violentamente. Estatísticas mostram que a maioria das vítimas de homicídio no Brasil é composta por pessoas de pele negra (75,5% segundo dados do Atlas da Violência). E no sistema prisional não é diferente. A realidade observável nas cidades brasileiras sugere um fenômeno racista complexo. A distribuição desigual dos espaços já indica que as relações sociais estão determinadas por uma desigualdade racial estrutural. O problema da segurança pública vem primeiramente dessa estrutura desigual, e só é possível entende-la olhando para a escravidão. Segundo Schwarcz (2019, p. 18), a escravidão:
foi bem mais que um sistema econômico: ela moldou condutas, definiu desigualdades sociais, fez de raça e cor marcadores de diferença fundamentais, ordenou etiquetas de mando e obediência, e criou uma sociedade condicionada pelo paternalismo e por uma hierarquia muito estrita.
E a desigualdade nas grandes cidades brasileiras possui geografia peculiar com condomínios de luxo lado a lado com comunidades pobres. A proximidade a bens de consumo ao mesmo tempo cobiçados e inacessíveis e a forte repressão necessária à manutenção dessa linha divisória criam circunstâncias favoráveis para atividades criminosas prosperarem. É nesse contexto que a frase bandido bom é bandido morto se enuncia.

Bandido bom é bandido morto
A palavra bandido provém do italiano bandito, que significa um homem ‘banido’, ‘posto fora da lei’. A associação entre banditismo e rebelião social construiu, ao longo da história, um arquétipo do bandido como uma ameaça não apenas aos indivíduos, mas ao Estado e à ordem. Durante a Ditadura, a Lei de Segurança Nacional estipulava os crimes comuns e políticos como indissociáveis, e, depois, a associação do narcotráfico ao terrorismo, proveniente da doutrina norte-americana do pós-Guerra Fria, completou o processo de conversão do marginal em bandido.
Segundo Hobsbawm (ibidem, p. 38), o processo de “modernização (vale dizer, a combinação de desenvolvimento econômico, comunicações eficientes e administração pública) priva qualquer banditismo, inclusive o social, das condições nas quais floresce”. Esse ponto é caro à nossa discussão, uma vez que o processo de modernização brasileiro não foi inclusivo com as vítimas da escravidão e seus descendentes, preservando a eles uma ordem à parte da ordem constitucional, um lugar social sujeito aos rigores da lei, porém não às garantias legais. As políticas pós-abolicionistas condenaram as pessoas negras à marginalização, e o patrimonialismo resultou em um Estado cooptado pelas classes poderosas, que precisam justificar seu poder por meio de um processo de securitização constante. Esse processo converteu o bandido em um sujeito excluído de qualquer sentimento de solidariedade, algo muito pior que apenas um fora da lei. O bandido negro das periferias brasileiras, operador do varejo do tráfico de drogas, é um fora da ordem nacional, um inimigo.
Mas, a rigor, o que é inimigo?
No pensamento contratualista hobbesiano (1973), o delinquente deve ser excluído da sociedade, mas respeitado enquanto cidadão, a menos que cometa alta traição, perdendo o direito à vida que lhe foi garantido pelo soberano no contrato, já que o nega. Assim, o criminoso é o infrator da lei e tem sua cidadania preservada. Não é uma ameaça ao Estado, à sua soberania e à ordem imposta, está dentro do contrato social, e pode ser reinserido no convívio social após o cumprimento da pena. O inimigo, por outro lado, é uma ameaça ao Estado e à ordem que este sustenta, deve perder o status de cidadão e ser eliminado. Nesse sentido, não é tratado como indivíduo dotado de direitos, mas como ameaça permanente. É essa ameaça de conotação política que justifica o emprego da violência em escala militarizada – guerra.
A violência do Estado contra as periferias constitui, portanto, um movimento interno, nativo à formação social do Brasil. Essa violência socialmente dirigida não é normativa: não há nenhuma ordem consubstanciada no nível institucional que a justifique hoje em dia. Em tese, a polícia age com indistinção em relação à cor e à condição socioeconômica. No entanto, o exame das condições empíricas leva à outra conclusão: existe uma violência dirigida pelo Estado brasileiro contra as populações periféricas muito antes da existência de grupos armados ocuparem esses territórios e oferecerem o pretexto para a repressão violenta.
Segundo Holanda (1994), a dignidade e o status na sociedade portuguesa estavam associados às profissões liberais, ligadas ao pensamento, às artes, ao intelecto. Os trabalhos manuais eram tratados com desprezo e associados à escravidão. Uma vez que a condição de “inimigo” se relaciona atavicamente com a desumanização do sujeito, esta é a razão central da associação entre a população mais pobre e negra com a condição de alvo do Estado: sua função servil, herdeira da condição do negro escravizado, cujo direito à vida está condicionado à sua utilidade física, propriedade de seu senhor. Nesta ordem, a vida de um escravizado (e dos seus descendentes marginalizados) não tem valor em si.
