A explosão social chilena e os debates em torno da Constituição
Em outubro de 2019, depois de uma semana de recrudescimento dos protestos e da morte de dezoito pessoas, o governo chileno suspendeu o toque de recolher, mas a extensão das reivindicações já deixava claro o que grande parte da população desejava: o fim da Constituição autoritária e neoliberal de Pinochet
No dia 15 de outubro de 2019, uma terça-feira, os moradores e os turistas de Santiago se depararam com a estação de metrô Universidad de Chile fechada no meio da tarde. Conectando duas importantes linhas, a 1 e a 3, a interrupção do serviço dessa estação de baldeação não era comum, a não ser em casos de acidentes na via. E esse não era o caso. Desde o início de outubro, estudantes secundaristas iniciaram protestos contra o aumento da tarifa do metrô da região metropolitana que consistiam na recusa do pagamento das passagens, pulando as catracas de controles das estações. As ações coordenadas, que começaram tímidas, ganharam fôlego a partir do dia 14 do mesmo mês e explodiram em um enorme movimento, sem precedentes desde a redemocratização, no dia 18 de outubro, uma sexta-feira. Neste dia, as evasiones masivas, como foram chamadas as ações estudantis no metrô, se multiplicaram em resposta à criminalização dos protestos por parte do presidente Sebastián Piñera.
Para evitar a escalada das manifestações, o governo decidiu fechar no mesmo dia as duas principais linhas da capital e encerrar outros serviços no meio do dia, deixando milhões de usuários que precisavam retornar às suas casas ilhados em diferentes pontos da cidade. O tiro saiu pela culatra e o que se seguiu não era esperado pelas autoridades: barricadas com fogos, pichações, ataques a bancos, farmácias e outras empresas, algumas incendiadas, e, principalmente, uma série de cazerolazos (panelaços) se espalharam não só por Santiago, como por todo o país. O governo de Piñera, composto majoritariamente por herdeiros políticos da ditadura, revogou o aumento do valor das passagens ao mesmo tempo em que colocava o Exército nas ruas – situação que não ocorria desde os sombrios tempos de Pinochet – e decretava estado de emergência com toque de recolher, o chamado toque de queda, em diversas partes do país, lançando mão, portanto, de um dos elementos mais autoritários da Constituição e fazendo valer sua tradição política. A partir daí, a sociedade chilena passou a enfrentar uma série sistemática de violações contra os direitos humanos.
A primeira semana de protestos que varreram o país, tempo em que durou o toque de queda, foi marcada por uma série de vacilações de Piñera e aliados. O presidente chegou a afirmar que o país se encontrava em guerra contra um inimigo poderoso, um discurso que parece se referenciar às ideias da Doutrina de Segurança Nacional, enquanto a primeira-dama Cecilia Morel comparava os protestos a uma invasão alienígena e se queixava de perder seus privilégios em um áudio vazado que viralizou na web. Após cinco dias de protestos intensos, que foram acompanhados de novas reivindicações, o governo chileno percebeu que os dispositivos autoritários não estavam conseguindo silenciar a população, sobretudo a geração de jovens que utiliza a internet de maneira eficaz para denunciar as graves violações contra os direitos humanos e para se articular em manifestações de rua. Assim, Piñera mudou o tom do discurso, pediu desculpas e anunciou um pacote de medidas que incluía uma complementação da renda mínima do trabalhador, a redução das tarifas de luz e um seguro para a compra de medicamentos. Concomitantemente, o Congresso também buscou aprovar uma série de mudanças na legislação, entre elas, a redução de seus próprios salários e a diminuição das jornadas de trabalho.
