A fórmula de sucesso olavista
Olavo de Carvalho parece ter inventado, sem querer, uma fórmula de sucesso intelectual que talvez não possa jamais ser repetida
Não é preciso concordar com Olavo de Carvalho para perceber que ele conseguiu adquirir um estatuto inédito para um (pretenso) intelectual no Brasil: ele foi o guru de um Presidente da República, alguém responsável por nomear três ministros, um para as relações internacionais (Ernesto Araújo) e dois para a educação (Ricardo Vélez Rodríguez e Abraham Weintraub), além de garantir vários cargos comissionados para seus alunos. É certo que alguém mais maldoso poderia afirmar que os olavistas vieram para atuar como espécies de “homens-bomba”: seus objetivos seriam justamente os de acabar com nossas relações exteriores, com nossa educação e com nossa cultura, levando junto seus respectivos nomes. Parecem ter sido bem sucedidos em suas missões. Por outro lado, é preciso reconhecer que Olavo, além de ter publicado pelo menos dois best-sellers (um dos quais bateu a marca dos 300 mil exemplares vendidos), de ter criado uma ampla rede de seguidores, também conseguiu adicionar o sufixo “ismo” a seu nome e assim transformá-lo em uma das marcas ideológicas mais comentadas dos últimos anos, o olavismo.
Como isso foi possível para um outsider acadêmico, um “auto-intitulado filósofo”, um “astrólogo”? Esta foi a pergunta que acabrunhou um contingente considerável das cabeças pensantes do país. Minha hipótese, por outro lado, vai no sentido contrário ela: creio que Olavo logrou alcançar a fama precisamente por estar “nas margens” – e por se tornar, assim, um porta-voz para todos aqueles e aquelas que também se sentem “injustamente excluídos”.
O direito de se xingar Olavo
O falecido filósofo uspiano, Rui Fausto, declarou em entrevista concedida pouco antes de morrer que “a única coisa rigorosa no discurso de Olavo de Carvalho são os palavrões”. Ele não estava sozinho, entre profissionais da filosofia, é bastante comum que adjetivos pouco corteses sejam usados junto ao nome de Olavo e de sua obra. É assim que o professor aposentado pela Federal Rural do Rio de Janeiro, Paulo Ghiraldelli (ele próprio, uma espécie de “Olavo da esquerda”) se referiria a Olavo como alguém que “por ter escolaridade baixa, […] jamais entendeu os princípios da necessidade lógica”, ao mesmo tempo em que Daniel Tourinho Peres, da Federal da Bahia, caracterizaria suas lições sobre filosofia como um “obscurantista […] emplastro filosófico” – em referência ao “emplastro Brás Cubas”, medicamento que acabaria por matar seu criador e cobaia, o personagem título do clássico de Machado de Assis.
Os exemplos poderiam ser multiplicados à enésima potência. O fato que quero destacar, aqui, é que reduzir Olavo de Carvalho à condição de “charlatão” é algo socialmente autorizado que permite que seus oponentes o critiquem sem o compromisso de demonstrarem qualquer familiaridade com sua obra. Como cientista social que pretendo ser, não quero qualificar tal fato como “justo” ou “injusto”, mas antes mostrar que tal “liberdade” é sintomática do lugar objetivo ocupado por Olavo, e que se reflete em nosso imaginário: apesar de ter colaborado por décadas em jornais e revistas, Olavo sempre pretendeu dar “voos mais altos”. Para ele, as críticas culturais e políticas que eram publicadas nestes veículos eram a parte menor de sua obra, esta que, ainda segundo ele, teria como ponto culminante sua “filosofia”. Acontece, por outro lado, que nossos filósofos nunca o reconheceram como tal. Desse modo, Olavo ficou oscilando entre o jornalismo (que o acolhia, mas que ele desprezava) e a filosofia (que o expelia para fora de seus meios). Essa tensão fez com que Olavo se tornasse, em si mesmo, uma incógnita: a pergunta não era “quem é Olavo de Carvalho?” mas “o que é Olavo de Carvalho?” Seria ele um intelectual? Um jornalista? Um astrólogo? E, afinal de contas, por que não poderia ele se apresentar como filósofo?
