A dialética urbana: Os desafios de Guilherme Boulos na complexa paisagem política de São Paulo
O sucesso de Boulos dependerá não apenas de sua capacidade de conquistar votos em diferentes regiões da cidade, mas também de sua habilidade em traduzir esse apoio eleitoral em força política para implementar seu programa de governo
A análise dos dados eleitorais de São Paulo revela um cenário complexo e desafiador para Guilherme Boulos e sua potencial candidatura popular. O mapa do voto na cidade expõe padrões geográficos e socioeconômicos que demandarão estratégias diversificadas para uma campanha vitoriosa. Como observa Limongi (2020, p. 45), “a fragmentação socioespacial de São Paulo se reflete diretamente no comportamento eleitoral, criando bolsões de apoio e resistência para diferentes perfis de candidatos”.
Nas regiões periféricas e de menor renda, Boulos demonstra força considerável. Em Cidade Tiradentes, por exemplo, ele obteve 36,50% dos votos, superando Nunes (28,55%) e Marçal (24,70%). Padrão semelhante se repete em Capão Redondo, com 34,16% para Boulos, contra 27,13% de Marçal e 25,86% de Nunes. Esses números refletem uma conexão sólida com as camadas populares, alinhada à sua trajetória política. Almeida (2021, p. 89) argumenta que “o enraizamento de candidaturas progressistas em áreas periféricas é crucial, mas insuficiente para garantir vitórias em pleitos municipais”.
Contudo, para vencer as eleições, Boulos precisará expandir seu apoio para áreas de classe média e alta. Em Pinheiros, seu desempenho cai para 36,08%, ainda à frente, mas com uma margem menor sobre Nunes (26,80%) e Marçal (16,99%). A cientista política Márcia Ribeiro Dias observa que “candidaturas de esquerda em grandes metrópoles enfrentam o desafio de conciliar as demandas de grupos sociais heterogêneos, muitas vezes com interesses conflitantes” (Dias 2020, p. 87).
A polarização política é outro obstáculo evidente. Em diversos distritos, como Itaim Paulista, a disputa é acirrada: Boulos (29,84%), Marçal (29,80%), e Nunes (29,04%). Para se tornar uma alternativa viável, a candidatura popular terá que construir pontes e ampliar alianças. André Singer argumenta que “o sucesso eleitoral da esquerda em contextos polarizados depende de sua capacidade de formar coalizões amplas sem abrir mão de sua identidade programática” (Singer 2021, p. 145).
As áreas intermediárias da cidade surgem como cruciais. Em São Miguel Paulista, por exemplo, Marçal lidera com 31,15%, seguido de perto por Nunes (28,63%) e Boulos (28,29%). Essas regiões, que mesclam perfis socioeconômicos variados, podem ser decisivas em uma eleição apertada. A capacidade de Boulos de conquistar votos nessas áreas será fundamental para suas chances de vitória. Santos (2022, p. 112) destaca que “as zonas de transição urbana são os verdadeiros campos de batalha eleitoral nas metrópoles brasileiras”.
É importante notar que em alguns distritos, como Brasilândia e Capela do Socorro, Nunes lidera com 31,93% e 34,12% respectivamente, indicando a força da atual administração em certas áreas. Marcelo Burgos alerta que “candidaturas desafiantes precisam superar não apenas preferências ideológicas, mas também estruturas de poder local consolidadas” (Burgos 2022, p. 203).
A análise geográfica revela ainda que Boulos enfrenta desafios em áreas como Vila Mariana. Nesse distrito, ele obteve 30,56% dos votos, ficando à frente de Nunes (28,51%) e Marçal (23,05%). Esse resultado, embora positivo, sugere a necessidade de estratégias específicas para dialogar com o eleitorado de classe média alta, típico dessa região. Em contrapartida, Boulos mantém um desempenho sólido em distritos como Bela Vista, onde alcançou 43,66% dos votos, seu melhor resultado entre os distritos analisados. Essa disparidade de performance entre diferentes áreas da cidade ressalta a importância de uma abordagem eleitoral geograficamente diversificada e adaptada às particularidades socioeconômicas de cada região.