As medidas anunciadas por Piñera foram consideradas superficiais e insuficientes. Apesar do estopim dos protestos ser o aumento tarifário do metrô, justificado pelo governo por conta da alta do dólar e do preço do petróleo, as manifestações deixaram claro que a insatisfação da sociedade chilena era de caráter profundo e relacionada às reformas estabelecidas durante a ditadura pinochetista. As pautas iniciais questionavam o alto custo de vida – especialmente quanto ao aumento das tarifas de bens básicos como energia, medicamentos e água, que no Chile é privatizada –, o endividamento estudantil e o sistema previdenciário, que paga aposentadorias irrisórias e está nas mãos das AFP (Administradoras de Fondos de Pensiones), a maioria pertencente a grupos multinacionais estrangeiros. Depois de uma semana de recrudescimento dos protestos e da morte de dezoito pessoas, o governo chileno suspendeu o toque de recolher, mas a extensão das reivindicações já deixava claro o que grande parte da população desejava: o fim da Constituição autoritária e neoliberal de Pinochet.
Uma Constituição autoritária e neoliberal para uma “democracia protegida”
Em 1980, foram presos – e muitos deles torturados – cerca de setenta ativistas da campanha pelo No para o plebiscito de aprovação ou rechaço da nova Constituição chilena. Pinochet buscava, com a nova Carta, institucionalizar de vez o regime, que havia superado uma série de crises ao final da década de 1970 simultaneamente a um forte, ainda que pouco duradouro, crescimento econômico. A violência contra os seus opositores fazia parte de uma estratégia de silenciamento que ia muito além da brutalidade física e que buscava conceder legitimidade ao projeto de nação arquitetado pelos aliados civis da ditadura.
Concomitantemente ao enfrentamento das crises, a ditadura aproveitava o crescimento econômico para efetuar reformas neoliberais em relevantes setores, como o trabalhista, educacional, a seguridade social e a saúde. Além disso, ela investiu em símbolos culturais que projetavam um Chile forte, moderno e orgulhoso de sua identidade que, segundo os golpistas, havia sido atacado e quase destruído pelos marxistas e pela Unidade Popular. Eventos cívicos e organizações de mulheres e jovens conservadores, museus que tratavam do passado colonial e da república chilena até a década de 1930 – ou seja, antes do período de uma série de governos de centro-esquerda reformistas –, a finalização da reforma do La Moneda, bombardeado durante o golpe de 1973, e um resgate de personagens militares históricos também deram o tom para o processo de refundação nacional desejado pela ditadura.
Todo esse contexto vai culminar na aprovação por meio de um plebiscito fraudulento da Constituição de 1980, que é a que rege o Chile atual e está a ponto de ser substituída com o resultado das urnas de 25 de outubro. Embora se fale muito do seu caráter neoliberal, isso é apenas um dos fatores de base a serem considerados na Carta Magna, sendo necessário ir além do aspecto economicista, falaciosamente tido como técnico por parte de uma direita liberal.
A Constituição chilena começou a ser gestada logo após o golpe em 1973 por meio da Comisión Ortúzar, assim chamada por conta de seu presidente Enrique Ortúzar, um jurista representante da velha política da direita. Apesar do nome e do presidente, é inegável que quem mais contribuiu para o projeto foi o jovem jurista Jaime Guzmán. Ele foi uma figura central da ditadura militar chilena, sendo um conselheiro próximo de Pinochet em assuntos jurídicos e políticos. Criador do Movimiento Gremial (MG) durante o processo de reforma universitária da Universidade Católica de Santiago, Guzmán se destacou como um combativo jovem conservador, que, apesar de ser totalmente antimarxista, possuía grande admiração pelos comunistas por causa da capacidade organizacional e de mobilização de bases no campo real e simbólico. Tendo isso em mente, ele começou a fundamentar os alicerces do que viria a ser o gremialismo ainda durante sua graduação, fazendo oposição ao movimento universitário reformista e agregando, em seu círculo político, jovens estudantes e professores da Escola de Economia da Universidade Católica de Santiago, que viriam a ser conhecidos como Chicago Boys. O gremialismo e o monetarismo – como era chamado, inicialmente, o neoliberalismo – foram as bases de sustentação civil da ditadura e da própria Constituição.
