A era das sindemias
Tanto as doenças crônicas não transmissíveis quanto a Covid-19 atingem com maior intensidade os mais pobres, ampliando ainda mais o enorme fosso da desigualdade social do país
Quando a humanidade imaginava ter, finalmente, avançado no enfrentamento às doenças transmissíveis, nos surpreendemos com o impacto da Covid-19. Só no Brasil, já passa de 600 mil o número de vidas perdidas. A situação se torna ainda mais grave quando lembramos que a multiplicação dos casos de contaminação pelo coronavírus acontece enquanto enfrentamos uma outra pandemia, esta muito mais silenciosa: a das doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs), principal causa de morte e incapacidade no mundo. Segundo a Organização Mundial da Saúde, as DCNTs, sigla que ainda diz pouco para uma imensa maioria, incluem cinco grupos de doença de maior magnitude, como as cardiovasculares, respiratórias crônicas, câncer, diabetes e condições mentais e neurológicas.
São também cinco os fatores de risco que atuam para o desenvolvimento das DCNTs, a alimentação não adequada, o tabagismo, o uso nocivo de álcool, a inatividade física e a poluição do ar, e estão diretamente ligados ao agravamento da Covid-19. Essa simultaneidade de pandemias aumenta o risco de morte, compromete a qualidade de vida da população e leva ao colapso os serviços de saúde. Diante de tal contingência, se faz imperioso pensar em saídas para desafogar o sistema e gerar recursos para o Sistema Único de Saúde (SUS).
Quem acompanha as estatísticas tem conhecimento que, há décadas, a imensa maioria das mortes (cerca de 72%) e dos casos de adoecimento se associam a agravos. E ainda muito antes de se ouvir falar em SARS-Cov-2, a maior parte da verba destinada ao setor de saúde era absorvida no tratamento das vítimas de DCNTs. Um terço das vítimas fatais destas doenças tem menos de 60 anos e a maior parte dessas mortes prematuras (85%) acontece em países de baixa e média renda, fenômeno que repercute negativamente na realidade socioeconômica desses países e agrava a desigualdade global.
No Brasil, sem dúvida, vivemos esta situação de pandemias em sincronia. Tanto as DCNTs quanto a Covid-19 atingem com maior intensidade os mais pobres, ampliando o enorme fosso da desigualdade social do país. Esse encontro de pandemias, por aqui, vem se desdobrando numa catástrofe humanitária sem precedentes. À ameaça do vírus somam-se o negacionismo, até mesmo a disseminação de notícias falsas, a omissão e a incompetência do governo federal, que deveria liderar iniciativas para salvar vidas e reduzir o sofrimento da população. Mas não vamos tratar deste tema aqui, já que daria um artigo à parte, que não se esgotaria, e optamos pela abordagem dos fatores de risco e as possíveis soluções que se apresentam.
Nesta sincronicidade de pandemias, é possível observar diversos pontos de intersecção e dizer que a disseminação do coronavírus aumenta o drama de quem sofre com as DCNTs.
Não há também qualquer dúvida de que as duas pandemias compartilham importantes fatores de risco. Dados do Ministério da Saúde revelam que sete a cada dez óbitos por Covid-19 são de pessoas com alguma doença crônica prévia. Como exemplo, podemos citar pacientes com condições diretamente relacionadas a padrões alimentares inadequados, como o alto consumo de ultraprocessados, que podem levar ao sobrepeso e à obesidade. A má nutrição, que pode incluir a desnutrição e a obesidade, pode refletir em desfechos mais graves na fisiopatologia da infecção e das respostas sistêmicas causadas pela Covid-19.
As autoridades da área de saúde se mantêm atentas aos índices de obesidade e sobrepeso, que praticamente dobram o risco de morte. Frequentemente relacionado ao ganho de peso, o sedentarismo vem ganhando destaque entre os fatores de risco para Covid-19. Sabe-se que a prática regular de atividades físicas reduz o risco de inflamação sistêmica. Por conta disso, surgem hipóteses de que indivíduos que adotam um estilo de vida mais ativo seriam favorecidos com melhor prognóstico no caso de infecção pulmonar pela Covid-19.
Estudos também vêm alertando que fumar dobra as chances de agravamento num quadro de Covid-19, por conta da associação com o surgimento de doenças respiratórias e cardiovasculares, duas condições que diminuem significativamente as chances de o paciente enfrentar agravos decorrentes da infecção por coronavírus.