A exclusão dos meios filosóficos
Alguns diriam que a falta de um diploma acadêmico seria a causa para tal exclusão, mas eu creio que isso é apenas parte da explicação. Quem ler seu livro de 1996, Aristóteles em Nova Perspectiva, notará que Olavo pretendeu reorganizar toda a obra aristotélica em torno de uma lógica que ele teria descoberto e que teria permanecido oculta a praticamente todos que o antecederam (segundo Olavo, com duas exceções: Avicena e Santo Tomás de Aquino). Acontece que estamos tratando de um autor lido e comentado por milhares de anos por um sem número de especialistas de universidades espalhadas por todos os cinco continentes, quer dizer, uma tal “reorganização” seria uma verdadeira revolução paradigmática que poderia invalidar os achados de todo um conjunto de pesquisas importantes. Mais uma vez, é importante frisar, não sei dizer se o texto de Olavo tem o valor que ele próprio arrogava ter. Tendo lido o livro e não sabendo quase nada sobre Aristóteles, o que posso dizer é que, na minha opinião, Olavo promete muito mais do que consegue de fato oferecer. Mas isto não importa muito aqui. O que me parece revelador neste livro, em específico, é que ele sintetiza e reflete o deslocamento de Olavo de Carvalho em nosso espaço social: como alguém desconectado dos meios acadêmicos, escrevendo numa língua “menor”, num país periférico, pode querer transformar radicalmente a organização do conjunto da obra daquele que é um dos pilares fundantes disso que se chama “cultura ocidental”? Se ele tivesse familiaridade com a sociologia dos intelectuais, descobriria que uma empreitada desse tipo é quase equivalente a tentar desobedecer a lei da gravidade. Provavelmente ludibriado pela lógica meritocrática, Olavo parecia acreditar que bastaria ter uma “boa ideia” para conseguir chegar aonde quisesse. Mas não é assim que as coisas de fato funcionam no mundo real, um clássico não se torna um clássico apenas pela qualidade de seu texto, mas também porque uma série de condições objetivas e contingentes permitiram que isso aconteça. Por exemplo, como mostrou a falecida antropóloga e professora do Museu Nacional, Lygia Sigaud, para que Claude Lévi-Strauss se tornasse um dos nomes mais importantes da história da filosofia, ele precisaria lançar mão de uma série de estratégias micropolíticas – por exemplo, se colocar como um continuador da obra de Marcel Mauss, algo que, de todos os modos, teria sido muito mais difícil caso ele não tivesse angariado uma posição relativamente boa no cenário acadêmico francês.
Desconhecendo as dinâmicas sociais aqui descritas, Olavo decidiu submeter uma versão preliminar de seu texto para publicação numa revista de divulgação científica – a “Ciência Hoje”. Após quase um ano aguardando o resultado do parecer – e já decidido a publicar o artigo em forma de livro – finalmente o resultado da avaliação chega à caixa de correio de Olavo, anunciando que seu texto havia sido reprovado. Inconformado com a realidade dos fatos (sociais), Olavo parte para o ataque e lança um manifesto denunciando a revista, seu diretor e seus/suas pareceristas. Ele vai além e decide acionar seus contatos célebres (por exemplo, o poeta Bruno Tolentino) e tornar o caso objeto de uma matéria de página inteira no caderno de cultura de O Globo. Era a luta de um Davi solitário contra um gigantesco Golias burocrático.