Doutrina de Segurança Nacional e (in)segurança pública
Segundo Carvalho (2005, p. 134), a DSN previa “a tutela sobre as forças políticas civis…”. Durante a ditadura militar, a segurança pública esteve informada pela DSN. Um ordenamento cívico orientado pela busca da ordem a partir da ideia de segurança absoluta é antagônico à ordem democrática, cujas constituições se fundamentam na garantia a liberdades individuais que impõem limites ao Estado. A segurança absoluta que dá sentido à DSN protege o Estado e seus componentes. Paralelamente, a DSN se torna uma ameaça a todo o restante da sociedade. Com efeito, a DSN prescreve um modelo de ordem avesso à democracia, na medida em que se sustenta na pacificação por vias autoritárias das contradições políticas e sociais inerentes a qualquer sociedade complexa, pós-industrial.
Durante a Constituinte, o lobby militar enfatizou a diferença entre “segurança nacional” e “segurança pública”, sendo esta limitada àquela. A segurança nacional seria ampla e daria conta de cuidar de todos os interesses e vontades nacionais, definidos nos “objetivos nacionais”, conceito vago que suscitou discussões. Márcio Thomas Bastos, então presidente da OAB, argumentou que a ideologia de segurança nacional defendida pelos militares era inalienável do período autoritário, sendo incompatível com a ordem democrática. Ele defendeu que é preciso reconhecer que “a constituição não é outra coisa senão um pacto de convivência da nação e da sociedade”, que “vivem sob o signo do conflito e da contradição, do jogo de interesse e do conflito entre capital e trabalho, entre o professor e o aluno, entre o homem da livre iniciativa e o homem do trabalho público” (BACKES, 2009, p. 266). Em outras palavras, a ordem almejada pelos militares tratava com desprezo as contradições e conflitos inerentes a uma nação complexa e diversificada.
Assim, a DSN traduz uma preocupação maior com a defesa dos interesses do Estado do que da cidadania, produzindo um déficit democrático nas instituições policiais, e a manutenção das polícias militarizadas significou a continuidade da DSN no campo da segurança pública. A Polícia Civil, ainda que não militarizada no sentido estrito, também surgiu dentro da concepção de ordem proposta pela DSN, seguindo parâmetros alinhados com as políticas autoritárias. Esse desenho institucional gera desafios diários para a consolidação da democracia, sendo, talvez, algo pior: uma semente do autoritarismo. A DSN foi o resultado da emergência da política do Exército, como certa vez acentuou Góes Monteiro, sintoma de uma cultura política autoritária, e foi responsável pela consolidação dos valores militares não apenas nos aparelhos de repressão, mas também no campo da ordem pública, consolidando uma cultura violenta que legitima uma situação de confronto incompatível com o Estado Democrático de Direito.
Considerações finais
A questão social brasileira, tratada como “caso de polícia” pelo Estado, está na base do problema da violência que se alimenta, em primeiro lugar, dos legados da formação social do Brasil. Em segundo lugar, a violência é produto da Doutrina de Segurança Nacional. A partir da “ameaça comunista”, ela normatizou o combate ao inimigo interno, também voltado para o controle das populações marginalizadas desde sempre encaradas como ameaça à ordem, formatando o Estado institucionalmente para o combate a setores da própria população. É fácil, como vimos, saber quem são eles.
Portanto, os desafios à resolução do problema da violência no Brasil são aqueles mesmos dispostos no caminho da democracia brasileira, e fundamentalmente se traduzem no problema da exclusão social que marca toda a modernização brasileira, desde 1888. A abolição foi uma demanda da modernidade, mas as elites brasileiras mostraram-se pouco dispostas a todas as dimensões desse processo. Podemos dizer, sem medo de errar, que a disposição para abolir a instituição da escravidão, que ao final do século XIX era anacrônica economicamente, não foi devidamente acompanhada pela mesma disposição para libertar os escravizados. Estes e seus descendentes foram assimilados na condição marginal que viabilizou a manutenção de relações sociais e trabalhistas baseadas na subordinação e desvalorização do trabalho braçal, condições lastreadas na instituição da escravidão, complementadas pela forte repressão do aparelho armado estatal. Essa é a pedra angular da tragédia nacional e o fundamento da desigualdade que alimenta um cotidiano violento que produz estatísticas à altura de países formalmente em guerra.
Se podemos falar em uma guerra interna às fronteiras do Brasil, é aquela promovida pelo Estado – e seus “donos”, o “patronato político brasileiro” tão eloquentemente descrito por Raymundo Faoro – contra o povo pobre e negro brasileiro. A contenção desses setores marginalizados que habitam a base da pirâmide sempre foi política de Estado, e sua inclusão na ordem obedece a critérios de exclusão dos direitos mais fundamentais.
Portanto, embora não seja exatamente uma novidade, é preciso afirmar sempre e cada vez mais a necessidade de promover a inclusão do povo brasileiro na polis brasileira. “É preciso investir no povo” diziam Brizola e Darcy, décadas atrás. Hoje, o Brasil vive uma “tempestade perfeita” com a combinação de suas estruturas oligárquicas, a militarização crescente da segurança pública – inclusive com a volta do protagonismo político dos militares – e as rédeas impiedosas do mercado. É preciso resgatar a coragem e a disposição para abrir as portas do Estado ao povo e projetar uma nação que possa se realizar mais horizontalmente. Um projeto político civil que afaste as ambições políticas do estamento militar e seja definitivamente inclusivo. Não será fácil. Nunca foi. Mas não há caminho alternativo para superar a barbárie com a qual vamos, dia a dia, perigosamente nos acostumando.
João Rafael G. de Souza Morais é professor de Relações Internacionais e doutor em Ciência Política (IESP-UERJ).
REFERÊNCIAS
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