Os dois grupos, ainda que possuindo diferenças teóricas sobre a concepção do Estado, conseguiram realizar uma peculiar simbiose na conformação final da Constituição. De acordo com a historiadora chilena Verónica Valdivia, o que mais preocupava Guzmán era a questão de autoridade e participação social. O jurista acreditava em uma sociedade hierarquizada, desigual, com um Estado que se preocupasse com o bem comum, mas não interferisse na liberdade e autonomia dos chamados corpos intermediários, revelando, a partir dessas ideias, uma forte influência corporativista católica em sua formação. Na sociedade contemporânea, os corpos intermediários seriam instituições sociais e políticas, como a Igreja, a Família, a Universidade etc., que seriam os lugares em que os cidadãos resolveriam seus problemas cotidianos e específicos a esses locais, que, por sua vez, mediariam a comunicação entre o indivíduo e o Estado, ao mesmo tempo em que os manteriam afastados das tomadas de decisões em instâncias superiores. Guzmán vislumbrava, desse modo, uma “democracia protegida”, na qual o poder social estaria nas instâncias intermediárias separado, de fato, do poder político.
O conceito, porém, que vai aproximar mais os dois grupos e que também permeia por completo a Constituição é o “princípio de subsidiariedade”, que surge teoricamente estruturado no seio da Igreja Católica. A encíclica Quadragesimo Anno (1931) do Papa Pio XI, criada como resposta à crise de 1929, enfatizava as vantagens e definia o princípio de subsidiariedade a partir da ideia de independência dos corpos intermediários, que apenas sofreriam intervenção pelo Estado por insuficiência e/ou incapacidade na realização de suas atividades. O Estado agiria como regulador em prol do bem comum e em questões que lhe seriam próprias, como a Defesa Nacional, as Relações Internacionais e a Segurança Interna com suas polícias, mas sempre em uma perspectiva antiliberal.
Antes mesmo do neoliberalismo chileno se tornar um modelo que abarcava todos os aspectos da vida, os gremialistas já defendiam um antiestatismo e uma defesa da propriedade privada dentro de um ideal de sociedade católico conservador. Ao contrário do que se pensa, a inspiração filosófica distinta dos dois grupos não foi um obstáculo para sua união, que se uniformizava por meio de uma cosmogonia católica. Vale ressaltar que os projetos neoliberais, como colocado pela cientista política Wendy Brown, também se guiam pelo modelo de uma sociedade hierarquizada e de diminuição ou supressão da participação social com apoio do Estado. Milton Friedman, ao relembrar os debates no conhecido Colóquio de Walter Lipman, ressaltou que “nossas seções foram marcadas por vigorosas controvérsias acerca de assuntos como o papel da religião e dos valores morais em possibilitar e preservar uma sociedade livre”. O projeto neoliberal chileno não seria possível sem a articulação e a mobilização de valores autoritários, elitistas e conservadores em torno de um ideal de nação, que para a ditadura militar e seus aliados civis resgatavam o que seria a verdadeira essência do Chile, uma chilenidad que encontrava suas raízes na República Conservadora Portaliana. Não foi à toa que a união entre a nova direita gremialista, os economistas neoliberais e o autoritarismo que resgatava a figura do jurista do século XIX Diego Portales, de tal maneira cara à Pinochet, serviu tão bem ao projeto ditatorial.