As virtudes de Olavo
O evento da não publicação de Aristóteles em Nova Perspectiva é, sem dúvida, fortuito, mas ele sintetiza, em si, as estratégias de Olavo para alcançar a fama. A posição tensa que destaquei acima – nem um filósofo, nem um jornalista – deu a Olavo uma independência e uma liberdade arriscadas e que, em geral, tenderiam ao fracasso: a maioria dos que se aventuram a assumir tal posição estão relegados ao esquecimento. Quando damos uma volta pela cidade, é comum que nos deparemos com cartazes colados nos postes, desbotados e rasgados, anunciando cursos independentes, a revelação da “verdade” sobre algum “planeta secreto”, ou que oferecem cursos de filosofia “à moda antiga”. Creio que um dos motivos porque Olavo conseguiu escapar de tal sina foram seus contatos dentro do jornalismo e dos meios editoriais. Contribuindo para periódicos importantes, Olavo acabaria por desfrutar da “aura de legitimidade” que emana destes veículos. Mas não apenas isso, é preciso olharmos para o conteúdo e para a forma de sua produção para admitirmos que, por mais que estejamos em desacordo com suas ideias, Olavo é um grande escritor e um grande orador. Certamente, seu discurso é “sujo” – principalmente o falado – mas é preciso irmos além dos moralismos: repleto de palavrões, de escatologia, de murros na mesa e de baforadas de cigarro, Olavo conseguiu criar um personagem cativante, coisa que em grande parte explica o mais de um milhão de inscritos em seu canal de Youtube, por exemplo. Eu que, para a pesquisa que estou desenvolvendo, acompanhei vários dos vídeos de seu canal e várias de suas aulas, não pude deixar de apreciar a maneira como sua performance é atravessada por um crescendo: Olavo inicia relativamente sereno, passa a colocar as posições de seu/sua adversário/a; vai demonstrando alguma irritação, algumas ofensas aparecem aqui e ali, um cigarro é aceso, um gole de café é tomado, até que, ao final, ele está completamente fora de si.
Mas é preciso, também, não exagerar: ao contrário do que Olavo prega, seus escritos e suas aulas estão repletos de leituras rasas e, muitas vezes, equivocadas dos pensadores “mainstream” que ele combatia. Seu livro sobre Descartes é repetitivo e sua argumentação confusa, assim como o é seu outro livro sobre Maquiavel. Seria possível fazer um compêndio dos erros que Olavo profere em aula e em seus escritos. Mas vejamos, por exemplo, O Jardim das Aflições, de 1995, tido por alguns (inclusive pelo próprio Olavo) como sua obra mais importante: o argumento histórico é bastante fajuto: a Idade Média parece ter surgido da “decisão” consciente dos primeiros cristãos de se afastarem dos grandes centros urbanos para levarem uma vida “contemplativa”. Nenhuma palavra sobre a crise do modo escravocrata de produção e apenas uma menção muito vaga sobre as invasões bárbaras. Ainda assim, creio ser possível ler esse livro discordando de praticamente tudo o que está ali – como eu o fiz – mas, ainda, apreciando suas qualidades como se se tratasse de uma obra de ficção escrita em primeira pessoa por um autor alucinado: alguém que, depois de assistir a um ciclo de palestras em filosofia no Masp, passou a ter pesadelos com professores da USP e com sua plateia.
O quase profeta
É interessante perceber como o personagem que Olavo criou diante das câmeras – e que já estava implícito em seus escritos – se casa bem com a posição tensa que ele vinha ocupando nos meios sociais. Não sendo autorizado pelos filósofos a falar, restou a ele recorrer a Deus. Suas verdades não seriam as verdades “mundanas” com as quais os “professorzinhos de filosofia” se ocupavam, mas verdades maiores, emanadas diretamente das esferas celestes. Quem ler os livros de Olavo – em particular, o já citado O Jardim das Aflições – saberá que não exagero: essa era sua grande pretensão. Ao mesmo tempo, ele não poderia expressar este seu projeto dentro da universidade, nem tampouco, em suas colunas de jornal. É assim que suas aulas independentes vieram para lhe conferir uma grande (e arriscada) liberdade. O real talento de Olavo foi, portanto, o de criar esta persona que soube traduzir sua posição num estilo e num personagem bastante apropriados para sua condição. Como um quase profeta, Olavo é alguém que pregou fora do (e em oposição ao) sacerdócio acadêmico. Isso fez com que ele se tornasse, como já disse, um símbolo da rebelião às instituições, particularmente propício num momento de crise como o que vivemos agora. Acredito que outros tentarão ocupar seu vácuo, mas creio que a fusão de características específicas que convergem em Olavo – aqui apenas esboçadas – dificilmente poderá ser repetida.
Para concluir, há algo de quixotesco na empreitada de Olavo, um Dom Quixote que, mirando um moinho de vento, atrairia uma multidão de Sanchos Panças que também se assustariam com os supostos gigantes atacados por seu mestre.
Paulo da Costa Pereira Neto é doutorando do programa de Sociologia e Antropologia da UFRJ.