A falta de visão futura da ação pública e a incerteza do presente na construção da cidade
A busca por visibilidade e imediatismo levou as políticas urbanas a se afastarem cada vez mais da busca do bem coletivo, incentivando, em vez disso, os interesses privados e do mercado
O planejamento urbano no Brasil, representado pelo Plano Diretor, está a exigir uma revisão radical, ou seja, pela raiz. Todos os seus pressupostos precisam ser questionados. Todos, sem exceção. A partir desse questionamento, é fundamental que o conteúdo do Plano Diretor e seus métodos sejam redefinidos de baixo para cima. […]. Os problemas e suas prioridades devem ser definidos pela maioria e esta deve recusar qualquer constrangimento por “não entender de planejamento urbano”. Especialista (ou expert) é aquele a quem o problema diz respeito! Os técnicos têm que ser postos a serviço dessa maioria e da solução dos problemas que elas pautarem.
As ilusões do Plano Diretor, Flávio Vilaça, 2005
Um presente imóvel desceu sobre o mundo acometido pela Covid-19, aniquilando o horizonte histórico e, com ele, promovendo um verdadeiro eclipse (oculto) do tempo.[1] A imagem do anjo da história de Paul Klee (que, nas palavras de Walter Benjamin, possuía os olhos voltados para a memória do passado e as asas abertas como se arrastadas por um vento tempestuoso em direção ao futuro) foi substituída pela falta de consciência crítica do passado. Hoje, impera a incapacidade de imaginar um futuro a ser planejado de acordo com o interesse coletivo, como as políticas iniciais do Ministério da Cidade estimularam.
Na citação de Benjamin de 1940, ele se referiu às ruínas de uma Europa ocupada pelo nazismo-fascismo e frente a uma Segunda Guerra Mundial. Sua intenção foi fornecer um ponto de vista alternativo à visão dessas ideologias, que fizeram do “magnífico destino e progresso uma espécie de mito tão deslumbrante e irresistível quanto desumano e destrutivo”. Em vez de elogiar o progresso a todo custo com palavras simples, vazias e surdas, Benjamin procura e propõe outra dimensão profunda e revolucionária. Ao mesmo tempo, realça o presente e a memória, e deixa espaço para uma visão diferente e, acima de tudo, livre.
Estamos aprisionados em um presente imóvel e a magia do jogo entre passado e futuro (suspenso no momento presente) que, ao mesmo tempo, nos apoiaria e nos empurraria adiante como o anjo de Klee, parece ter anulado até mesmo a ambição de pensarmos um futuro da cidade contemporânea. A busca por visibilidade e imediatismo levou as políticas urbanas a se afastarem cada vez mais da busca do bem coletivo, incentivando, em vez disso, os interesses privados e do mercado. O crescimento de novas desigualdades e a construção de um sistema de novos valores, correspondentes a novos mapas de poder, determinaram um desprezo progressivo pelos grupos sociais mais fracos.
É por essa razão que se abrem lacunas de significado, na sociedade, por meiodas quais as religiões ganham espaços cada vez mais amplos. Elas interceptam as necessidades mais sentidas durante a elaboração ou revisão de planos diretores, principalmente nas cidades pequenas do interior de São Paulo. Nesse cenário, as religiões tendem a preencher o vazio e a incapacidade da política de pensar um futuro coletivo e, sobretudo, de imaginá-lo fora de suas próprias expectativas privadas.
A cidade contemporânea brasileira, com seu caráter de modernidade inacabada, solicita uma experimentação que restabeleça a relação íntima entre planejamento e exploração projetual, a partir de sistemas novos e mais articulados do que aqueles imaginados para a cidade moderna.
Mesmo olhando para o futuro, é difícil ignorar que a qualidade de vida em megacidades futuras será determinada pela forma como os governos locais promoverão a experimentação em seus mandatos. Por essas razões, os programas de pesquisa são cada vez mais importantes em todos os níveis, pois podem transformar partes de cidades em laboratórios, nos quais as instituições locais, sejam administrações públicas ou órgãos de pesquisa públicos ou privados, podem produzir soluções para as questões mais urgentes de política urbana. A cidade será como um laboratório de práticas aplicadas.
A cidade contemporânea é um mosaico de povos em movimento, de diferenças na vida e no trabalho, produção e consumo, origem e cultura, bem como gênero, idade, métodos de agregação, estratégias de sobrevivência e afirmação individual e coletiva. Esses movimentos urbanos podem ser analisados como um conjunto de trajetórias e deslocamentos no espaço, dinamismo social e cultural, mas também como uma rede de processos de auto-organização e autoconstrução da vida, de novas redes de solidariedade, novos laços sociais, microcomunidades em formação ou desenvolvimento.
Uma das abordagens mais bem-sucedidas para o estudo da prática científica nos últimos trinta anos tem sido os Estudos de Ciência e Tecnologia (STS, na sigla em inglês), inúmeras vertentes de pesquisa que evoluíram em uma relação de contaminação mútua. O representante mais relevante dessa tradição é Bruno Latour que, nos anos 1980 e 1990, deu novo impulso ao estudo da ciência, considerando o laboratório como local privilegiado de observação da chamada ciência em ação. Os estudos de Latour e outros colegas permitiram reconhecer as características políticas e sociais da produção do conhecimento científico: o laboratório representa não só o lugar onde o método científico é aplicado, mas também – e, sobretudo – o centro de uma rede de relações com outras entidades e indivíduos que têm o poder de influenciar o projeto de pesquisa.
Dessa forma, a cidade como laboratório ou Um Urbanismo de Canteiro (RETTO JR, 2021) representa o lugar a partir do qual o cientista começa a construir e, posteriormente, transmitir sua visão do mundo à sociedade. Nele, promove uma interpretação dos fatos empíricos de acordo com critérios que, ao mesmo tempo, são o produto das práticas de laboratório e de uma lógica de empreendedorismo político, destinada a afirmar sua própria visão.
