A falta de oxigênio do materialismo histórico dialético na atualidade
Este é o segundo texto que compõe o artigo no total de três partes. Na parte 1, trabalhamos o difícil ato de estudar em tempos de intensificação do roubo do tempo. Nesta parte 2, o objetivo é refletir (auto)criticamente, sobre os dilemas do campo crítico em geral, e marxista em particular, na produção do conhecimento científico
Os marxismos e seus dilemas contemporâneos
Que drama contemporâneo o que vivemos: mesmo sendo convictos, a partir do campo que compomos, o marxismo, de que somente a dialética materialista e histórica explica as condicionantes de nossa condição paralisante atual, quanto mais corre o tempo da luta pela sobrevivência, tanto menos tempo temos para estudar a fundo a própria dialética em sua razão teórica, histórica, cultural e política. Digo somente a dialética marxiana por entender que é a única capaz de conectar, na historicidade, as raízes de funcionamento sistêmicas, ao mesmo tempo em que propõe, dadas as desigualdades reais, sua superação como necessidade ontológica.
A dialética não é apenas um método de estudo, um procedimento de investigação que capta as contradições. É um método de investigação com pretensões políticas de disputa sobre os sentidos da ciência, do humano e da vida. Está repleta de camadas a serem desvendadas. E o tempo de seu desvendamento não corre de forma imediata, demanda uma imersão que, quiçá, seja de enfrentamento com a correria do tempo da militância, da sobrevivência, da existência afetiva e do estudo/trabalho cotidiano.
Pensar/agir de forma dialética demanda tempo, estudo, coletividades reflexivas, práxis. Tem a ver com tomada de consciência individual conformadora de uma coletividade na ação: estudar enquanto se reconhece as tensões cotidianas e viver enquanto se pontuam as categorias que nos permitem quebrar as camadas que ocultam o entendimento das contradições.
Na intensificação do roubo do tempo, os sujeitos em formação acadêmica e política experimentam uma cotidianidade de fraturas, se sentem incapazes, envergonham-se após percorrido um tempo de estudo, por não darem conta de cumprir com algo que parece fácil – a apreensão do método e do conteúdo marxiano/marxista. Isso vale para educadores e educandos, uma vez que a formação é continuada para quem atua na educação.
Entre os diversos dilemas do nosso tempo, é na separação entre o tempo para a educação formal e o tempo da superexploração da força de trabalho que os sujeitos do popular se movimentam. Na expressão de um elástico tensionado, a escolha apresenta-se no âmbito da sobrevivência como um ou outro mundo cada vez mais afastados, e não os dois simultâneos como possíveis, e próximos entre si. Os sujeitos da classe trabalhadora acordam muito cedo, dormem muito tarde – quando conseguem – e não dão conta da quantidade de coisas para fazer ao longo do dia.
Há fraturas no conhecimento e mortes da potência política sobre o que significa a dialética materialista, em meio ao tumultuado caminhar histórico das jovens gerações, bem como no desencontro geracional, frutos da conjuntura desmedida do roubo do tempo. Entre professores que teoricamente navegam sobre as obras de Marx e dos marxismos e as novas gerações que vivem as contradições que precisam ser desvendadas, apresenta-se um mundo de conflitividade necessário de ser superado, mas que requer um bom diagnóstico sobre seu quadro clínico e social atual.
Captar a dimensão da complexidade dialética marxiana nos exige parar de julgar nossos pares – se de fato nos entendemos como classe trabalhadora –, e nos posicionarmos ao seu lado para percorrermos juntos o caminho investigativo/transformador social, por mais que atuar coletivamente se apresente como algo difícil na era da exacerbação do individualismo. A rigorosidade e as exigências não precisam ocorrer distanciadas da escuta real na ação educativa.
A educação como dialogicidade parece ser algo que o marxismo dogmático exaspera. As consequências disso são sentidas hoje no (des)encontro entre uma geração que se permite dizer as coisas, ou simplesmente negá-las, e um grupo que insiste em manter-se rígido em suas “verdades.” Em certos momentos essas posturas nos aproximam dos nossos grupos antagônicos e seus métodos violentos de reprodução da ideia de verdade.
Como educadores críticos, parece que temos sido incapazes de fazer perguntas estruturantes que ordenem e acalmem a inquietação que pulsa dentro de nossa relação com os educandos. Há uma paralisia, um temor, um receio sobre estarmos, ou não, no caminho certo. Talvez porque aqueles que usam a dialética de forma pretensiosamente teórica vivam pouco as contradições do dia a dia. Outros, por sua vez, quiçá por viverem essas contradições cotidianas no plano da sobrevivência, são asfixiados pela dialética da vida. E isso ocorre a tal ponto que as perguntas ao serem vividas deixam de ser um problema de investigação, e se tornam um problema da própria existência.
Nada mais antidialético que a falta de tempo e de propósitos no entendimento e sentido dado à dialética como método. Ao vivermos o momento mais mordaz do roubo de tempo, a própria dialética fica mais evidente na vida cotidiana, ainda que seu estudo requeira mais tempo para o seu aprofundamento real. Pois, se a dialética materialista é história em movimento, captar suas contradições exige estudo e debate contínuos. Exige tempo.