A maior mudança trazida pelo neoliberalismo sobre o pensamento gremialista foi a aplicação de um modelo ultraliberal na economia, a aceitação de partidos políticos e do sufrágio universal. Mas na problemática dos partidos, Guzmán conseguiu suprimir muito da inspiração liberal, já que na Constituição de 1980 se estabeleceu que os partidos políticos só poderiam se envolver em questões relacionadas aos problemas do Estado, sem poder interferir no âmbito particular dos corpos intermediários, ou seja, em aspectos relacionados à família, religião, educação, dentre outros, que estariam no âmbito restrito das liberdades individuais. Dessa forma, os partidos perdiam muito de sua conexão com os movimentos sociais, deixando de ser seus representantes e intermediários. O princípio de subsidiariedade foi essencial para que os dois grupos dialogassem entre si de forma satisfatória. As reformas neoliberais permitiram também que a ditadura de Pinochet se projetasse como modernizadora ao mesmo tempo em que se mantinha conservadora e mantenedora do status quo. Por fim, o ferrenho anticomunismo de ambos os grupos, involucrado pela Doutrina de Segurança Nacional de proteção contra “inimigos externos”, completava a uniformidade do projeto.
O resultado foi uma Constituição que estabelecia uma “democracia” autoritária, tecnificada e protegida, com a presença de um Executivo forte, um Parlamento débil e fiscalizador e com o reconhecimento das Forças Armadas como protetoras da nova institucionalidade. Além disso, ela servia para garantir a perpetuação das reformas neoliberais colocadas em prática ao final da década de 1970 e durante a década de 1980. E foi isso o que ocorreu por mais trinta anos após a redemocratização; até a explosão das manifestações de outubro de 2019…
As reformas neoliberais da ditadura
Antes da imposição da Constituição de 1980, uma série de reformas econômicas e administrativas foram efetuadas pelos Chicago Boys. Uma das primeiras reformas impactantes da ditadura militar foi o Decreto Lei 2568 de 1979, que, no âmbito de uma suposta reforma agrária, liquidou a concepção de terras coletivas dos mapuches. Para a ditadura não era aceitável, a partir da ótica da chilenidad, a ideia de uma nação mapuche dentro do território chileno. As terras indígenas foram separadas em pequenas propriedades individuais, solapando muito da cultura indígena, que passou a sofrer ainda mais com a pressão de grandes proprietários de terras do sul do país.
No mesmo ano, apenas alguns meses depois, foi promulgado o chamado Plan Laboral, uma reforma trabalhista desenhada pelo ministro do Trabalho de Pinochet, ninguém menos que o economista José Piñera, irmão do atual presidente Sebastián Piñera. O Plan Laboral se baseava em quatro aspectos fundamentais que minaram grande parte dos direitos trabalhistas e enfraqueceram os sindicatos: negociação coletiva centrada na empresa, greve sem possibilidade de paralisação, liberdade sindical e despolitização sindical.
Ainda em 1979, mais uma reforma neoliberal de peso foi realizada. Extinguiu-se o antigo sistema de saúde público e gratuito chileno e criou-se o Fundo Nacional de Saúde do Chile (Fonasa, na sigla em espanhol), que dividiu os cidadãos em quatro categorias de acordo com suas rendas. A Fonasa estabeleceu uma contribuição mensal de 7% dos rendimentos de cada participante, mas sem uma garantia de tratamento gratuito. Mesmo com essa porcentagem há que se pagar em diversos procedimentos, e o desconto obtido depende da classificação financeira do cidadão. A criação do Fonasa foi apenas o início da reforma de saúde. Dois anos após sua criação, já com a Constituição ditatorial, foram colocadas em prática as Instituições de Saúde Previdenciárias (ISAPREs), que são os planos de saúde privados chilenos. Estes sofrem pouco controle, realizam cartel de preços e seus os usuários não contribuem para o Fonasa.
Poucos meses após o plebiscito de 1980, mais uma decisiva reforma foi imposta, a universitária. A partir dela, o sistema de cobranças e de redução significativa dos investimentos estatais no ensino superior, que já vinha sendo introduzido desde a segunda metade da década de 1970, foi formalizado na Ley General de Universidades, dividida em cinco principais decretos. Não só se instituía a ótica neoliberal para a educação superior, mas a lei também se imiscuía na autonomia universitária a partir da ideia de corpos intermediários, que deveriam ser isentos de interferências partidárias, e trazia concepções elitistas e segregadoras sobre as universidades, definindo-se apenas doze carreiras profissionais como exclusivamente universitárias. Vale mencionar ainda o grande incentivo dado aos institutos técnicos e profissionais privados, voltados exclusivamente para as necessidades do mercado.