Os laboratórios urbanos, entretanto, são parcialmente diferentes dos casos examinados pelo STS, na medida em que o objeto de reflexão já é profundamente político em si mesmo, e que a prática científica visa fornecer respostas a questões políticas. Compreensivelmente, torna-se mais concreto o risco de usar a ciência como um discurso para legitimar as relações de poder pré-existentes.
Para compreender plenamente as articulações do laboratório como elemento de produção do espaço urbano, a vertente de pesquisa de economia política urbana, cultivada por sociólogos, economistas heterodoxos e geógrafos, é bastante relevante e sua abordagem produz uma crítica radical à postura adotada por Latour e colegas. A gestão do poder é o principal problema identificado pelos que adotam as categorias da economia política para analisar as transformações urbanas. De acordo com Scott Kirsch e Don Mitchell (2004), as abordagens latourianas, embora revelando a natureza política da produção científica, produzem uma representação dispersa do poder. As epistemologias adotadas pelos pesquisadores e os artefatos produzidos pela tecnologia tornam possíveis algumas abordagens de pesquisa e desencorajam outras.
Segundo os estudiosos neomarxistas, essa modalidade ignora o papel da estratificação do poder. Embora possa ser difícil identificar um comando central na lógica do desenvolvimento tecnológico, é igualmente verdade que alguns de nós, para usar uma metáfora orwelliana, são mais iguais que outros, porque representam as instituições, suas agendas políticas e sua capacidade de monopolizar recursos escassos.
Cada experiência encomendada a uma equipe de pesquisa, cada artefato tecnológico, cada aplicativo capaz de estruturar o funcionamento de uma área urbana é resultado de uma negociação entre cientistas, engenheiros, instituições políticas e financiadores. É possível, portanto, que a escolha de um determinado projeto reflita mais uma preocupação com os valores da terra, em vez de refletir democraticamente as preferências dos cidadãos; ou é possível que uma determinada experiência, de forma mais ou menos consciente, ignore os desejos de algumas partes interessadas, simplesmente porque são consideradas marginais para o processo de tomada de decisão.
No texto Urban Laboratories: Experiments in Reworking Cities (2014)[2] contido em número monográfico do periódico International Journal of Urban and Regional Research, Bas van Heur trata da desconstrução do conceito de “laboratório urbano”. Seu trabalho combina a atenção à observação in vivo da prática da ciência com a capacidade de inscrever as práticas concretas de pesquisa, colocadas em prática em laboratórios urbanos, na rede de poder que estrutura as políticas urbanas. Seguindo a linha de pesquisa proposta por Van Heur, é possível entender por que certas escolhas metodológicas são feitas, ou porque é importante investigar um determinado assunto. Tudo isso à luz das instituições e práticas políticas que definiram o campo de pesquisa.
O trabalho de Van Heur reescreve o conceito de “laboratório urbano” como um local onde não apenas experimentos científicos são produzidos, mas onde são cultivados os embriões das escolhas políticas futuras. Por essa razão, fazer pesquisas críticas em laboratórios urbanos não significa apenas se perguntar se um determinado projeto experimental, por exemplo, de “reconversão verde” da economia local, é capaz de atingir os objetivos estabelecidos. Significa também, e sobretudo, perguntar como esses objetivos foram formulados e o que significam para todos aqueles que foram excluídos da definição dos objetivos.
Uma reflexão sobre a construção social da ciência é absolutamente urgente: não se trata apenas de preencher um “buraco” na literatura. Na medida em que o método científico contribui para moldar e legitimar as decisões políticas e, se quisermos, garantir também que a ciência, a tecnologia e as práticas laboratoriais produzam bem-estar para o maior número possível de pessoas, o uso das ciências sociais torna-se indispensável, a fim de entender como e sob quais condições a prática da ciência é forjada. Somente criando as ferramentas para “abrir” laboratórios urbanos é que será possível fazer um balanço completo das práticas de inovação, garantindo ao mesmo tempo um incentivo ao progresso tecnológico e uma governança plural e participativa dos processos de inovação.
Há séculos, o tempo tem sido o portador de esperança. Do futuro, esperávamos paz, evolução, progresso, crescimento, até mesmo revolução. Esse não é mais o caso. O futuro utópico praticamente desapareceu e os territórios da cidade contemporânea, aqueles dominados pela precariedade, provisoriedade e uma condição generalizada de instabilidade e metamorfose contínua, são a expressão mais forte e evidente da incerteza política e programática que rege a sociedade brasileira atual. Logo, o conceito de laboratório urbano passa a ser uma das inovações políticas mais proeminentes do último período. Talvez seja a partir desse tipo de experiência que possamos começar a responder como as cidades poderão ser transformadas na era pós-pandemia. Perguntando-nos ainda que mecanismos colaborativos e conflituosos animam os contextos urbanos e quais políticas e inovações fazem das cidades laboratórios da democracia.
Adalberto da Silva Retto Jr é professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), doutor pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e pelo Departamento de História da Arquitetura e Urbanismo do Instituto Universitário de Arquitetura de Veneza (2003) e professor-pesquisador visitante no Master Erasmus Mundus TPTI (Techiniques, Patrimoine, Territoire de l’Industrie: Histoire, Valorisation, Didactique) da Universitè Panthéon Sorbonne Paris I (2011-2013).
[1] “… como se o coração tivesse antes que optar entre o inseto e o inseticida” (Caetano Veloso, 1983)
[2] Urban Laboratories: Experiments in Reworking Cities. Andrew Karvonen, Bas van Heur, vol. 38, issue 2, March 2014, pages 379-392.