Quanto mais intensas as contradições vividas, tanto mais difícil apreender a filosofia da práxis que sustenta nossa reflexão. A dialética, como campo de intervenção não é fácil, nem de entender, tampouco de realizar. Compreendê-la demanda tempo. E esse tempo não corre de acordo com nossos desejos, mas sim com os processos cotidianos da vida mesma. Conhecer é ter tempo para colher, nas dificuldades diárias da investigação, os frutos de uma aprendizagem que, ainda quando individual, exige ter pretensões coletivas de superação das formas e dos conteúdos da exploração, expropriação e espoliação.
A dialética de Marx não é uma receita, ou um item de enciclopédia que a defina somente como o é e o não é, à diferença da dialética hegeliana do é ou não é. Tampouco pode ser explicada sem a experiência cotidiana das contradições inerentes às lutas de classes, à experiência viva do popular, e da classe trabalhadora à qual integra.
Nossa visão de mundo está encurtada, o que gera uma menor condição de entender esse emaranhado de relações complexas, contraditórias e conflitivas próprias da dialética da vida cotidiana. Isto ocorre porque sem tempo para digerir o conhecimento, enquanto se vivenciam os dramas da sobrevivência, não é possível entrelaçar as diversas camadas que se mesclam e se superpõem, ao longo do próprio empobrecido processo do viver.
Ao nos distanciarmos da dialética das ruas na produção do conhecimento, reiteramos a vitória da leitura e da ação de mundo que mata a diversidade, que impõe a visão única sobre os sentidos da vida, de um pensamento e, na tentativa de sermos críticos, tendemos a reiterar o divórcio entre a teoria e a ação. A práxis superadora fica incompleta. Vira apenas um termo sem sentido vivo. Quando isso ocorre, a dialética de Marx entra em asfixia prévia à morte. Para Marx, a dialética é sinônimo de filosofia da práxis. E práxis é uma categoria entrelaçada com a complexidade do mundo do trabalho, da existência.
Um debate necessário dentro do campo crítico/marxista
É dentro do campo marxista que interessa esse debate. Há no interior das nossas divergências na atual conjuntura da produção do conhecimento uma forte intolerância geracional que põe em evidência o sentido antidialógico, o que gera uma potencial tendência à práxis antidialética.
Pensar dialeticamente exige projetar ações transformadoras. E nada mais egocêntrico e despótico que a ideia de acusar uma geração de empobrecida, quando não se toma em conta os dilemas que a mesma vivencia no campo da existência cotidiana. Aliás, dilemas que não passam distantes da nossa própria condição de trabalhadores da educação.
Entre o (des)encontro produzido pela falta de tempo de uma sociedade aligeirada, movimenta-se também um distanciamento com forte propensão à ruptura, de parte dos intelectuais que, na cotidianidade do trabalho, parecem não mais se suportarem. É terrível o sentimento vivenciado de trabalhar em um mesmo espaço, sabendo-se que se produzem processos de divórcios que exalam a pobreza da decisão jurídica dos conflitos, de algo que deveria ser eminentemente político. Em outras palavras, estamos, no interior do campo crítico, reféns da vitória da raiva burguesa reificada em nossas ações, no que deveriam ser processos políticos e reflexivos forjados entre os pares.
No que se refere à formação acadêmica na relação educadores/educandos, a impaciência com a formação de novos quadros é despótica por estereotipar os sujeitos da aprendizagem, sem a preocupação prévia de saber sobre suas memórias e histórias. Nos falta o tempo da colheita das histórias e a generosidade paciente de produzir espaços para colhê-las. Parte de nós é capaz de ver nas novas gerações limitações, sem uma autocrítica suficiente sobre suas próprias fragilidades. E o termo fiel de uma ação covarde como esta é desonestidade intelectual.
Assim, se há um empobrecimento, ele é geral e afeta todo o campo crítico, em especial os marxismos. Na produção acadêmica, se a dialética não for companheira da didática e da dialogicidade, então essa forma-conteúdo de ver/mudar o mundo não cabe para a ciência, nem para a política, menos ainda para a vida. E a verdade é que temos nos tornado insuportáveis como sabedores do mundo que, dentro de sua mesquinha ilha do conhecimento, acreditam ser melhores e superiores a outros com diferentes tempos e visões de mundo. Temos sido signatários da morte do outro, isto é, aquele que deveria estar conosco tem se tornado nosso inimigo. Por quê? Pois, que cada um, no que lhe resta de responsabilidade coletiva, ouse responder.
Nossos tempos são de fraturas. Tempos de youtubers, de podcasts, de velocidades máximas, de fake news, de cobranças sobre a produção e de explicitação da paralisia intelectiva, na supremacia das mídias como meios que se tornaram mediações. A questão a saber é: os novos meios de comunicação são apenas mais um instrumento de dominação, uma fonte perigosa de veiculação das mentiras como verdades, ou frutos de um avanço técnico científico que temos que ser capazes de incidir, disputar e protagonizar?