Menos de dois meses antes da reestruturação universitária começar a ser apresentada, José Piñera anunciou mais uma reforma no Ministério do Trabalho e que se tornou, junto com a reforma educacional, uma das mais criticadas e debatidas nos últimos anos: a reforma da previdência. Com ela, foram criadas as Administradoras de Fundos de Pensões (AFP), que eliminou o antigo sistema solidário de previdência e estabeleceu o sistema de capitalização individual, colocando as economias dos trabalhadores e aposentados no mercado financeiro de investimentos, sujeitas às diversas variações das bolsas de valores, a depender do tipo de capitalização escolhido. Além disso, as empresas se viram livres de qualquer participação no novo modelo de aposentadoria. É importante destacar que os militares e os carabineiros (como a polícia chilena é conhecida) continuaram com o antigo sistema solidário de aposentadoria, recebendo salários melhores, principalmente porque parte significativa dos rendimentos advindos do cobre, principal produto de exportação do Chile, vai para as Forças Armadas.
Não cabe enumerar todas as reformas neoliberais realizadas pelos Chicago Boys sob o manto autoritário de Pinochet. Outras, como a reforma da área de mineração, abriram caminho para uma série de privatizações e concessões para grandes empresas de áreas fundamentais e estratégicas da economia. Apesar das reformas terem sido feitas ao final da década de 1970 e início da década de 1980, elas se mantiveram e, algumas vezes, foram aprofundadas durante o período democrático.
A sombra de Pinochet nos últimos trinta anos e a conivência da Concertación
O fim da ditadura militar chilena trouxe, por um lado, imenso alívio para grande parte dos chilenos; por outro, ela deixou uma herança, cristalizada na engenhosa Constituição elaborada por Guzmán, que alterou significativamente cada aspecto do cotidiano chileno. A Constituição de 1980 sofreu mais de cinquenta alterações ao longo dos últimos trinta anos, mas nenhuma delas fez mudanças realmente estruturais e isso ocorre por uma série de motivos.
Ainda que Pinochet tenha deixado o poder em março de 1990, sua influência – e ameaça – pessoal se fez sentir pelo menos até 1998, quando ele foi preso em Londres a mando do juiz espanhol Baltasar Garzón. Até esta data o Chile vivia um impasse entre uma efetiva justiça de transição e a sombra do ditador, que permaneceu até o ano de 1998 como Comandante em Chefe das Forças Armadas e, posteriormente, se tornou senador vitalício, cargo garantido a ex-presidentes na Constituição ditatorial. Nesse ínterim, foi realizado o Informe Rettig (primeira Comissão Nacional da Verdade do Chile), o julgamento de alguns militares envolvidos em crimes contra os direitos humanos, incluindo a do outrora poderoso general Manuel Contreras, ex-chefe da Dirección de Inteligencia Nacional (DINA),e reformas constitucionais, como a de 1989, que, por exemplo, revogava a parte da Constituição que estabelecia um pluralismo político limitado, especialmente no que concerne aos partidos de ideologia marxista.
Com a prisão do general Pinochet, houve um substancial aumento de condenações de diversos agentes estatais violadores dos direitos humanos. Em uma posição delicada a direita reconheceu, por um lado, que houve “excessos” por parte dos militares, por outro, defendia que a ditadura modernizou o país. Nesta linha de pensamento, o melhor a se fazer seria esquecer os crimes cometidos no período e conciliar o país. Apesar dos avanços na punição dos perpetradores das violações contra os direitos humanos e de outras reformas constitucionais importantes, como a do governo Lagos, que acabou com os senadores vitalícios e indicados, a base estrutural da Constituição com o seu princípio de subsidiariedade não foi alterada.
