Pensando o bolsolavismo e formas de ação
Na nossa situação, a falta de imaginação resulta em falta de juízo e pode contribuir para dar racionalidade à crueldade. O impeachment é a nossa salvação? Não sabemos. Mas o seu pedido é não apenas legítimo, é politicamente necessário.
O que fazer? Assinamos, um de nós na primeira hora, o pedido de impedimento elaborado pelos parlamentares Fernanda Melchiona, Sâmia Bomfim e David Miranda, todos do Partido Socialismo e Liberdade (PSol). Assinamos o pedido não por acreditar ser ele a única ou mais viável solução para a crise em que estamos. Assinamos por acreditar que não poderíamos deixar de assiná-lo, dado que o presidente da República, Jair M. Bolsonaro, e alguns de seus ministros não cometem apenas crime de responsabilidade, o que, diga-se, já não seria pouca coisa: cometem crime contra a saúde pública e, ao atentarem por ação e omissão contra os habitantes do Brasil, podem vir a incorrer em crimes contra a humanidade.
Sabemos que o presidente não se inquieta com esse tipo de alerta. Pelo contrário. Todos nos lembramos da sua recorrente apologia à ditadura militar e à prática sistemática de tortura desde o chão da Câmara dos Deputados, onde celebrou uma das mais nefastas figuras do período, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. Não fosse uma complacente interpretação da imunidade parlamentar, o então deputado teria respondido pelo que fez. Claro, a Presidência não destruiu as suas afinidades eletivas, e, como era de se esperar, desde que a assumiu Bolsonaro tem empreendido práticas que flertam com a ideia de crimes contra a humanidade, a qual no pós-Segunda Guerra pretendeu dar conta da transformação do Estado em criminoso por se voltar contra a sua própria população. Agora, na crise terrível pela qual passamos, ele tem usado a Presidência da República para personalizar o poder, mesmo que isso implique grave risco à saúde pública. Com suas ações e omissões, volta um dos poderes do Estado contra a sociedade mesmo sob risco de produzir cadáveres em massa.
Podemos considerar que o governo Bolsonaro é um governo anormal, fascista, a versão mais bem acabada da necropolítica, uma ideia de Achille Mbembe, ou um Estado suicidário, como propôs Vladimir Safatle. Mas não podemos limitar nossa ação à nomeação. É preciso refletir sobre como os atores políticos têm procedido. Nesse esforço queremos chamar a atenção, primeiro, para os efeitos materiais, os desdobramentos na vida das ideias que Bolsonaro, seus filhos e seus principais apoiadores mobilizam; depois, é urgente olhar para a relação desses atores com o direito e começar a pensar como o bolsolavismo subverte a relação moral de cidadãos com a lei.

Bolsolavismo
O que chamamos de “bolsolavismo” se apresenta como uma visão de mundo que pretende justificar publicamente práticas criminosas segundo os parâmetros legais e morais ordinários como se justas fossem. Ele o logra atacando um conjunto de valores que são próprios da modernidade: a pluralidade de pensamento e formas de vida, a confiança no progresso da ciência e no aprimoramento das instituições democráticas, a busca de saídas no espaço público pela conversa, e não pela violência. Isso não significa que a modernidade e suas formas não devam ser criticadas. A relação crítica com as formas políticas e as práticas sociais é, ao contrário, um necessário exercício de liberdade. O próprio bolsolavismo grassa aprofundando a perda da distinção entre verdade e mentira, fato e ficção, com o largo uso de mídias sociais um tipo de efeito colateral da modernidade, que se aproveita de suas tecnologias e liberdades para veicular uma idealização do passado, de uma sociedade humana ordenada por leis naturais que se poderia restaurar. Não se trata simplesmente de um conjunto de ideias: o bolsolavismo é uma prática de poder no centro da República cujo sentido é a destruição das condições da ação e, portanto, de recriação de um mundo comum. Não é à toa que o bolsolavismo já se voltou contra, dilacerou e devorou vários dos seus.
É certo que a instituição da Presidência impõe limites formais ao exercício do poder; mas são esses limites que, a todo instante, o presidente se recusa a respeitar, agora com efeitos dramáticos, em função da pandemia e das circunstâncias particulares que ela encontra no Brasil. O paradoxo deve nos desviar o olhar para outro aspecto do modo de ação bolsolavista, que diz respeito ao direito. O sentido primordial do direito é conferir alguma estabilidade às relações humanas, instituindo espaços de igualdade e tornando tais relações mais previsíveis. O Estado moderno, por sua vez, afirma-se como detentor do monopólio força para a garantia dessa previsibilidade.
Para Hobbes, a paixão que movia os indivíduos a se reunirem sob a vontade única de um soberano era o medo da morte violenta. De Hobbes a Kant há uma ampliação da ação do Estado, que de elemento coercitivo contra a violência entre os indivíduos se constitui como coordenador das ações sociais, criando condições para que os cidadãos, os indivíduos, possam ter uma vida digna. Ora, justamente porque a noção de dignidade humana é mais equívoca, é um conceito disputado e sujeito a desacordos, a vontade do soberano deve estar aberta ao juízo público, de tal modo que, se o poder político não perde o seu caráter de decisão, este já não é mais o único, nem necessariamente o principal. Hamilton, um dos que desenharam a constituição americana, talvez seja o primeiro a fazer da oposição um momento constitutivo da formação do juízo e vontade políticos. Até então, o pensamento político moderno via na oposição uma fratura da vontade geral que deveria ser extirpada, porque sediciosa. Daí ele propor a ideia de uma oposição leal, isto é, que não trabalha para solapar as ações do governo, que concorre com ele por ações alternativas, mas não perde de vista a constituição de um espaço e interesse comuns. Ora, o governo Bolsonaro, com sua ideologia bolsolavista, é sedicioso, desleal, afirma-se como inimigo de todo espaço e interesse comuns amplos que reconhecem a diferença no seu interior.