O consumo de álcool, da mesma forma, pode complicar os quadros de contaminação. As bebidas alcóolicas se enquadram na lista dos imunossupressores, substâncias que reduzem a capacidade do organismo de enfrentar processos infecciosos de qualquer natureza. No esforço de tentar controlar a situação, a OMS lançou um apelo aos governos para que adotassem medidas que limitassem o consumo de bebidas alcoólicas durante a pandemia.
A OMS se mantém alerta, ainda, em relação ao impacto da poluição e aos efeitos das mudanças climáticas. Estudo financiado pela organização, em 2018, associa à qualidade do ar 24% das mortes por doenças cardíacas, 25% por acidentes vasculares cerebrais, 43% por doença pulmonar obstrutiva crônica e 29% por câncer de pulmão. Outras evidências são capazes de destacar que a poluição pode contribuir para diversos tipos de câncer e, ainda, para diabetes.
Pesquisa publicada na Cardiovascular Research reforça a atenção que devemos dar para o impacto das condições ambientais. O estudo contempla casos de morte em todo o mundo e considera que 15% das ocorrências podem estar associadas à poluição. O trabalho destaca ainda a relação entre a qualidade do ar e o agravamento das comorbidades, que levariam a casos letais.
Por tudo isso, sabemos que os efeitos desta que é a maior crise sanitária da nossa história recente devem perdurar por muitos anos depois da imunização da maior parte da população e do controle da circulação do vírus em todo o mundo.
Não estamos falando apenas da possibilidade de surgirem novas variantes ou mesmo novos vírus, especialmente relacionados ao nosso modo de produção atual, que devasta o meio ambiente e consome nossos recursos naturais como se fossem infinitos. Ao mesmo tempo em que devemos nos manter alertas em relação à possibilidade de outros surtos de contaminação, há que se dar atenção às sequelas da Covid-19. Na área da saúde pública, especula-se que os desdobramentos clínicos da doença devem mobilizar recursos por, pelo menos, uma década. Entre os problemas já observados, destacam-se quadros de distúrbios neurológicos, psicológicos, pulmonares, imunológicos, renais, cardíacos ou motores.
Por conta da sobrecarga dos serviços e do receio de contaminação, houve uma queda brusca tanto no número de diagnósticos quanto nos tratamentos de todo tipo de problema de saúde, no ano passado e este ano. Os atendimentos para exames, consultas de rotina e cirurgias eletivas caíram cerca de 70%, e sabemos que os pacientes com DCNTs respondem por parte considerável dessa estatística. O desafio principal é entender e encontrar caminhos para que o SUS dê conta de tanta demanda, já que o sistema vem sofrendo há tempos um processo sistemático de subfinanciamento, seriamente agravado pelo congelamento de gastos em saúde por 20 anos através da Emenda Constitucional 95, de 2016.
Mas se olharmos para outro lado, por mais que a gravidade da situação exija cuidado e responsabilidade de todos os setores da sociedade, um certo otimismo, sem tirar os pés do chão, nos permite até enxergar uma luz. O avanço da vacinação e do próprio conhecimento a respeito da doença deve arrefecer o quadro dramático que ainda atravessamos e pode nos dar um alívio.
Pensando nas possibilidades de recursos para evitar doenças, desafogar o SUS e, ainda, arrecadar recursos para a área de saúde, acreditamos que o melhor caminho seja a implantação de políticas públicas preventivas, evitando o adoecimento da população. Em outras palavras, a chave está na prevenção aos fatores de risco.
Em vez de simplesmente cobrar mudanças de hábito isoladas focadas no indivíduo, como emagrecer, fazer exercícios ou parar de fumar, precisamos de mecanismos que ajudem as pessoas a terem mais saúde. Como dizemos em nosso slogan, ambientes saudáveis promovem escolhas saudáveis. Entre as iniciativas testadas, se destacam medidas regulatórias e tributárias e o caso do tabagismo é um exemplo mundial. O aumento de preços e impostos de produtos de tabaco, os ambientes livres de fumo, a restrição da propaganda, patrocínio e promoção, o uso de advertências para informar a população sobre seus riscos, entre outras, causou a queda da prevalência de fumantes no país, passando de 34,8%, em 1989, para 12,6%, em 2019.