Uma das principais justificativas da Concertación, aliança política de centro-esquerda que governou o Chile após a redemocratização por quatro mandatos seguidos, era que a Constituição de Guzmán era confeccionada para perpetuar aspectos fundamentais do pinochetismo mesmo sem Pinochet e o sistema binominal garantia que a Carta não fosse alterada. O sistema binominal estabelecia a eleição de dois representantes por cada distrito. Todavia, para que uma coalizão obtivesse as duas cadeiras, deveria somar mais de 66% dos votos válidos, o que era bastante improvável, enquanto com apenas 33% a coalizão que ficasse em segundo lugar conseguia a mesma representação. Isso fez, por exemplo, que Jaime Guzmán se elegesse senador pelo sétimo distrito com apenas 17% dos votos, derrotando o socialista Ricardo Lagos, que havia recebido 30% dos votos pelo mesmo distrito. Desse modo, se tornava quase impossível conseguir os dois terços necessários para alterar substancialmente a Constituição no Congresso.
Apesar disso, no governo de Ricardo Lagos (2000-2006), a centro-esquerda obteve um número de cadeiras próximo aos dois terços na Câmara dos Deputados, em um momento em que o pinochetismo se via bastante enfraquecido com a prisão do ditador e com uma população insatisfeita e afetada pelas mazelas causadas pelas reformas neoliberais. Ao invés de uma mobilização das bases e dos movimentos sociais, o que os governos de centro-esquerda fizeram foi aprofundar o Estado neoliberal. No governo de Eduardo Frei Ruiz Tagle (1994-2000), iniciou-se o processo efetivo de privatização da água a partir do sistema de saneamento e no governo de Lagos este processo foi consolidado, fazendo com que muitos chilenos tivessem que racionar água até para o consumo necessário pelo corpo. A transformação da água em uma mercadoria tem a sua origem em uma lei da ditadura de 1979, que determinava que o Estado concedesse os direitos em relação à água para a exploração de grupos privados, de maneira gratuita e perpétua. O primeiro governo de Michelle Bachelet (2006-2010) foi além e começou o processo de privatização do mar, tornando o Chile um caso único no mundo. As mudanças na Lei Geral de Pesca e Aquicultura estabeleceram um sistema de concessões de partes do mar chileno, expandindo de maneira inimaginável a exploração capitalista sobre recursos naturais. As modificações foram promulgadas por Sebastián Piñera (2010-2014) um mês após o início do seu primeiro mandato, mas foram formuladas integralmente no novo governo de Bachelet. Foi também durante os governos de centro-esquerda que muito da infraestrutura chilena – estradas, portos, aeroportos, prisões – passaram para as mãos de particulares em forma de concessões.
Em meio ao aprofundamento do sistema neoliberal, houve um grupo que começou a se destacar nas manifestações contrárias ao modelo chileno: o dos estudantes secundaristas e universitários. Não foi por acaso que os estudantes foram os responsáveis pela deflagração da revolta popular de 18 de outubro de 2019. Em 2006, milhares de estudantes secundaristas foram às ruas pedir a revogação da Lei Orgânica Constitucional de Ensino (LOCE), promulgada e publicada nos últimos dias da ditadura pinochetista, em 1990. O primeiro governo de Bachelet, sob forte pressão e após estudos sobre a reforma educacional no Chile, promulgou a Ley General de Educación, que buscava atender a algumas demandas estudantis. No entanto, pontos primordiais da legislação educacional não foram modificados, fazendo com que protestos ainda mais significativos, realizados principalmente por estudantes universitários, voltassem a ocorrer em 2011 no primeiro governo de Piñera. Nessas mobilizações, consideradas as mais importantes desde a volta da democracia até então, os estudantes universitários lutavam pelo fim do lucro das universidades, que, em tese, é proibido por lei, pela gratuidade do ensino superior, por maiores investimentos públicos na educação, pela democratização interna das próprias universidades e por uma Assembleia Constituinte.