O desafio para Boulos será manter essa força nas áreas onde já tem bom desempenho, como Guaianases (32,58%) e Jardim Helena (30,45%), enquanto busca ampliar seu apoio em regiões onde sua performance é mais modesta. Em distritos como Mooca, onde Marçal lidera com 32,95%, seguido por Nunes com 30,42% e Boulos com apenas 22,94%, fica evidente a necessidade de uma estratégia mais eficaz para conquistar o eleitorado de perfil mais conservador. Oliveira (2023, p. 78) argumenta que “a conquista de eleitores em redutos tradicionalmente conservadores exige uma recalibração discursiva sem perda de autenticidade programática”.
A distribuição geográfica dos votos também indica a importância de Boulos fortalecer sua presença em áreas como Santana, onde Marçal obteve 30,82%, Nunes 30,53%, e Boulos ficou em terceiro com 23,86%. A construção de uma coalizão capaz de representar a diversidade da maior metrópole do país, superando as divisões territoriais evidenciadas pelos números, será o grande desafio para uma vitória eleitoral.
Além dos desafios eleitorais, é crucial considerar os obstáculos que Boulos enfrentaria na Câmara Municipal em caso de vitória. A composição atual do legislativo municipal reflete uma diversidade ideológica significativa, com uma presença expressiva de vereadores alinhados a posições de centro e direita. Essa configuração representaria um obstáculo considerável para a implementação de políticas mais progressistas defendidas por Boulos. Rodrigues (2021, p. 156) observa que “a governabilidade em cenários de fragmentação partidária exige uma capacidade de articulação política que vai além da mera negociação programática”.
Questões críticas como habitação, transporte público e políticas sociais, que são centrais na plataforma de Boulos, provavelmente enfrentariam resistência de setores mais conservadores da Câmara. O desafio seria encontrar pontos de convergência e construir alianças temáticas, mesmo com vereadores de campos ideológicos distintos, para viabilizar a governabilidade e a execução de seu programa de governo. Neste sentido, Ferreira (2022, p. 201) argumenta que “a construção de maiorias legislativas em torno de pautas progressistas requer uma sofisticada engenharia política e um constante diálogo com a sociedade civil”.
A capacidade de Boulos de mobilizar apoio popular e pressão social seria fundamental para fortalecer sua posição nas negociações com o Legislativo. A articulação com movimentos sociais, sindicatos e organizações da sociedade civil poderia ser um diferencial para ampliar sua base de sustentação política além dos limites institucionais, criando um contrapeso à eventual oposição na Câmara Municipal. Costa (2023, p. 134) destaca que “a governabilidade de administrações progressistas em grandes cidades depende crucialmente da manutenção de uma base social ativa e mobilizada”.
O cenário político-eleitoral de São Paulo também reflete tendências mais amplas observadas em outras metrópoles brasileiras. Mendes (2022, p. 67) aponta que “a fragmentação do voto e a polarização ideológica são fenômenos que se retroalimentam, criando um ambiente de alta volatilidade eleitoral”. Esta realidade impõe desafios adicionais para candidaturas que buscam construir maiorias estáveis.
A trajetória política de Boulos, marcada por sua atuação em movimentos sociais, pode ser tanto um trunfo quanto um desafio. Silva (2021, p. 223) argumenta que “a transição de lideranças de movimentos sociais para cargos executivos exige uma adaptação discursiva e prática que nem sempre é bem-sucedida”. A capacidade de Boulos de traduzir sua experiência ativista em uma proposta de governo viável e atraente para um eleitorado diverso será crucial.
A questão da segurança pública, sempre sensível em eleições municipais, também demandará atenção especial da campanha de Boulos. Em distritos como Jardim Ângela, onde Nunes obteve 35,77% dos votos contra 31,65% de Boulos, a percepção sobre políticas de segurança pode ter sido um fator decisivo. Soares (2023, p. 178) observa que “candidaturas progressistas precisam apresentar propostas concretas e inovadoras para a segurança urbana, superando o estigma de serem ‘brandas’ com o crime”.