Contra a vida
Quando afirma que “pessoas irão morrer”, que pessoas morrem todos os dias, quando age contra as medidas de proteção à sociedade, o presidente orienta abertamente as ações do governo contra a vida. Se tomarmos o imperativo “Não matarás!” por substrato das ordens jurídicas modernas, podemos perceber que ele reorienta as ações do governo de modo a subvertê-lo, transformando “Matarás!” em princípio de ação. Para tanto, confronta não só médicos, epidemiologistas, virologistas, infectologistas, economistas, mas também o Congresso, Governadores e seu próprio Ministro da Saúde. O resultado não poderia ser outro: tensiona o pacto federativo, desautoriza a lei e explora a relação ambivalente dos brasileiros com a autoridade, preparando o terreno para o autoritarismo e o arbítrio. Essa orientação do governo para pôr em risco a vida dos brasileiros ganha forma em atos contra o isolamento social, a recomendação de medicamentos sem eficácia comprovada e a sabotagem do esforço de união que levou o Congresso Nacional a aprovar por unanimidade a renda básica emergencial.
O presidente, alguns de seus ministros e sua base de apoio têm tentado justificar tais práticas, por um lado, apelando à necessidade econômica e à ideia de que a não redução das atividades é necessária e suficiente para evitar uma depressão nos próximos trimestres, e, por outro, acionando o medo do socialismo, uma paixão que orientou o golpe e a ditadura que se instalou no Brasil em 1964. Espantosamente, o anticomunismo também está presente no que parte dos eleitores de Bolsonaro e do centro antipetista imaginou que seria o espaço de racionalidade do governo, a equipe econômica. Entrevistas e conversas que o ministro da Economia, Paulo Guedes, tem mantido com empresários e investidores revelam sua incapacidade de dimensionar o problema que enfrentamos. Em primeiro lugar, Guedes, bem ao modo bolsolavista, põe a oposição como o principal obstáculo ao governo, quando na realidade foi ela, em intercurso com a sociedade, que abriu um caminho de ação na crise. O ministro afirma que irá, em um ano, resolver o problema da crise econômica, insiste em uma saída por reformas cujo sentido para ele é a redução do Estado e aposta em privatizações para financiar o necessário aumento dos gastos públicos. Já economistas têm sustentado que passaremos por recessão no mundo e potencial depressão econômica no Brasil. Economistas e historiadores também têm sustentado que a economia passará por transformações importantes – é em parte essa descontinuidade que justifica o uso da metáfora da guerra para dar uma ideia da situação ao público. A Guedes, porém, falta a imaginação necessária a um pensamento alargado, que consiga navegar sem as amarras do tempo e do espaço, projetando cenários e saídas. Ele usa o encadeamento de crises, sanitária e econômica, para alimentar a sua sanha pela redução do Estado ao mínimo – em uma sociedade em que milhões não têm o mínimo necessário à subsistência. Parte do pressuposto de que as coisas podem voltar ao que eram, quando o que eram já era socialmente insustentável, e ignora que há uma constituição, que define o tamanho e o papel do Estado, e constitui a ordem jurídica e política em que se assenta a autoridade do presidente e a que ele delega a seus ministros.
Na nossa situação, a falta de imaginação resulta em falta de juízo e pode contribuir para dar racionalidade à crueldade. O impeachment é a nossa salvação? Não sabemos. Mas o seu pedido é não apenas legítimo, é politicamente necessário. Paulo Guedes chegou a condicionar o pagamento da Renda Mínima Emergencial à aprovação, via PEC, do chamado Orçamento de Guerra. Que seja logo instituído, então, o comitê que irá administrar tal orçamento, um Comitê de Salvação Nacional. Que o Poder Legislativo atue para reverter desmandos do Executivo, bem como para enquadrá-lo e constrangê-lo a agir. Que o Executivo implemente aquilo que o Comitê, sob o império do Legislativo, determine como boa política pública. Bolsonaro e seu governo não possuem mais legitimidade para atuar politicamente. Se ele permanecer com o mandato, que seja um mandato o mais próximo do imperativo possível. Quanto ao Legislativo, que ele continue atuando sob regime de grande concertação nacional, incluindo todos, menos, é claro, o núcleo do governo Bolsonaro, como propôs Marcos Nobre. Está é a única ideologia que deve ser banida: o bolsolavismo. Conservadores, liberais conservadores, liberais progressistas, socialistas, todos devemos deixar de lado o que nos diferencia do ponto de vista ideológico e afirmar nosso compromisso com a democracia e com a certeza de que a economia deve estar a serviço da vida. O que esta crise já mostrou é que, apesar de nossas diferenças, podemos trabalhar juntos, agir com base na solidariedade, reconhecendo que compartilhamos e respondemos por um mundo. Não sabemos como este nosso mundo será amanhã. Sabemos, porém, que precisamos salvar o sentimento de comunidade, de que pertencemos a uma mesma experiência que se chama humanidade.
Daniel Tourinho Peres é professor do Departamento de Filosofia da UFBA, Pesquisador do CNPq e membro do Núcleo Direito e Democracia do Cebrap. Renata Nagamine é professora da UFBA no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais e Pesquisadora do Cebrap