Foi em meio a essas e outras demandas que o segundo governo de Bachelet (2014-2018) fez sua campanha em torno da promessa de uma série de reformas estruturais, como a política, a tributária e a educacional. Já em 2015, Bachelet promulgou uma lei que acabava com o sistema político binominal, garantindo uma verdadeira representação nas eleições para o Congresso. Também aumentou os impostos das grandes empresas, passando da taxa de 20% para 35% sobre os lucros. No que tange à educação, Bachelet apresentou o início do programa de gratuidade na educação superior chilena, que foi estendido para milhares de alunos, totalizando 46 instituições em 2018. No entanto, desde a sua apresentação, o programa de gratuidade do ensino superior foi cercado de desconfiança e críticas feitas, principalmente, por setores mais à esquerda, que questionaram o fato dele ser estruturada por meio de bolsas de estudos, de não haver um plano concreto de eliminação das taxas de matrículas e das anuidades e de empresários, incluindo os bancos, continuarem lucrando com o setor educacional.
As reformas constitucionais realizadas por Bachelet esbarraram no mesmo problema de sempre. Maquiava-se a Constituição com inúmeros artifícios, porém a estrutura de um Estado subsidiário continuava em vigor, deixando grande parte da população à mercê dos interesses privados. Soma-se a isso o dilema em torno da questão Mapuche, com os indígenas sofrendo uma série de ataques a seus direitos e o fato de que políticos e alguns intelectuais da centro-esquerda passaram a defender o sistema legado pela ditadura ao se envolver em negócios que os beneficiavam.O resultado foi o desenvolvimento de uma grande desconfiança da população com o sistema partidário e a classe política. Isso se tornou evidente com a diminuição da participação nas eleições do país desde que o voto deixou de ser obrigatório em 2012. Piñera foi eleito com uma abstenção maior que 50% dos cidadãos votantes.
Um ano da explosão social chilena e o plebiscito de 25 de outubro
Em 18 de outubro de 2020, as ruas de Santiago e de diversas outras cidades se encheram para celebrar um ano da maior revolta popular desde o fim da ditadura. Mesmo com a crise de Covid-19, a população mostrou que o movimento continuava vivo e que o dia 25 de outubro apenas ratificaria o que as ruas já anunciavam. Nesse um ano, uma série de violações contra direitos humanos foi cometida. Assassinatos, detenções arbitrárias, desaparecimentos, estupros e outros tipos de violência por parte das forças de segurança reviveram os anos de horror da ditadura de Pinochet. Os carabineiros fizeram uma operação de guerra contra a população civil. Estações de metrô chegaram a ser usadas como centros de tortura; pessoas foram propositalmente atropeladas por veículos policias; os guanacos, carros especiais que atiram fortes jatos de água, muitas vezes misturada com produtos tóxicos, foram utilizados à revelia; pelo menos 460 pessoas perderam a visão total ou parcial de um dos olhos e, em alguns casos, de ambos, por conta de disparos, tornando a polícia chilena campeã no mundo em crimes do tipo; e cerca de 490 mulheres sofreram algum tipo de tortura, sendo que 112 foram acompanhadas de abusos sexuais. Ao menos 34 pessoas morreram durante as manifestações, um terço delas diretamente em confronto com as forças de segurança.
Em certa medida, o impacto no governo Piñera, fiel representante da herança pinochetista, apesar de tentar negar algumas aparências e evidências, foi considerável. Sua popularidade alcançou os níveis mais baixos entre os presidentes desde a redemocratização e ele precisou efetuar, após o início dos protestos, várias mudanças de ministros, incluindo a do ministro do Interior, responsável pelas forças de segurança, Andrés Chadwick, um histórico pinochetista e primo do presidente. A dança de cadeiras ministerial, que atingiu grande parte do gabinete de Piñera não surtiu efeito em frear os protestos e as demandas por uma nova Constituição.
