A descriminalização da maconha pelo STF ainda não é uma realidade brasileira
Em um país sabidamente racista, com forças de segurança treinadas para reprimir violentamente, continuamos deixando cidadãos vulneráveis
Em junho deste ano o Supremo Tribunal Federal (STF) encerrou o debate, que se arrastava há 9 anos, sobre a constitucionalidade do porte de drogas para uso pessoal, previsto no artigo 28 da Lei de Drogas (11.343/06). A discussão jurídica era: se a Constituição prevê o respeito à intimidade e vida privada de pessoa, caberia ao Estado punir algo que pratica um dano contra si mesmo, sem vítimas?
Em 2015, os votos iniciais, do Ministro-relator Gilmar Mendes, Edson Fachin, e Luís Roberto Barroso deram a tônica pela necessidade de excluir o artigo 28 por sua inconstitucionalidade. Eis que surge a primeira encruzilhada: todas as drogas ou apenas a maconha, uma vez que o texto da Lei não diferencia substâncias.
Finalmente entendeu-se a necessidade de retirar da esfera penal a repressão a quem pratica o ainda ilícito ato de portar maconha para uso próprio, após votos, majoritariamente embasados em estudos sobre a realidade do superencarceramento de pessoas jovens, negras, pobres e de baixa escolaridade, que, sem oportunidade sociais, são empurrados na moenda da violência decorrente da proibição, o que gera disputa de mercado através do uso de armas de fogo e ações violentas.
Também foi discutido o visível fortalecimento e a infiltração das organizações criminosas que dominam a indústria da produção e distribuição de drogas como maconha, cocaína e crack nas instituições do Estado e, sobretudo, mas não só, nos territórios mais pobres e com menos acesso à direitos básicos.
Na mesma lógica aplicada quando, em 2011, reconheceu que o sistema prisional do país é um “estado de coisas inconstitucional” (ADPF 347), o STF reafirma o caráter racista do sistema de justiça do país na questão das drogas.
Ficou firmado que “quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal” (art. 28), até 40g de maconha ou 6 plantas fêmeas, comete apenas ilícito administrativo, não mais crime.
Após anos de mobilização social de usuários, Marchas da Maconha, pacientes e associações medicinais, organizações dos movimentos sociais antiproibicionistas, a tese sobre a falta de critérios objetivos para o estado vigiar e punir usuários, foi vencedora.
Inicialmente, esta decisão pode desencarcerar cerca de 20 mil pessoas, ou 2-3% dos milhares que estão presas e enquadradas no mesmo critério, através de revisão criminal. Já há um projeto de lei que propõe anistiar imediatamente todas estas pessoas.
Após o apogeu da vitória, apareceram as dúvidas. Ainda que não seja mais crime, quem vai “fiscalizar” continua sendo a polícia e o ilícito processado ainda nos Juizados Especiais Criminais, ao menos provisoriamente, até que o Conselho Nacional de Justiça ou o Congresso trate da matéria.
A punição administrativa, equivalente à multa de trânsito, “será a perda da droga que estiver portando”, podendo “receber advertência sobre os efeitos das drogas” (art. 28, I) ou “medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo” (art. 28, II), depois de ter passado pela delegacia.
Ainda estão presentes os critérios subjetivos, reconhecidos pelos Ministros do STF, que possibilitam “baculejos” ou enquadros aleatórios pela autoridade policial, ao decidir abordar qualquer pessoa, tendo em conta, “local e as condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente” (art. 28, §2º).
Em um país sabidamente racista, com forças de segurança treinadas para reprimir violentamente, continuamos deixando cidadãos vulneráveis. Além do fato de o policial poder entender pelo tráfico se a droga tiver embalada de forma suspeita, ou se forem encontradas anotações ou algo que evidencie o mero intuito de tráfico, não necessariamente a venda.
Preocupante, ainda, é a possibilidade do agente vasculhar celular de usuários, que a jurisprudência dos Tribunais superiores hoje dizem ato ilegal, ou continuar entrando em domicílios para apuração de supostas denúncias.
Ora, é exatamente este o problema, a discricionariedade dos agentes policiais para decidir sobre o destino de pessoas que usam drogas, o que o próprio STF reconhece que é absurdo, podendo criar uma “porta giratória” nos presídios.
Após dois meses da conclusão do julgamento, a decisão ainda não está valendo, pois não foi publicada oficialmente. Mas já há casos[1] em que juízes e desembargadores adotaram estes critérios para resolver processos e o próprio Conselho Nacional de Justiça tem se debruçado sobre a proposta de regulamentação dos procedimentos aos quais as forças de segurança deverão atuar.
Ainda assim, é preciso que a sociedade brasileira continue mobilizada e atenta aos problemas que podem vir, mas sempre batalhando pelo fim da guerra “às drogas”, que persegue jovens pretos e pobres, com a desculpa de reprimir comércio, produção e consumo de drogas recentemente (em uma perspectiva social e histórica) tornadas ilícitas.
Ítalo Coelho de Alencar é advogado especialista em Lei de Drogas e membro da Rede Reforma.
[1] https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2024/08/12/juizes-comecam-a-aplicar-decisao-do-stf-sobre-maconha-e-beneficiam-reus-mas-ha-divergencias.ghtml