A política brasileira de controle do tabagismo é reconhecida mundialmente e premiada, embora sofra ameaças de reveses e ainda precise avançar. A lógica da tributação do tabaco para desestimular o consumo, com o aumento do preço final do produto, vem sendo usado em diversos países também para ultraprocessados e para o álcool, recomendada pela OMS e pelo Banco Mundial, como a política pública mais efetiva para redução do consumo desses produtos.
No caso das bebidas açucaradas, categoria que inclui refrigerantes, refrescos, sucos de caixinha, chás prontos, bebidas energéticas, esportivas e lácteas, mais de 50 territórios pelo mundo adotam essa política pública, entre eles Colômbia, Peru, Equador, Chile, México, Portugal, Inglaterra, França, e algumas regiões dos Estados Unidos como as cidades de Filadélfia, São Francisco e Seattle. O Conselho Nacional de Saúde (CNS) e o Instituto Nacional de Câncer (INCA) também apoiam sua implementação como forma de reduzir o consumo e prevenir as DCNTs. As evidências têm mostrado que a medida ajuda na conscientização da população, que passa a fazer escolhas alimentares mais saudáveis, e ainda fornece uma nova fonte de recursos, que pode ser usada para financiar programas e serviços sociais e de saúde pública, potencializando ainda mais os ganhos para a população.
A discussão da reforma tributária, em pauta no Congresso Nacional, representa a oportunidade de se estabelecer um sistema de arrecadação solidário, saudável e sustentável, que corrija injustiças ancestrais, que só aumentam com a Covid-19 e com o desmonte sistemático de políticas públicas.
Não faz sentido, por exemplo, que o governo continue concedendo benefícios fiscais à indústria de refrigerante, que deixa de arrecadar R$ 3,8 bilhões ao ano, de acordo com dados da Receita Federal, de 2016. O consumo de bebidas açucaradas responde pela morte de quase 13 mil pessoas por ano, segundo pesquisa do Instituto de Efectividad Clínica y Sanitária, além de causar obesidade e sobrepeso em quase 3 milhões de pessoas, entre adultos e crianças.
E embora o meio ambiente limpo, saudável e sustentável seja um direito humano fundamental, reconhecido pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, a questão climática não está prevista em nossa Constituição, promulgada quatro anos antes da Convenção sobre Mudança Climática, assinada na Rio-92. Assim, mais um passo rumo à luz no fim do túnel é a inserção da segurança climática em nossa Carta, de forma que o Estado brasileiro, independente do governo vigente, trabalhe para mitigar o risco climático.
O alerta feito pelo editor-chefe da revista científica The Lancet, Richard Horton, tem uma precisão cirúrgica: “a consequência mais importante de se perceber a Covid-19 como uma sindemia é ressaltar suas origens sociais. A vulnerabilidade de pessoas mais velhas, da população negra e asiática ou de comunidades étnicas, e os trabalhadores mais pobres, com menos proteção, que traz a percepção de que não importa o quanto efetivo seja um tratamento ou protetora a vacina, a busca por uma solução puramente biomédica irá falhar. A menos que governos concebam políticas e programas para reverter as profundas disparidades, nossas sociedades não estarão jamais seguras”.
Maus hábitos alimentares, novos produtos de tabaco que não têm comprovação de apresentar menos riscos à saúde, consumo de álcool, inatividade física, exposição à poluição do ar, crise climática, tudo isso num cenário de profunda injustiça social. Tantas evidências comprovam que a mitigação dos efeitos das pandemias de Covid-19, de DCNTs e também do clima depende da revisão de questões estruturais.
O futuro que sonhamos, a tal luz no fim do túnel que queremos e que precisamos vislumbrar o mais breve possível, só virá com a supressão da lógica do lucro a qualquer custo, dessa dinâmica que nos trouxe a um presente profundamente desigual e adoecido.
Paula Johns é socióloga e diretora-geral da ACT Promoção da Saúde.
Mônica Andreis é psicóloga e diretora-executiva da ACT Promoção da Saúde.
Marcello Baird é cientista político e coordenador de advocacy da ACT Promoção da Saúde.
Laura Cury é historiadora e assessora internacional da ACT Promoção da Saúde.