Em meio a todo o caos social em que se encontrava o Chile, a pandemia da Covid-19 serviu como um respiro para o governo, que viu os cidadãos chilenos serem obrigados a se manterem reclusos em suas casas, diminuindo o fôlego dos protestos. O plebiscito para uma nova Constituição, que seria realizado em abril de 2020, acabou sendo transferido para outubro do mesmo ano. Por outro lado, a má gestão da pandemia no país andino ampliou o leque de críticas à gestão Piñera, que enxerga o bem estar de seus cidadãos a partir da ótica do lucro e governa um país sem um sistema público, gratuito e universal de saúde.
No contexto das revoltas populares e do plebiscito de 25 de outubro é imprescindível ressaltar que líderes evangélicos se colocaram totalmente contrários à mudança da Constituição, orientando seus fiéis, que correspondem a 20% da população, a votarem pelo rechazo; isso é sintomático, mais uma vez, de como o neoliberalismo e conservadorismo se retroalimentam. Assim como ocorre no Brasil e em outras partes do mundo, alguns grupos religiosos militam pela não interferência do Estado em nenhum aspecto da vida privada, como em relação à educação das crianças e à liberdade de expressão religiosa. Esses grupos conservadores protestantes, mas também católicos em alguns casos, posicionam-se contrariamente a qualquer promoção do Estado em questões que lhes são caras, como o direito ao aborto e às discussões múltiplas sobre gênero e sexualidade. Esses elementos são fundamentais para uniformizar uma visão de mundo e sociedade que conecta economia, política, moral e fé. Essa simbiose é primordial para o projeto neoliberal, que encontra nestes grupos valores idênticos para o projeto de nação e que fortalecem a necessidade de um Estado subsidiário. Transpondo a análise da historiadora chilena Verónica Valdivia sobre a ditadura para a atualidade, essa mistura permite que a direita pose de modernizadora ao mesmo tempo em que mantém uma forte dose de tradição.
Essa relação também explica parte do sentimento anticlerical e, por vezes, antireligioso das manifestações, que enxergam nestes grupos um entrave para o desenvolvimento de uma eficaz Assembleia Constituinte. Nos últimos anos, o Chile teve que lidar com uma série de escândalos de crimes sexuais, muitos deles cometidos por padres católicos contra crianças. Em contrapartida a isso, sempre houve uma tentativa de abafamento desses crimes por parte da Igreja ou de relativização e culpabilização da vítima por setores conservadores, incluindo aí a justiça, em casos de abusos sexuais contra as mulheres. A potência feminista, jovem e anticlerical se fez evidente no levante popular, que se evidenciou desde uma significativa projeção de grupos como Lastesis e que culminou com a queima de duas igrejas católicas associadas aos carabinerose à ditadura no último dia 18, quando se completou um ano do estallido social.
A resposta das urnas no dia 25 de outubro foi um massacre do apruebo sobre o rechazo ou, como dizem os chilenos, uma paliza constituyente, na qual a opção por uma nova constituinte 100% renovada e eleita pelos chilenos ganhou com quase 80% dos votos. O levante popular está surtindo efeitos nas esferas institucionais, porém é preciso estar atento e manter a mobilização nas ruas, principalmente após resolvida a crise de Covid-19, pois há muitos agentes sabotadores no caminho para uma Constituição popular e democrática. A emblemática canção El derecho de vivir en paz, do cantor e compositor Victor Jara, torturado e assassinado nos primórdios da ditadura, deverá continuar sendo o norte dos chilenos, que sabem que a luta se faz necessária e constante para alcançar a tão almejada paz social.
Luan Aiuá Vasconcelos Fernandes é graduado em História e mestre em História e Culturas Políticas pela UFMG e doutorando em História Social na USP, onde pesquisa a relação da ditadura militar chilena com as universidades.