A evolução de genes anticapitalistas
Criam-se novos termos para alegar estafa mental – como a Síndrome de Burnout. Começam a aparecer em nosso dia a dia inúmeras pessoas diagnosticadas com depressão, ansiedade, transtorno do espectro autista (TEA), TDAH. Nomes e letras novas, que seguem camuflando um velho problema que causa tudo isso, mas que não se atrevem a falar: a exploração capitalista
Em outros momentos já abordei questões biológicas e as implicações que as mazelas do capitalismo acarretam na saúde das pessoas e em todo o ambiente. E esses dias li um interessante artigo de Laura Basu1 que aborda o TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade) como um fator anticapitalista. Tendo como base esse texto, podemos fazer novos e interessantes apontamentos com uma visão biológica.
Segundo a Associação Brasileira do Déficit de Atenção, o TDAH é um transtorno neurobiológico, de causas genéticas que aparece na infância e pode acompanhar o indivíduo por toda a sua vida, caracterizando-se por sintomas de desatenção, inquietude e impulsividade.2
O médico Gabor Maté, citado no artigo de Basu, afirma que ainda que exista um fator genético no TDAH, é justamente a criação que determina seu desenvolvimento ou não. E como segue a autora, nossas sociedades capitalistas criam famílias estressadas, escolas carcerárias e locais de trabalho tóxicos. Não é à toa que nossos cérebros estão se descontrolando em uma escala sem precedentes. O TDAH é uma condição capitalista.
Em 2011 o professor Mark Fisher foi certeiro em suas palavras ao dizer que o TDAH é uma patologia do capitalismo tardio – uma consequência de estar conectado aos circuitos de controle de entretenimento da cultura de consumo hipermediada.3
O atual mundo tecnológico e digital, associado à gana capitalista de produzir mais e em menos tempo, leva-nos aos problemas mentais. A todo instante somos bombardeados com cobranças para “rendermos mais”, otimizar nosso trabalho, produzir e consumir. Quem não se encaixa nesse perfil, é um fracassado – sob a visão falaciosa da meritocracia. E mais do que isso, aqueles que não se adequam, são excluídos pela sociedade.
Será que nosso organismo está preparado para corresponder a essa produção insana? Somo nós, enquanto sociedade, aptos a sobreviver perante essa pressão ambiental? Como dizia Theodosius Dobzhansky: nada na Biologia faz sentido a não ser à luz da evolução. E, de acordo com a visão evolucionista, ou somos aptos, ou definhamos até nossa morte.

A evolução biológica não acaba. E ainda que a epigenética mostre que alterações pontuais nos indivíduos possam ser “ligadas e desligadas” desde que tenhamos genes para isso – o que alguns chamam de “neolamarckismo” justamente pela possibilidade de características adquiridas serem transmitidas aos descendentes – pode ser que não tenhamos genes adaptativos suficientes para a atuação desse processo. Paralelamente, não podemos esquecer que as alterações ambientais, que força a seleção dos mais aptos, estão muito mais aceleradas do que antes, o que é um fator preponderante para o processo de extinção de espécies cujas alterações gênicas não acompanham essa velocidade.
Levando esses aspectos para nossa espécie: somos influenciados, tal como as demais, pelo ambiente. E nosso ambiente é moldado pelo capitalismo e sua força de trabalho. Comparemos a jornada de trabalho de 40 horas semanais (5 dias com 8 horas de trabalho), com os tempos remotos (pré-tecnológica do século XXI) e veremos que apesar da similaridade cronológica, produzimos muito mais. Não à toa surge uma discussão que apavora o patronado: a redução da jornada de trabalho. Ainda que estudos mostrem que seria positivo não apenas para os trabalhadores, mas igualmente para os empregadores. Entre julho e dezembro de 2022, 61 empresas do Reino Unido de diversos setores (com um total de quase 3 mil trabalhadores) adotaram uma jornada de trabalho de 32 horas semanais (equivalente a quatro dias de 8 horas) e constataram aumento de 35% nas receitas, além de ter reduzido as taxas de desemprego e absenteísmo dos funcionários.4
Esse, no entanto, é um assunto tabu, que causa calafrios na espinha dorsal do capital, ainda mais quando se fala em não reduzir o salário.
Mais do que o lucro, impor a falta de tempo livre aos trabalhadores é interesse do capital, pois ao nos retirarem o tempo de descanso (onde podemos não apenas relaxar, mas realmente viver), impedem nossa organização enquanto sociedade explorada. O objetivo é ocuparem nossas mentes e nossos corpos para a produção incessante e desumana a todo instante, causando fadiga e alienação para que consumamos cada vez mais.