Por fim, a dinâmica da comunicação política em uma metrópole como São Paulo impõe desafios próprios. A fragmentação da paisagem midiática e o papel crescente das redes sociais demandam estratégias de comunicação sofisticadas e adaptativas. Gomes (2022, p. 290) argumenta que “o sucesso eleitoral em grandes centros urbanos depende cada vez mais da capacidade de navegar eficazmente entre mídias tradicionais e digitais, adaptando mensagens para públicos diversos sem perder coerência programática”.
Em suma, o cenário eleitoral de São Paulo apresenta uma complexa teia de desafios para Guilherme Boulos, refletindo a intrincada história econômica e social da metrópole. Sua estratégia precisará equilibrar o forte apoio nas periferias, áreas historicamente marginalizadas pelo processo de industrialização e urbanização acelerada do século XX, com uma ampliação do diálogo com setores médios, onde seu desempenho é mais modesto. Como observa Caldeira (2000, p. 211), “a segregação espacial em São Paulo é um produto direto das desigualdades econômicas enraizadas em seu desenvolvimento industrial e financeiro”.
A perspectiva de governabilidade em uma eventual vitória demandará habilidades de negociação e articulação política para navegar o terreno diverso e muitas vezes hostil da Câmara Municipal. Este desafio se insere em um contexto mais amplo de transformações nas relações entre Estado e sociedade civil no Brasil pós-redemocratização. Dagnino (2002, p.163) argumenta que “a participação de movimentos sociais na política institucional trouxe novos desafios para a governança democrática, exigindo a reinvenção de práticas políticas tradicionais”.
O sucesso de Boulos dependerá não apenas de sua capacidade de conquistar votos em diferentes regiões da cidade, mas também de sua habilidade em traduzir esse apoio eleitoral em força política para implementar seu programa de governo. Este processo se insere em uma longa tradição de lutas sociais urbanas em São Paulo, desde os movimentos operários do início do século XX até as mobilizações por moradia das últimas décadas. Como ressalta Kowarick (2000, p. 78), “a construção da cidadania em São Paulo sempre esteve intimamente ligada às disputas pelo direito à cidade e pela democratização do espaço urbano”. Assim, a candidatura de Boulos representa não apenas um projeto político imediato, mas também um capítulo na longa história de conflitos e negociações que moldaram a maior metrópole brasileira.
Erik Chiconelli Gomes é Pós-Doutorando – FDUSP. Doutor e Mestre em História Econômica na Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Economia do Trabalho (Unicamp) e Direito do Trabalho (USP). Bacharel em Ciências Sociais, Direito e História (USP). Coordenador Acadêmico e do Grupo de Pesquisa e Estudos na Escola Superior de Advocacia (ESA/OABSP).
Referências:
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Burgos, Marcelo. 2022. Cidade, Democracia e Justiça Social. Rio de Janeiro: Editora UFRJ.
Caldeira, Teresa Pires do Rio. 2000. Cidade de Muros: Crime, Segregação e Cidadania em São Paulo. São Paulo: Editora 34/Edusp.
Costa, Maria Helena. 2023. Governabilidade e Movimentos Sociais nas Metrópoles. Belo Horizonte: Editora UFMG.
Dagnino, Evelina. 2002. “Sociedade Civil, Espaços Públicos e a Construção Democrática no Brasil: Limites e Possibilidades“. In Sociedade Civil e Espaços Públicos no Brasil, organizado por Evelina Dagnino, 279-301. São Paulo: Paz e Terra.
Dias, Márcia Ribeiro. 2020. “Desafios da Esquerda nas Metrópoles Brasileiras.” Revista Brasileira de Ciência Política 32: 79-102.
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Kowarick, Lúcio. 2000. Escritos Urbanos. São Paulo: Editora 34.
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