Há um fetiche na ideia de acesso online aos textos. Ou seja, não basta baixar todas as obras do marxismo. É necessário ter tempo para desbravá-las e bons condutores para ajudar na abertura do caminho investigativo, ou seja, companhia para dialogar sobre o trajeto percorrido. Porque ninguém produz ciência sozinho e sem vivenciar os conflitos do mundo cotidiano.
Estamos disputando esses espaços e há muita coisa boa produzida, mas essa criação não precisa ser o avesso do estudar com afinco. Ante essas “novidades” do nosso tempo, há um problema real de dificuldade de disciplina, foco e organização para o trabalho educativo. Um dos principais problemas da supremacia das mídias é o fato de condicionarem o estudo rigoroso das fontes teóricas à condição periférica do conhecimento. É contra essa substituição que devemos pelear. Entre a facilidade das escutas informativas nos celulares e computadores, e a elaboração com método daquilo que se escuta, abrem-se processos investigativos ricos que necessitam tempo de elaboração.
Então o que nos exige a dialética?
A dialética nos exige a retomada do tempo na era de supremacia do roubo do tempo. Exige a reconstrução de um tempo de agroecologia que suplante o tempo do agronegócio; um tempo de deixar as naturezas – orgânicas e humanas – se recuperarem dos maus-tratos vivenciados há séculos.
A dialética, ao menos a histórica e materialista, não prescinde dos sentidos. Vincula-se à educação pelo campo do sensível, a estética. Esta, requerida tanto nos estudos acadêmicos como nas formações políticas e sindicais, exige paciência e revisão histórica. A abertura para o belo, ou a disputa do mesmo, abre espaços para uma reaproximação com a teoria em seus diferentes níveis de abstração. Caso isso e outros processos de reversão do apagamento do outro não ocorram, manteremos nosso definhamento para dentro do campo, à custa de não respondermos mais aos anseios das novas gerações, somadas aos grupos sociais que ficaram de fora da compreensão política do campo crítico ao longo da história (esse universo diverso, plural e pulsante que é o popular integrado ou distanciado de sua própria classe, a trabalhadora).
Hoje, nas universidades públicas brasileiras, há pouco tempo para o cultivo, a germinação, a calmaria. Evidente que isso é o resultado do modelo de desenvolvimento conformado para ampliar as desigualdades em vez de saná-las. Nessas condições, estudantes evadem porque a vida os invade de um jeito insuportável no plano das cobranças pela sobrevivência. Mas e os/as educadores/as marxistas? Acaso não evadem da sua responsabilidade didática de rever o sentido do currículo, das aulas, em tempos fraturados? Há espaço, no interior do campo crítico, para rever posições, tensionar a ordem dentro da própria ordem e abrigar outros projetos avessos à dinâmica atual? Ou somos também reféns dos grilhões institucionais referenciados pelo Estado burguês?
Contudo, não é somente no âmbito universitário que essa asfixia ocorre. O que as frágeis renovações das lideranças sindicais e das pastorais sociais, com poucos quadros das novas gerações e muitos protagonistas de outros tempos, nos dizem acerca dos dilemas atuais? A baixa renovação é somente fruto do severo impacto da ofensiva capitalista sobre o mundo do trabalho? Ou é também o resultado de uma ação antidialógica e antidialética sobre que mudanças devem ocorrer ao longo do tempo para que o encontro de experiências e histórias dê vida a uma renovação de fato? Nos tornamos tão intolerantes e intransigentes como aqueles que acusamos?
Em tempos de trabalho informal e sobrecarga de atividades, não pensar as estratégias da formação em geral, e universitária em particular, para a classe trabalhadora, que, não sendo maioria, chega nas universidades através do exitoso processo político das cotas, não é manter a visão hegemônica dentro de nossos raios de ação? Ou, no afã de criticar a ordem, a mantemos sem tentar revertê-las de fato?
A dialética movimenta nossos grilhões históricos. Mas se sequer nos perguntamos coletivamente quais os atuais dilemas a serem superados, como podemos ser dialéticos/as? A dialética marxiana ou é revanche ou não é.
Na atual conjuntura da ciência e do pensamento científico nas economias de capitalismo dependente, somos intelectuais críticas/os em processo de adoecimento. Tendemos a propagar muito mais uma ideia de dialética do que atuar na forma-conteúdo dialéticos. E não por maldade ou por má fé, mas por incapacidade de assumirmos nossas fraquezas frente à vitoriosa condição mercantil da era dos descartáveis. Teremos sido derrotados? Seremos capazes, ainda, de rever nossa práxis em meio à ofensiva do capital?
Seguimos para a parte 3, final.
Roberta Traspadini é pós-doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia e professora dos cursos de graduação e pós-graduação em Relações Internacionais, UNILA.
O materialismo histórico e dialético não é um “método de pensamento”! É a forma como a realidade social se reproduz. Ele não é um método, ele é a própria realidade se movimentando que a mente capta quando capta o movimento do real reaproduzindo-a na mente. Pensar o materialismo histórico dialético como um método para entender a realidade é ser mecanicista. Não é um método, é a realidade em ação captada pela mente. É o concreto pensado, reproduzido, mimetizado pelo pensamento.