Soma-se a isso todos os danos que a alimentação precarizada (baseada com ultraprocessados e alimentos regados com agrotóxicos), e o estrago é ainda maior, a ponto até mesmo de termos nosso material genético modificado por essas substâncias químicas, como no caso do glifosato.5
Comidas que não nos alimentam e danificam nossa microbiota intestinal, justamente de onde vem nossa maior produção do hormônio serotonina – o mesmo responsável por nosso humor.6,7 Resultado: cada vez mais pessoas doentes, dependentes de drogas lícitas para que sejam produtivas. E o que dizer do sono deficitário que o sistema nos impõe, afetando ainda mais nossa saúde?8,9,10
A solução que o corpo encontra é adoecer. E doenças nem sempre físicas, mas principalmente mentais, cada vez mais frequentes – e de forma até precoce.11
Criam-se novos termos para alegar estafa mental – como a Síndrome de Burnout. Começam a aparecer em nosso dia a dia inúmeras pessoas diagnosticadas com depressão, ansiedade, transtorno do espectro autista (TEA), TDAH. Nomes e letras novas, que seguem camuflando um velho problema que causa tudo isso, mas que não se atrevem a falar: a exploração capitalista.
Onde quero chegar com tudo isso? Exatamente no cerne evolutivo e o surgimento/ativação de genes associados ao TDAH e até mesmo do TEA como uma solução evolutiva para a sobrevivência de nossa espécie, ainda que afetem o desenvolvimento neurológico.
Pelas possibilidades de transferência transgeracional dos traumas, não seria surpresa o surgimento de gerações cada vez mais aversas às imposições do capital, com verdadeiro asco à exploração capitalista e que, se não servir de base para uma possível reestruturação social – a derrocada do sistema explorador – no mínimo continuará a gerar novas pessoas com TDAH, TEA e tantos desvios neurobiológicos.12,13
Para se ter uma ideia, quando o TEA foi diagnosticado pela primeira vez, há mais de quarenta anos, afetava uma em cada 5 mil pessoas. Hoje, acredita-se que seja 1% da população mundial, e no Brasil estimativas apontam que 2 milhões de pessoas têm autismo. Segundo relatório do Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC), a prevalência está em 1 em 44 crianças, sendo maior em meninos, na proporção de três homens para cada mulheres.14 Um dado interessante, e que carece de mais estudos, é que a prevalência de autismo nos EUA mostrou significativa diferença entre grupos raciais e étnicos, sendo crianças americanas/nativas do Alasca mais afetadas do que as brancas não hispânicas, além de crianças hispânicas apresentaram menor prevalência de TEA do que as brancas e crianças negras não hispânicas. Ainda que precoce, podemos destacar a ocorrência justamente entre os meninos e nativos dos EUA, os mesmos indivíduos que desde cedo são doutrinados com “o sonho americano”.
A pergunta que cabe aqui: seriam essas novas doenças mentais mecanismos de autopreservação de nossa espécie perante ao sistema capitalista? Seria a maneira pela qual nossos genes estão sendo moldados para tentar sobreviver? Afinal, a exposição a condições hostis resulta em uma série de respostas coordenadas destinadas a aumentar a probabilidade de sobrevivência.15
A natureza é sábia e reage ao que estamos fazendo. O sistema tenta nos matar, mas somos maiores que ele. A exploração do trabalho pode nos adoecer e até matar. Os litros de agrotóxicos que ingerimos de forma indireta podem até eliminar milhares de pessoas e adoecer de forma irreversível tantas mais. No entanto, são eles também os responsáveis por essa alteração social-biológica.
Eis um tema interessante para futuras pesquisas que fortalecerão a busca pelo ecossocialismo. E, se provado, mais um motivo para os neoliberais seguirem com seus planos de precarização e menosprezo da ciência.
Alexander von Humboldt certa vez, em 1845, disse que cada passo que damos no conhecimento mais profundo da natureza nos leva a novos labirintos. E não nos resta outra alternativa a não ser seguir adiante, em busca da saída. Pois é dessa terra que tentam nos sepultar, que ressurgirão sementes mais fortes, resistentes e, quem sabe, promotoras da revolução.
*Luiz Fernando Leal Padulla é professor, biólogo, doutor em Etologia, mestre em Ciências e especialista em Bioecologia e Conservação. Autor do blog e do canal no Youtube “Biólogo Socialista” e do podcast “PadullaCast”. Recentemente publicou pela editora Dialética o livro Um irritante necessário. Instagram: @BiologoSocialista
Referências bibliográficas
- BASU, L. 2022. Seria o TDAH uma condição anticapitalista? Disponível em: https://outraspalavras.net/descolonizacoes/seria-tdah-uma-condicao-anticapitalista/
- O QUE É TDAH. Disponível em: https://tdah.org.br/sobre-tdah/o-que-e-tdah/
- FISHER, M. 2011. Capitalism Realism – is there no alternative? Disponível em: https://files.libcom.org/files/Capitalist%20Realism_%20Is%20There%20No%20Alternat%20-%20Mark%20Fisher.pdf
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